REGINA SARDOEIRA |
Oscar Wilde o célebre escritor irlandês, autor do extraordinário romance O Retrato de Dorian Gray, dramaturgo de grande mérito de onde destaco A Importância de se Chamar Ernesto, poeta de mérito de que pode ler-se A Balada do Cárcere de Reading, narrador cativante de histórias como O Rouxinol e a Rosa foi julgado por sodomia e condenado a dois anos de trabalhos forçados na Grã-Bretanha puritana e hipócrita do século XIX.
As histórias em que se viu envolvido foram de tal modo escandalosas, que durante mais de duas décadas ninguém ousou chamar Oscar a nenhum filho e dizia-se, na sociedade polida e hipócrita da aristocracia decadente, que a sua obra seria esquecida em pouco tempo e o seu nome riscado dos anais da literatura.
Como é evidente falharam tais vaticínios, pelo menos no que diz respeito à obra (não sei quantos britânicos se chamam Oscar hoje em dia) e, decorridos dois séculos, quando os homossexuais não precisam de se esconder para serem o que são, quando se realizam uniões de facto e casamentos entre pessoas de mesmo sexo e as sociedades já são capazes de defender estes atos, ou manter silêncio (salvo exceções, claro, das quais avulta a Igreja Católica), revejo a biografia de Oscar Wilde e não posso deixar de lhe render uma incondicional admiração.
Como qualquer homem de bom tom, Oscar Wilde casou e teve filhos, dois. Como qualquer homem de bem tentou ser bom marido e bom pai. Porém, Oscar Wilde era, acima de tudo, um poeta, um artista, um esteta, movia-se nos meios intelectuais refinados, entre os atores que desempenhavam os papéis das suas peças, entre a juventude masculina que lhe sorvia o encanto de homem e de artista. Cedo se transformou num ídolo para todo um conjunto de rapazes, ávidos de um modelo, sedentos de aprender com o talentoso e encantador homem mais velho e, imbuído do espírito da Grécia Antiga, Wilde deixou-se cativar pelo séquito de belos efebos, percebendo que, afinal, o contacto íntimo, feito de afetos nobres com esses jovens lhe era mais caro que o leito conjugal ou as aventuras fugazes com damas da alta sociedade.
Estive a refletir sobre esta existência, destruída extemporaneamente pelo preconceito, pela moral hipócrita de uma sociedade incapaz de separar o génio das sua idiossincrasias sentimentais e deixá-lo ser tal como era, tal como descobriu que era, e pude entender não só Oscar Wilde mas também Sócrates, Platão e tantos outros gregos, filósofos, tragediógrafos ou poetas, conhecidos pela sua tendência para amar os jovens, para fazerem deles os seus amantes, mesmo tendo esposas e filhos, mesmo sendo cidadãos de mérito e participantes dos negócios políticos. De facto, hoje, como na Grécia Antiga, hoje, como na Inglaterra do século XIX, a mulher continua a ser, para o homem em geral, o objeto de prazer, na alcova, a mãe dos filhos, no lar, a companheira na economia doméstica, a funcionária da habitação, que cuida do alimento da família e das limpezas, que recebe o homem no fim da jornada de trabalho, de preferência com um beijo e um sorriso, mesmo quando ela própria se debateu com tarefas múltiplas dentro e fora do lar que compartilha.
Que homem, nos nossos dias – este tão evoluído século XXI – é capaz de admitir que a sua companheira de alcova, que a doméstica que lhe lava a roupa e lhe passa a ferro as camisas, que a fêmea paridora dos seus filhos, é também a inteligência capaz de o seguir nos seus assuntos, sejam eles burocráticos, de negócios ou da arte? Que homem do nosso admirável século XXI consegue render homenagem à mulher, não pelas curvas do seu corpo, ou pelo pestanejar dos seus olhos, ou pelo tom rubro dos seus lábios, ou pelo encanto esplendoroso dos seus cabelos, mas pela lucidez do seu espírito superior, pela acutilância da sua inteligência, pela profundidade das suas reflexões, pela genialidade da sua prosa ou pela harmonia da sua palavra poética? Que homem procura na mulher predicados intelectuais e éticos, sabedoria refletida ou erudição documentada, rigor filosófico ou originalidade concetual?
Pode ser que exista aqui e além, disperso pela galáxia terrestre, um punhado de exemplares masculinos capazes de preferir aos esplendores carnais e aos requintes ou despudores da alcova, a mulher inteira, também ela cérebro e inteligência, também ela talento e audácia, também ela líder de movimentos filosóficos, literários, políticos e por aí adiante ou, melhor ainda, capazes de aceitarem que a mulher pode ser, em simultâneo, a promessa do êxtase dos sentidos e também a intelectual refinada. Pode ser que exista, repito; mas é uma rara e prodigiosa minoria!
O homem quer submeter a mulher, quer domá-la e fazê-la ceder àquilo que acredita ser a sua superioridade de macho. Como pode ser preâmbulo do acto sexual uma discussão filosófica ou política, um debate literário, um recital privado de poesia, uma sessão de leitura do último capítulo do romance que ela está a escrever? Como pode despertar a sensualidade do macho uma citação dum vate da antiguidade, um verso de Píndaro, dito na língua original, uma estrofe da Odisseia, ou uma sentença de Cícero, em latim? Não pode, é claro, sei bem que não pode. Já estou a ver o pobre macho excitado a bocejar, sonolento, quando a sua companheira recita poemas ou cita tratados filosóficos, em vez de tirar a roupa fazendo esgares maliciosos e requebrando o corpo em meneios de bordel! E, no exato momento em que ela, a divina mulher completa, intelecto e corpo na pujança máxima, está pronta para o êxtase dos sentidos que também almeja, já o macho murchou a sua virilidade ou adormeceu soltando roncos animalescos!
E então compreendo perfeitamente Oscar Wilde e Sócrates pois, grandes que foram em sensibilidade artística, génio e agudeza filosófica, só encontraram discípulos do sexo masculino, arredadas as mulheres para as trivialidades da vida familiar numa espécie de gineceu perpetuado pelos séculos fora!
Compreendo também a estranheza e o repúdio dos machos literatos perante o espírito superior do feminino: como aceitarão que há filósofas, quando os manuais e enciclopédias não registam nenhuma? Simone de Beauvoir é conhecida porque foi a companheira de Sartre, ironicamente apelidada de «La Grande Sartreuse», Safo não teve outro remédio senão ir para a Ilha de Lesbos e formar uma comunidade poética alheia aos homens…e se as poetas («poetisas» como se diz, quando poeta é uma palavra feminina ou deveria ser) são aceites e as escritoras toleradas, é na medida em que continuam a ser minoria, não têm sido elas a ditar os estilos, a encabeçar movimentos (as excepções não conseguiram ainda esbater a regra)!
Por isso, Oscar Wilde não teve outro remédio senão amar os jovens, com aquele tipo de amor que enuncia num dos seus
poemas como «aquele que não ousa nomear» explicando, na perfídia que foi o seu
julgamento, que não pode ser nomeado porque é demasiado sublime, demasiado
intelectual, demasiado nobre para ser entendido. É o amor do homem mais velho
pelo jovem que anseia ser ilustrado ou (quem sabe?) iluminado pelo seu
intelecto sublime; é o amor do jovem pelo homem mais velho que lhe serve de
émulo e que lhe desperta o corpo todo, incluindo o espírito, incluindo os
sentidos, incluindo o sexo.
Mulheres? Ei-las no gineceu, das habitações gregas ou da sociedade convencional, onde a maquilhagem é obrigatória, e a boa forma, e as roupas de bom gosto e todo um périplo de ninharias que aos poucos lhes vai retirando, perante os homens, o direito ao respeito, quando ficam por aí, e o direito ao desejo, quando acumulam a tais dotes fúteis a excelência de um intelecto superior.
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