J. EMANUEL QUEIRÓS |
Sobrepesando na Terra a cinza e o sangue do
arbítrio humano desencontrado de si, venho de reler a Carta Encíclica que o
Santo Padre Francisco dirigiu «a cada pessoa que habita neste planeta», com o
título “Laudato Si” (Louvado Sejas), na
qual o Bispo de Roma, em seis capítulos, actualiza as preocupações doutrinárias
da Igreja “Sobre o Cuidado da Casa Comum”.
A ressonância mediática que esse documento ecuménico
obteve, assim que a sua matéria foi anunciada nos órgãos de comunicação e nas
redes sociais, desde logo, despertou um interesse muito particular pela
proximidade nas temáticas que me trouxeram ao conteúdo do livro “Terra – Portal de Vida, Planeta do Homem”
(Dez.2014), e que confere com o propósito do Papa «entrar em diálogo com todos
acerca da nossa casa comum».
Ao terceiro ano do magistério pontifício, o
cardeal Jorge Mario Bergoglio,
arcebispo de Buenos Aires, nas 187 páginas desta sua segunda epístola
papal, divulgada no passado dia 18 de Junho (2015), faz incidir a sua reflexão
na ecologia da Terra. Matéria intemporal concreta, paradoxalmente esquecida e colateral
para a generalidade dos fiéis, de grande actualidade e emergência para a
Humanidade.
Iniciando o texto com a citação de São Francisco
de Assis no Cântico delle creature, reposicionando
o louvor ao Senhor “pela nossa irmã, a mãe terra”, o Papa Francisco propõe-se
interpelar a consciência humana sobre o estado de degradação que lhe vimos
infligindo de forma acelerada, visando «renovar o diálogo sobre a maneira como
estamos a construir o futuro do planeta». Em forma de alerta cívico global, contudo,
a Carta não deixa de tocar uma vertente eminentemente política, exigindo aos
seres humanos um «compromisso constante com os problemas da sociedade».
O chefe da Igreja Católica apela ao senso
crítico de cada um para que não renunciemos a questionar «pelos fins e o
sentido de tudo», com o propósito de que recuperemos a «profundidade da vida»,
contra o tédio e o vazio que o progresso da ciência e da técnica aportaram.
Reconhece a crise ecológica como expressão da crise que assola o homem na sua
natureza espiritual, considerando que a sua origem está na «falta de relação
com Deus».
O Papa enfoca na Terra o apelo a uma
«ecologia integral», ampliada às esferas da sociedade e do indivíduo,
considerando fundamental o desenvolvimento integral da pessoa humana assegurada
no bem-estar e na segurança social, na solidariedade intergeracional e no
atendimento aos mais pobres. Implicitamente, o texto remete-nos para a escala
de uma estação astronómica, indissociável do endereço cosmológico do Universo
onde perseguimos os «caminhos de libertação» que o Papa, seguindo a tradição
doutrinária da Igreja, reporta sendo um «mistério gozoso».
O documento realça a importância do ser
humano no contexto dos sistemas naturais e anota os atributos que ao homem
conferem faculdades manifestas que o permitem conduzir-se pelo «ideal de
harmonia, justiça, fraternidade e paz». No entanto, a Humanidade e o indivíduo
conhecem-se mal a si mesmos e ao mundo onde tudo está interligado, «meio
ambiente, organismos vivos, componentes físicos químicos e biológicos do
planeta, sociedade», e do qual culturalmente nos distanciamos.
Perante as fragilidades reconhecidas nos sistemas naturais do planeta e diante da crise que enfrentam, a Carta Encíclica estabelece um referencial crítico ao «mito moderno do progresso ilimitado», considerando a necessidade de «limitar o nosso poder», com vista a «colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da Terra». Responsabiliza a política que não considera «espaço para uma séria preocupação com o meio ambiente» e não faz por «integrar os mais frágeis, descredibilizando-se «devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas», incapaz de «enfrentar os grandes problemas da humanidade».
Denunciando o rumo errado que o homem vem
imprimindo ao mundo, o Papa Francisco exorta ao compromisso do indivíduo com a sua
própria evolução, clarificando que «antes de tudo é a humanidade que precisa de
mudar». O desafio é educativo, acima de tudo, e está nas mãos dos seres humanos
tomá-lo em consideração e empreendê-lo pela tomada de consciência de uma origem
comum, duma recíproca pertença e de um futuro inevitavelmente partilhado por
todos.
Com a superação dos individualismos, a
regeneração dos estilos de vida tornarão possível uma mudança relevante na
sociedade visando o cuidado com o meio ambiente, a defesa dos pobres e a paz
entre os homens, desideratos para que muito devem contribuir, também, o diálogo
inter-religioso, com as ciências e das ciências entre si.
Nesse reordenamento e harmonização terrena, precedendo um plano sequencial de desenvolvimento na escala evolutiva, a religião católica e a Igreja permanecem inquestionadas no serviço de intermediação com «Deus todo-poderoso e criador». Sem referência a outros estádios de ligação e sintonia com o Universo, a «fé cristã» surge qualidades de um exclusivo da própria Igreja e é entendida como a única âncora possível para todos que defendem a dignidade das pessoas.
A encíclica reporta a insustentabilidade do
consumo de uns que conduz à destruição do ambiente enquanto outros não
conseguem viver de acordo com a sua dignidade humana, considerando que a
política não deve estar submetida à economia, como ocorre na lógica do
paradigma eficientista da tecnocracia. Contesta a maximização do lucro pelo
aumento de produção sem respeito pela perda de recursos futuros e pela saúde do
meio ambiente, dando orientações no sentido da redefinição de progresso que
tenha em conta a preservação da natureza.
O Santo Padre Francisco recupera a ideia do
meio ambiente como património da Humanidade e fundamenta a crítica ao paradigma
tecnocrático no modo cultural como por ele somos condicionados, usando seus
recursos dominados pela lógica do lucro, ignorando as consequências para o
ambiente e para o homem. Neste contexto o Papa denuncia a fome e a miséria no
mundo as quais, adverte, não terão resolução com a liberalização dos mercados e
o crescimento.
Alertando para o problema das desigualdades
e das injustiças, o Papa Francisco esclarece que resultam da exclusão e da
pobreza, por contraponto à ostentação e ao desperdício das sociedades mais
ricas e que o planeta não suportaria que fossem generalizados.
Em face da crise sócio-ambiental generalizada
o sumo pontífice preconiza soluções integrais de fundo humanista, tais como o
combate à pobreza, a integração dos excluídos e os cuidados permanentes com a
natureza, e propõe ao homem uma fundamental «conversão ecológica» duradoura e
comunitária que se ajuste à ordem e ao dinamismo inscrito no mundo.
Considerando o planeta a nossa pátria
colectiva e a Humanidade o um só povo que habita uma casa comum, o texto é
extraordinariamente crítico com os poderes focados na obtenção de resultados
imediatos para responder a interesses eleitorais e não integram uma agenda
ambiental com visão ampla a pensar no bem comum. Denuncia a corrupção por troca
de favores que evitam debates profundos, fugindo ao dever de informar e promovem
a ocultação de informação fundamental.
No entanto, fica por concretizar um domínio
do conhecimento que se situa no conforto da exaltação de Deus, no exemplo de
Jesus, na recomendação à oração, no exercício do culto, na participação da
Eucaristia, matérias que nos remetem para a tradicional visão dogmática do
mundo centrada na exclusividade da «fé cristã». O encontro no exercício de vida
cada vez mais carece de mais amplo significado existencial, em cada um, considerando
tratar-se dos domínios concretos em que as mistificações e os mistérios ganham
valor e perante os quais os potenciais de transformação do indivíduo ficam
diminuídos ou amputados embora o mundo não seja propriedade da via teológica
preconizada pela Igreja.
No que a Encíclica se revela marcante – além da amplitude das matérias da ecologia abordadas com efeito reflexo no homem –, é na mensagem (r)evolucionária que nos aporta. Veiculada num texto inconformado com a paralisia generalizada do empreendimento humano, perante a gravidade dos problemas criados pela civilização, o Papa Francisco incita à coragem do homem para que avance, com urgência, para uma «revolução cultural», orientada para outra forma de entendimento do progresso «mais saudável, mais humano, mais social, mais integral».
Na Encíclica “Laudato Si” a Igreja renova e expande os seus fundamentos
doutrinários para domínios das ciências da Terra e da Vida e o Santo Padre no
desiderato do diálogo universal redimensiona os tradicionais horizontes
institucionais em aproximação à essência humana e aos compromissos de mútua comunhão
com a Terra que, assim, se tornam mais próximos da sua desocultação ontológica.
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