MIGUEL GOMES |
O vento atira as nuvens na nossa direcção. O espanta espíritos espanta-se com as formas nubladas e tilinta-nos o entubado som ecoando por entre as memórias do que por aí vem.
Levantas a tua caneca fumegante e ergues o braço, convidas, levanto a minha e sorrindo brindamos ao que quer que seja que nos une. O banco de jardim, inclinado, transformado em banco de alpendre, brilha ostensivamente a camada de verniz recente e ilumina-se quando a velocidade vertiginosa do longínquo raio chega ofegante na sua eterna ânsia de chegar antes do ribombar do trovão.
Balanço o banco como sempre digo para outros não o fazerem. Ris-te. Lá vem vento novamente, o teu cabelo esvoaça e suspiras quando uns poucos se metem entre os teus lábios e o chã de cidreira, com açúcar obviamente, e os beberricas inadvertidamente. Nada mais faço que ver-te pelo canto do olho e rio-me sozinho, baixinho, levando a caneca à boca na esperança que não me vejas escarnecer, mas tens trejeitos de quem se adivinha, dás-me um encontrão no cotovelo que me faz balançar no banco e na agilidade típica de um leão-marinho entorno um pouco sobre mim, engasgando-me, tossindo, e deixando escorrer um pouco da minha cevada pelo canto da boca até se aventurar pelo pescoço e esmorecer ao alcançar o espaço vazio entre o meu peito e a camisa de flanela.
A vida tem sempre forma de se fazer surpresa e surgir como quem se esgueira por entre um corredor vazio sem que a vejam e nos salta para os braços, abraçando-se ao pescoço e cruzando as pernas nas nossas costas. Por falar em costas, podias lembrar-te que me doem as minhas, penso, mas deixo passar a incúria com o rosto aberto, os óculos tortos e o casaco de malha, azul, molhado pelas pingas que se deixam precipitar quando a isso a gravidade as convida.
Era capaz de ficar a ouvir este silêncio para sempre, noto em mim uma certa melancolia, uma nostalgia, típica de quem se sente imortal e na sua intemporalidade faz de conta que um ano é um dia e um dia é aquele momento em que o arrepio do Outono nos lembra que atrás das fumegantes chaminés ao longe, vem espevitado e austero o Inverno.
Há tempo para tudo, diziam-me, só não há tempo para o próprio tempo. Coitado, penso, envolto nas voltas que se transladam pelo sistema solar, sorrindo a tempos de outros planetas e a astros de outros planos sem tempo de ser o próprio tempo.
Está a escurecer embora me pareçam ser horas do Sol, acima deste tapete cinzento e azul negro, brincar na heliocentricidade e decidir de que lado da vida se deseja pôr. As nuvens revolvem-se e parecem formar, vale-me a imaginação, uma espécie de invertida agitação marítima, onde ondas de tufos cinzentos com tonalidades diferentes se precipitam sem saberem onde rebentar ou em que praia desabar.
Vejo-me assim, entre dois mares, o que me foge dos pés onde quer que pense e o que me alcança independentemente da terra firme que procure.
Endireito-me no banco, as pernas da frente fazem um barulho seco e oco ao baterem no chão de madeira já gasta. Cruzo os pés, pouso a caneca que fumega ainda timidamente, já sem a cevada, na pequena grade de madeira onde me apoio quando é a minha vez de soçobrar e destapo os braços, prendendo a manta entre o queixo e o pescoço. O caderno anima-se quando me vê pegar na caneta e sem ajuda da brisa abre-se para me receber, exibindo as folhas amareladas de cor e de sabor, fechando os olhos na saciedade prévia de quem se saber ir ser escrito e, nisto de escrever, pouco importa o quê, mas sim o quanto, venha a mim o vosso reino, maravilhoso. Olho apenas uma vez mais em redor, a chávena órfã, o banco ímpar, a serenidade de um tempo que se quer a arfar escorrido por dentro de um corpo que a terra há-de comer.
De caneta entre os dedos, caderno sobre os joelhos, prendo melhor a manta com o queixo e imaginando-me acompanhado, começo a escrever assim: “O vento atira as nuvens na nossa direcção…”
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