ANABELA BORGES |
Creio que nunca
nenhum lugar me será tão caro como o lugar onde nasci.
Eu nasci nas
fábricas.
Entra-se num
caminho com uma antiga guarita de um lado e a velha fábrica de laminados do
outro, ali à tasca do Varejão, sobe-se primeiro e depois desce-se, sempre sem
virar. É aí que se encontra a casa dos meus pais, aninhada no vale fundo, um
pouco antes de se chegar à antiga linha de caminho-de-ferro, actualmente
transformada numa moderna ecopista.
Quando alguém da
minha cidade ou arredores me pergunta “de onde és?”, prontamente respondo “eu
sou das fábricas”. Toda a gente da minha cidade e arredores sabe onde é.
E volto a ser a
menina franzina de bochechas coradas, os olhos grandes e pardos, curiosos, e
cabelos finos de melenas voando ao vento mesmo quando não faz vento.
Eu sou essa.
E corro: à venda
da Lisinha, que está hoje desabitada, junto dos altos portões vermelhos das
fábricas, a comprar um quilo de arroz para a minha mãe, um quartilho de vinho
para o meu pai e cigarros para o senhor José.
Brinco pelo
caminho. Tudo é oportuno para brincar, tudo está à feição para o efeito:
bichos, plantas, paus, pedras, pneus, máquinas abandonadas das fábricas.
Desperdícios das fábricas. Sim, desperdícios das fábricas sempre foram bons
para brincar: serrim, fitas e folhas de madeira, pneus, máquinas abandonadas. Úteis
desperdícios. As fábricas tinham desperdícios úteis para as minhas
brincadeiras.
A dona Elisinha
diz-me, “Estás muito bonita hoje, menina”, e eu faço aquele sorriso de
orelha-a-orelha – aquele que faz com que a senhora diga a toda a gente que eu
sou muito educada – e sigo, feliz, prestes a correr e a brincar, prestes a não
perder tempo. “Vai lá, menina, vai lá”, a Lisinha a despedir-se, mas eu já sou
de costas, o sorriso fofo que ficou com ela, os cabelos finos de melenas ao
vento.
Volto para casa,
corada. Entrego as coisas à minha mãe. Vou levar os cigarros ao senhor José.
Recebo a gorjeta.
Podendo, vou
novamente brincar.
Logo me chamam
outra vez – menina de recados, “Belinhaaa!”.
Menina de
recados, corada, veloz, que facilmente me perco com as coisas que,
repetidamente aparecem no caminho, cada pormenor descoberto como novo, como
diferente, um achado.
Desta vez, é
para ir à venda da Isaurinha, que é hoje a tasca do Varejão, mesmo ao lado da
velha guarita abandonada, buscar um quarto de broa e três trigos de cantos.
Lá vou eu a
correr, os cabelos voadores e a saca de plástico, cheia de vento, posicionada,
como asa, para trás do meu corpo.
A dona Isaura
diz-me, “Estás tão crescida, Belinha, os teus olhos já olham por cima do
balcão”, e eu olho-me de alto a baixo, espreito novamente para a Isaurinha e
constato que é verdade, que, apesar de me pôr em bicos-de-pés, já consigo ver
por cima do balcão. Peço-lhe uma chiclet
do troco – por vezes, a minha mãe deixa-me – e poupo a gorjeta do senhor José
para outra idêntica ocasião.
E vou embora,
saltitando, cantarolando uma qualquer cantiga de brincar, ou alguma canção da
moda, das que dessem na televisão ou se ouvissem na rádio.
Volto para casa.
Entrego a saca à minha mãe.
Nem olho para
trás. Breve, chamam por mim, para mais um recado, alguma coisa esquecida, que
faça falta no fechar-se o dia – se fosse tarde, e a Lisinha ou a Isaurinha já
tivessem fechado as grossas portas envelhecidas das suas vendas, nós chamávamos
por elas e elas vinham atender-nos na mesma.
Olhando à
distância, estão lá os lugares, mas são já outros, e as pessoas outras. Nunca
serão as mesmas, as pessoas, nem eu.
Corro, a
livrar-me de mais um recado. Ou é isso, ou não tarda, chamam-me para jantar.
E eu ainda quero
brincar.
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