quinta-feira, 5 de novembro de 2015

CORES DA INFÂNCIA

ANABELA BORGES
Creio que nunca nenhum lugar me será tão caro como o lugar onde nasci.

Eu nasci nas fábricas.
Entra-se num caminho com uma antiga guarita de um lado e a velha fábrica de laminados do outro, ali à tasca do Varejão, sobe-se primeiro e depois desce-se, sempre sem virar. É aí que se encontra a casa dos meus pais, aninhada no vale fundo, um pouco antes de se chegar à antiga linha de caminho-de-ferro, actualmente transformada numa moderna ecopista.
Quando alguém da minha cidade ou arredores me pergunta “de onde és?”, prontamente respondo “eu sou das fábricas”. Toda a gente da minha cidade e arredores sabe onde é.

E volto a ser a menina franzina de bochechas coradas, os olhos grandes e pardos, curiosos, e cabelos finos de melenas voando ao vento mesmo quando não faz vento.
Eu sou essa.

E corro: à venda da Lisinha, que está hoje desabitada, junto dos altos portões vermelhos das fábricas, a comprar um quilo de arroz para a minha mãe, um quartilho de vinho para o meu pai e cigarros para o senhor José.
Brinco pelo caminho. Tudo é oportuno para brincar, tudo está à feição para o efeito: bichos, plantas, paus, pedras, pneus, máquinas abandonadas das fábricas. Desperdícios das fábricas. Sim, desperdícios das fábricas sempre foram bons para brincar: serrim, fitas e folhas de madeira, pneus, máquinas abandonadas. Úteis desperdícios. As fábricas tinham desperdícios úteis para as minhas brincadeiras.
A dona Elisinha diz-me, “Estás muito bonita hoje, menina”, e eu faço aquele sorriso de orelha-a-orelha – aquele que faz com que a senhora diga a toda a gente que eu sou muito educada – e sigo, feliz, prestes a correr e a brincar, prestes a não perder tempo. “Vai lá, menina, vai lá”, a Lisinha a despedir-se, mas eu já sou de costas, o sorriso fofo que ficou com ela, os cabelos finos de melenas ao vento.
Volto para casa, corada. Entrego as coisas à minha mãe. Vou levar os cigarros ao senhor José. Recebo a gorjeta.

Podendo, vou novamente brincar.
Logo me chamam outra vez – menina de recados, “Belinhaaa!”.
Menina de recados, corada, veloz, que facilmente me perco com as coisas que, repetidamente aparecem no caminho, cada pormenor descoberto como novo, como diferente, um achado.
Desta vez, é para ir à venda da Isaurinha, que é hoje a tasca do Varejão, mesmo ao lado da velha guarita abandonada, buscar um quarto de broa e três trigos de cantos.
Lá vou eu a correr, os cabelos voadores e a saca de plástico, cheia de vento, posicionada, como asa, para trás do meu corpo.
A dona Isaura diz-me, “Estás tão crescida, Belinha, os teus olhos já olham por cima do balcão”, e eu olho-me de alto a baixo, espreito novamente para a Isaurinha e constato que é verdade, que, apesar de me pôr em bicos-de-pés, já consigo ver por cima do balcão. Peço-lhe uma chiclet do troco – por vezes, a minha mãe deixa-me – e poupo a gorjeta do senhor José para outra idêntica ocasião.
E vou embora, saltitando, cantarolando uma qualquer cantiga de brincar, ou alguma canção da moda, das que dessem na televisão ou se ouvissem na rádio.
Volto para casa. Entrego a saca à minha mãe.
Nem olho para trás. Breve, chamam por mim, para mais um recado, alguma coisa esquecida, que faça falta no fechar-se o dia – se fosse tarde, e a Lisinha ou a Isaurinha já tivessem fechado as grossas portas envelhecidas das suas vendas, nós chamávamos por elas e elas vinham atender-nos na mesma.

Olhando à distância, estão lá os lugares, mas são já outros, e as pessoas outras. Nunca serão as mesmas, as pessoas, nem eu.   

Corro, a livrar-me de mais um recado. Ou é isso, ou não tarda, chamam-me para jantar.

E eu ainda quero brincar.

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