domingo, 29 de novembro de 2015

DESACORDADAMENTE

MIGUEL GOMES
Existe uma forma simples de começar o dia, acordando. 

Parece-me que a fórmula para a vida se baseia nisto mesmo, acordar. E nestas questões matutinas, seja lá o momento em que despertamos, parece-me que envolve um amanhecer para cada pessoa. Por exemplo, eu acordo apenas quando me permito andar, ainda que mancando, como agora, fruto de uma herniação discal bastante chata e dolorosa, saio do asfalto ondulado a que comparo com uma vaga ondulante no Atlântico e, alçando a perna, passo para a terra castanha, saibrenta, com restos de tonas ou cascas dos eucaliptos, pequenas pedras e raízes resistentes de árvores e arbustos que não existem mais, a que comparo ao extermínio da bondade humana pela ceifa certeira e acutilante no silêncio entre as imagens estáticas que a televisão nos vai permitindo cegar. 

Só aí, no monte, no cheiro a terra molhada que trago no palato, ainda que esteja, como agora, um Sol de Inverno ainda que seja Outono e eu, no terminar do Novembro, me permita escrever os meses com letra maiúscula, propriamente, como merecem. 

O monte, ou bouça, vai subindo, imagino-me na enseada de uma praia de uma das quaisquer ilhas dos Açores, onde ficou uma parte de mim que desconhecia existir e que encontrei, apenas, quando me vi lá, sentado num miradouro, a olhar para o horizonte aquático e sonhar-me vulto numa terra ausente que, imagino, habita apenas no céu ou onde quer que inalcançáveis os sonhos se permitam dormitar.

Passarei na terra, do raspar dos pés nos passos pelo mato rasteiro com gotículas de um orvalho que caiu na madrugada passada e persiste porque o Sol, esse apaixonado, ainda que mais próximo deste dióspiro maduro que rodopia em torno de si, quer ver até onde se vislumbra a sua sombra, pensando no dia em que sobrará de sombras em pontos cardeais que não os usuais.

Antes de adentrar pelos tufos de musgo e do espesso e fofo tapete de caruma olho uma vez mais para trás, ao longe na noite mais comprida que impaciente começa a espreitar por detrás das dezasseis horas, mais coisa, menos coisa. As estrelas olham admiradas para o tremeluzir das luzes de Natal que parecem querer imitar o bruxulear astral de quem se permite ser combustível a arder durante fracções da eternidade. 

Começa a chegar, ele, a festividade, vejo-o nos panfletos que inundam a minha caixa de correio, na miríade de coisas que tentam colar ao corpo e ao ouvido, a indispensabilidade do acessório que tornará a vida mais simples, fácil, divertida e com mais sentido!

Confesso-me atónito perante a insignificância dos meus desejos de criança em ter uma lanterna, a mesma que, depois de a tirar de dentro da bota ortopédica que deixava debaixo da chaminé, sobre o velho fogão a gás, ligava e virava para o céu, fazendo sinais de luzes para as estrelas que, na minha inocência, pareciam responder ao meu chamado. Hoje sei que as estrelas brilham não pela lanterna, mas pelos sinais que vamos emitindo, na inocência e ignorância de quem se deixe deslumbrar pela própria estrela ou pelo reflexo de um dia tímido no tímido olhar de quem se sabe perdido fora de si, pois um dia encontrar-se-á dentro de si.

Os dias correm mais depressa para todos os desatentos que vivem cervicalizados sobre a cacofonia digitalizada de uma vida que vamos tecnologificar porque nos esquecemos que os abraços analógicos são para serem saboreados na companhia de nós mesmos e dos que sabemos trazer na própria respiração.

Adentro monte ondulo pelo suave embalo que o passo afundado pela mata permite navegar. Os pinheiros são eles mesmos, independente de quem os veja, sinal da sinceridade despojada da Natureza. Eu tenho tudo a aprender como eles e, por isso, saúdo-os quando lhes passo a mão na casca e recolho um pouco da resina que vão lacrimejando ao mesmo tempo que fotossintetizando-se lavam o ar e alma de um planeta que, digitalmente, vamos abandonando, esquecendo-nos da facilidade com que ele, berlinde, nos pode sacudir borda fora, como um cão que cansado da chuva se sacode e esperricha gotículas em todas as direções e segue, depois, caminho fora sendo cão agora seco.

Saio da ilha, perdão, do monte, e chego a nova estrada, subindo a custo pelo despreparo físico e pelo marginalizado pensamento de tentar perceber onde me quer levar a vida, a palavra e a vida que me brilha pelo canto do olho. Não existe muito mais para ver. A noite esgueirou-se sem permissão do dia e vai crescendo até se fazer Natal, a noite onde se percebe que nada mais importante há que sermos importantes para nós mesmos, fazendo dos outros importantes, para que nada do que não precisamos ganhe potencial de ser importante e permaneça, debaixo da árvore, no lusco-fusco da iluminação de Natal, à espera de ser desembrulhado por quem não saiba que o abraço é o melhor embrulho que podemos fazer a quem amamos.

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