quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SOCIEDADE «MORTOS-VIVOS, SA»

ANABELA BORGES
DR
Aqui há tempos, vi, num apontamento da imprensa, que o humorista Nilton andou pelas ruas de Lisboa, caracterizado de zombie, a pregar sustos a lisboetas e turistas. Isto não é mais do que a moda pegada, reflectida numa acção do humorista, de uma sociedade que valoriza tudo o que seja do domínio do fantástico e em modo quanto-mais-irreal-feioso-sangrento-e-morto-vivo-melhor.  
No desenvolvimento desse apontamento, Nilton referia que “Em Portugal, estamos mais mortos do que vivos, estamos ligados à máquina”. É claro que a afirmação leva-nos a pensar na situação socioeconómica-cultural-de-valores-e-afins que o país atravessa. Mas a associação desta sentença à figura de um zombie levou-me a reflectir sobre o modus faciendi do fascínio, tipo produção em série, que se vem desenvolvendo ao longo da evolução humana, pelo terror, o crime, o desconhecido, os mistérios além-túmulo e a existência de possíveis submundos ou extra-mundos, ambientes pós-apocalípticos e outros lugares e feitios situados muito para além do conhecimento limitado que temos da nossa humilde galáxia.
São muitos os casos em que este género, agora também fortemente disseminado em séries de TV, tem vindo a constituir o deleite dos apreciadores nas telas dos cinemas, como “Braindead”, nos anos 90 – que levou a que em alguns lugares do mundo fossem distribuídos sacos de vómito para quem assistisse ao filme –, ou, nos anos 70, com o clássico “Despertar dos Mortos”, que estabeleceu um padrão e deu origem a uma avalanche de filmes do estilo. Estes e outros filmes constam de uma lista da Forbes dos melhores filmes de zombies de sempre. 
Não é difícil percorrermos a história do cinema e da literatura para nos depararmos com inúmeros livros e filmes, em sagas ou a solo, em que o importante é abandonar o real e buscar um qualquer submundo, um qualquer “Senhor dos Anéis” que nos faça crer que noutras dimensões do tempo, em eras difíceis de imaginar, e em espaços, camadas abaixo ou acima desse mesmo real, há outros mundos e seres defeituosos que precisamos de combater para assegurar a existência humana, ou para preservar uma determinada casta de seres quase perfeitos. O mesmo se passa nos filmes de ficção científica, com a criação de extra-mundos, extra-planeta-terra, extra-tudo.     
Não precisamos de ir muito longe, bastando recordar o sucesso da saga “Twilight”, em que os vampiros e os lobisomens passaram facilmente de vilões a moçoilos queridinhos das adolescentes.

O NEGÓCIO DOS MORTOS ESTÁ BEM VIVO
Parece que o negócio dos mortos está bem vivo, afinal.
A experiência colectiva de fenómenos como este ajuda a explicar não só o fascínio das pessoas por estes temas, mas também a maneira como este tipo de literatura, filmes ou séries se tornou uma febre à escala mundial.
Antes mesmo de serem publicados os livros ou estreados os filmes ou séries, há já toda uma publicidade, uma pré-venda, uma divulgação fora do comum. Muitas vezes, a divulgação é feita por fãs, em blogues, sites e redes sociais, com traduções mais ou menos foleiras, mas todos sabemos da gigantesca máquina financeira que está por detrás destes fenómenos de atrair milhões.
É certo que, enquanto existirmos, haverá o fascínio pelo desconhecido, mas na minha cabecinha, continuará a fazer-se uma enorme confusão, um “brainstorming”, quando leio que a série mata-mortos, sangue-com-sangue, “Walking Dead”, é uma das mais pirateadas em todo o mundo, distinguida com inúmeros prémios, vista por milhões de espectadores e já está na 5.ª temporada. É uma indústria que rende milhões, a moda dos mortos-vivos, fenómeno televisivo e cinematográfico de enorme popularidade.

Mas como? O que faz com que as pessoas apreciem o género?
Talvez, emocionalmente, as pessoas se vejam com necessidade de rever os seus dilemas e escolhas morais – espero que sim! É urgente que o façam e não se lembrem de andar por aí à cata de sangue. 
Talvez certas personagens dessas carreguem a promessa de um amor capaz de superar a morte, quando as pessoas são constantemente confrontadas com a finitude da vida – a esperança do amor eterno e da imortalidade, causas empreendedoras sempre acalentadas pelo ser frágil que somos.
Talvez os segredos dessa faceta humana permaneçam desconhecidos para sempre. Mas uma certeza parecem trazer: que são um inequívoco alimento para o espírito humano que aprecia o género. Falta saber que consequências nefastas daí advirão.

Afinal, quais de nós são os mortos-vivos?

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