terça-feira, 21 de outubro de 2014

O PARADOXO DO TEMPO

REGINA SARDOEIRA
DR
Habituámo-nos a considerar que o tempo se organiza de um modo linear, vindo do passado – esta manhã – fixando-se, efemeramente, no presente – agora, segunda-feira, dia 20 de outubro, 14:58 horas – caminhando para o futuro – logo à noite. Supomos ter nascido um certo dia – que, paradoxalmente, não somos capazes de recordar – e que durante uma parcela de tempo – que não conseguimos determinar, a priori – estaremos vivos para, por fim – numa data que jamais conheceremos, mas que sucederá um dia, sem que disso tomemos consciência – a morte nos apanhar. Lemos a história dos homens e dividimos o tempo, numa inexorabilidade de acontecimentos e de datas, em que uns são a causa de outros, e sempre as consequências são, temporalmente, posteriores àquilo que, no passado, as engendrou.

Passado, presente, futuro, assim mesmo. E, a uma tal sequência, adaptamos as eras do tempo, os calendários, os relógios, os múltiplos horários com que nos regulamos, vivendo na convicção absoluta de que as épocas não se intersectam, muito menos fluem de diante para trás, muito menos se amalgamam num único patamar.

Porém, e começando pelo mais óbvio, é ou não verdade que lá à frente, no futuro (supomos nós), um certo ano, dia, hora, minuto e segundo nos trará, irrefragavelmente, a nossa própria morte? E essa é uma certeza absoluta, na qual nos obstinamos em não pensar muito, sob pena de experimentarmos grandes desequilíbrios no fruir desta nossa existência cronometrada e sequencial. No entanto, a evidência, muitas vezes palpável – porque vemos os outros morrer – outras, anunciada – porque certos acidentes nos fazem rondar, vividamente, essa hora temida – condiciona-nos o presente e lança suspeitas sobre o passado. Logo, a morte futura, como horizonte da nossa finitude, condiciona toda a nossa atitude existencial, senão à luz de uma consciência omnipresente, ao menos nos subterrâneos mais ocultos do nosso psiquismo.

Vemos então, claramente, de que modo o tempo perde a sua trajetória regular, em que somos recém-nascidos e depois crianças e logo jovens e adultos e, em breve, substância em deterioração orgânica, nos limites da corrupção corpórea, para nos darmos conta da coexistência de todos estes tempos, perdida a memória do parto que a todos aconteceu, impossibilitada a tomada de consciência da morte que ainda há-de vir. 

Nascimento e morte são dois marcos existenciais: pelo primeiro, arremetemos para o mundo, enquanto seres já assinalados pelo segundo, a que acederemos um pouco mais à frente, mas para o qual o nosso organismo trabalha, incessantemente. Embalados na ilusão civilizacional das metas, dos projectos, das missões, do sentido, cremo-nos vivos, cremo-nos eternos, cremo-nos dignos da imortalidade individual.

Parecerá todo este discurso um arrazoado filosófico, sem qualquer suporte credível, porque é assim que o vulgo vem tratando a filosofia ao longo dos tempos. E no entanto, desde o início do século XX, com a teoria da relatividade de Einstein e mais tarde com a física quântica de Max Planck e a indeterminação de Heisenberg, que a questão da imponderabilidade do tempo e do espaço é considerada a base de ciências tão respeitáveis quanto a Física e a Química. Newton considerava o universo perfeitamente ordenado e determinado, e uma sucessão de causas e de efeitos conduziria o cosmos, e os indivíduos presentes nesse cosmos, numa única direção: do passado para o presente e deste para o futuro. Porém, a descoberta das partículas quânticas e do seu percurso aleatório, lançou por terra essa pretensa ordem, e ficamos a saber que, subjacente ao macrouniverso que podemos pesar, medir e, de certo modo, controlar, existe todo um microuniverso cujas ondas, partículas, fotões, eletrões etc. escapam, de todo, a qualquer controlo determinístico.

Invisível, esse mundo microscópico, ou nem tanto, move-se à revelia de qualquer organização determinável e dirige, de modo silencioso, todo o universo. Mas apenas a matemática avançada levantou uma ponta desse véu e nenhuma espécie de experimentalismo poderá exibir, perante os nossos olhos, qualquer evidência que nos demonstre a sua fiabilidade. Porque nós, humanos, precisamos de ver, de medir, de pesar, temos necessidade de controlar, de fazer listas, de provar, sem percebermos que, ao fazê-lo, estamos a impor aí a nossa marca subjetiva e, nessa medida, a tecer ilusões.

Desse modo é pertinente a questão: existe, isso a que chamamos tempo, ou será uma mera criação do nosso cérebro, finito e circunscrito, programador e programado? Há uma linha temporal, vinda dos primórdios – do universo ou de nós mesmos, indivíduos – uma linha reta na qual se inscrevem, como rotas e marcas, as respetivas histórias? É, aquilo a que chamamos passado, a origem e a causa dos fenómenos que o presente nos patenteia, tornando-se constantemente futuro ou, numa suposta retroação que repugna à nossa racionalidade, somos condicionados por aquilo que achamos que ainda há-de vir e que pode já ter vindo ou coexistir num só momento, em osmose indiscernível?

Se assim for, a indeterminação é a nossa única lei e estamos presos entre dois momentos – o nascimento e a morte, nossas únicas certezas e afinal nossos perpétuos enigmas.

Mas se, por debaixo desse jogo de xadrez, em que o aleatório é afinal uma ordem, da qual não logramos estabelecer as leis ou unir as pontas, se alinhar um imenso tabuleiro de damas, apenas com dois valores – o preto e o branco, o 0 e o 1, o V e o F das equações binárias – e estivermos, de facto, presos num destino já traçado, predestinados a viver de acordo com essa matriz que, de modo nenhum, poderemos sondar ou alterar?

Indeterminação e livre arbítrio, ou determinismo e fatalidade? Possibilidade de escolha num universo de imponderabilidades ou prisão perpétua a um destino inscrito no disco rígido do universo?

Porque nos convém a liberdade, e logo a possibilidade de criar regras e definir opções – sem as quais a moral que nos suporta, enquanto seres sociais, seria desmoronada por completo – obstinamo-nos em crer, nos parâmetros limitados da nossa racionalidade, que o tempo existe, tal como os calendários, os relógios, os padrões cronométricos estabeleceram, e confiamos nessa ordem que conseguimos absorver e equacionar, no mundo confinado do nosso cérebro. Mas se tudo estiver previamente estabelecido num certo carrilhão para nós obscuro e o tempo não tiver a substancialidade que lhe atribuímos, de nada podemos ser responsabilizados, porque as escolhas que fazemos não o serão, efetivamente. Poderá a humanidade subsistir, caso a ciência prove, iniludivelmente, que não passamos de títeres de forças superpoderosas e que, o que chamamos de livre-arbítrio, não passa de uma ilusão que fabricamos?

Eis a grande e, decerto, jamais resolvida questão.

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