Chovem latidos na noite. Algum cão responde a
frequências que não ouço. O vento amainou e a imaginação
não me deixa aceder
aos confins do adormecer, não quer acordar amanhã, compreendo-a. Nada como
viver no segundo, saltando a cada passagem dos ponteiros. Ou viver no primeiro,
antes de nascer.
MIGUEL GOMES DR |
Chove, pelos cantos, aos cântaros,
enquanto não me sei secar. O calor faz-se pela fricção de um dia a raspar
sofregamente pelo tempo que demora o acordar de um segundo num minuto.
Sentado no cercado, vejo-os a guiar
rebanhos cegos. Não têm cães, vara, cajado, nem vociferam. Atiram para o seu
meio vestes, que não precisam pois já têm lã. Atiram para o seu meio ração, que
não precisam pois já têm erva. Atiram para o seu meio espelhos, que não
precisam pois têm-se umas às outras. E enquanto rodopiam, movidas umas pelas
outras, sem que parem - pois se todas correm, porque há-de uma parar? - outros
movem o cercado, primeiro uns passos, depois uns metros, até o último passo ser
dado e elas, atónitas, perceberem que correram sem necessitar, egoificaram sem
necessitar, gastaram energia sem necessitar, vestiram sem necessitar, para
agora, findo o divertimento do lobo, serem um emaranhado de lã que ninguém
vestirá.
Não sei o que me entristece mais,
ser ovelha ou analogiar com a pureza que amo, perjuriando a santíssima
trindade, o Pastor, a Ovelha e o Lobo.
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