REGINA SARDOEIRA DR |
Não acredito na democracia. Já no século V a.C., tempo de Sócrates e de Platão, o regime, inventado e posto em prática pelos gregos, apresentava todos os sinais da decadência, a saber: corrupção (os sofistas acorriam à cidade-estado de Atenas porque ali podiam, à vontade, vender sabedoria, espalhar sofismas, formar demagogos e enriquecer por essa via), extrema movimentação nos tribunais (dado que era permitido discursar na ágora e qualquer um podia dizer o que bem entendesse, ofendendo outros com frequência, os processos afluíam; e, de novo, os sofistas – esses proto-advogados – apareciam em cena para defender o acusado); descontentamento e ânsia pelo tirano que organizasse a confusão de palradores e escrevinhadores de todos os géneros; enriquecimento desmesurado de uns em detrimento de outros; defesa do esclavagismo como condição inalienável do florescimento dos cidadãos privilegiados a todos os níveis e muito mais, que não julgo necessário expor, na íntegra. Esses dois grandes símbolos da filosofia – Sócrates e Platão ( um, implicitamente, pois não escreveu qualquer livro, muito embora tenha sido executado pela democracia, por força da sua ação libertadora junto dos espíritos juvenis, outro, explicitamente, pois produziu obras plenas de atualidade onde apresenta as grandes utopias da sociedade perfeita, por oposição à democrática e a outras estruturas políticas) não aderiram ao regime, criticaram-no e detestaram-no pelos efeitos nefastos que a elevação brusca do povo à categoria de governo, sem a necessária catarse cultural, gera necessariamente. E, de facto, a decadência atingiu essa grande potência cientítica, artística, poética, filosófica, linguística, esse universo onde o ocidente bebeu tudo o que ainda hoje é digno de apreço e a Grécia poderosa da antiguidade nunca mais se levantou da queda. Entretanto, a modenidade recuperou o regime democrático, se bem que o tenha feito pela via burguesa, esse povo ressentido, essa massa humana chegada à riqueza e todavia privada de poder político, esses sanguinários da Revolução Francesa capazes de cortarem as cabeças dos aristocratas, sem julgamento de qualquer espécie, apenas porque desejavam ocupar os seus postos de governação. Napoleão, o pretenso libertador da França, o herói da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, bastiões da democracia, não resistiu ao orgulho, não teve a capacidade de respeitar a liberdade de que era o mensageiro e pela qual se tornou o ídolo da Europa e fez-se…imperador!
O que hoje temos como regime político, tido como fiável, generoso, capaz de engendrar cidadãos livres e aptos a decidir quem deve ter o poder para nos governar a todos é a democracia, ainda! Não conseguimos inventar nenhum outro sistema capaz de reabilitar a Grécia de Sócrates e de Platão ou de repor os ideais humanitários da Revolução Francesa. Continuamos apegados a um pretenso governo do povo e a assistir, com uma espécie de indiferença ofendida ou de sarcasmo estulto, a um espectáculo lamentável de jogo de cadeiras em que, cegos e tontos, meia dúzia de homens/mulheres, com idade mais ou menos avançada, se atropela numa correria ridícula a ver quem, no final, empurrando os outros, difamando-os, passando-lhes rasteiras, e por aí adiante, ocupa o almejado trono.
O povo?! Esse não entende absolutamente nada do que está a passar-se com ele – exatamente, com ele! – o povo assiste a esta corrida ridícula com resignação: ou nem sequer assiste, incapaz do sentido crítico, demitido da sua função suprema de intervenção na vida pública, preferindo fechar os olhos e tapar os ouvidos e ir, depois, no dia designado para tal, qual rebanho de carneiros humanos, pôr a cruz no boletim de voto e permitir que o jogo de cadeiras tenha, por fim, novo desenlace.
Quando utilizo a palavra «povo» estou a designar «toda a gente». A antiga divisão tripartida das classes sociais – clero, nobreza e povo – hoje não se aplica, e logo todos somos povo, queiramos ou não admiti-lo, tentemos ou não definir classes e alimentar preconceitos elitistas. Quando nos deslocamos a caminho da mesa de voto é como povo que o fazemos e não como intelectuais, ou polícias, ou arquitectos, ou engenheiros ou escritores ou vagabundos ou funcionários públicos…porque, no plano estrito da formação política e na consciência avalizada do procedimento correto e certeiro no momento de traçar a cruz no boletim de voto, pouco ou nada distingue um intelectual de um analfabeto! Existem, efetivamente, os homens cultos e letrados e os homens incultos e iletrados; existem os trabalhadores manuais e os licenciados ou mestres ou doutores; porém, quer uns quer outros revelam, à saciedade, serem absolutamente idênticos, quando executam esse gesto, não só pelas maiorias que engendram ou pelas percentagens que desencadeiam, mas também pelas específicas e secretas razões de cada um: secretas, mas fáceis de adivinhar, uma vez conhecido o sujeito votante. Mesmo aqueles que conseguem juntar letras e aderir ao sentido das palavras, mesmo aqueles que vão mais longe e lêem livros ou até os que, não só os lêem, mas também os escrevem, os que fazem mestrados e doutoramentos e se consideram muito importantes, por isso, quando vão eleger os governantes, no sentido lato da palavra governante, procedem como analfabetos funcionais!
Como estou tão certa disto que afirmo?
Tenho observado, com atenção e cuidado, as personalidades, as perspetivas, a cultura, a capacidade dialética, a eficácia prática dos que têm sido avaliados na cerimónia eleitoral. Tenho também analisado os resultados e as percentagens dos atos eleitorais próximos e passados. Tenho levado em conta as atuações de ministros e primeiro-ministros, presidentes da república ou das câmaras ou das juntas. Tenho avaliado o progresso do país, liderado por toda essa gente, ao longo destes anos em que somos governados democraticamente. E sei que o povo nunca fez e vai continuar a não fazer, ao que tudo indica, a escolha acertada! Quer dê a liderança governativa a um ou a outro – pois foi numa esquizofrenia política que caiu a democracia portuguesa – o povo vai escolher mal; quer eleve ou abaixe as percentagens relativas dos partidos menores, presentes no jogo, o povo vai cometer vários e irreversíveis erros.
Esta reflexão não é pessimista se por pessimismo entendermos ver o pior, onde, certamente, estará o melhor; esta reflexão é o espelho da realidade e qualquer um que decida acordar neste preciso instante – por exemplo, lendo o texto aqui presente e procurando perceber o que lhe é subjacente – mesmo que não seja um génio ou sendo-o, saberá compreender e (quem sabe?) encontrar o modo certo de agir no futuro, quando for altura de eleger o parlamento português e, consequentemente, determinar os futuros governantes do país.
Entretanto, é necessário estar atento, muito mais atento do que antes: os sinais do declínio estão todos aí, a nossa sociedade já se esfrangalhou por completo (porque nós, O Povo, demitimo-nos), os salvadores habituais não serão de modo nenhum capazes de salvar seja o que for. Prestemos atenção a todos os sinais e comecemos já, agora mesmo, a exercer os nossos direitos e a cumpriur os nossos deveres, ressuscitando esta democracia moribunda e regressando à sua ancestral e etimológica definição.
totalmente de acordo, excelente...
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