Hoje vou escrever sobre cães.
REGINA SARDOEIRA |
Sim, esses, os nossos fiéis amigos, os melhores amigos do homem. Acontece que, ao escrever sobre eles, e na medida em que eles jamais lerão as minhas palavras, acabarei por escrever sobre os homens.
Muitos gostam de ter um cão. E adoptam um desses animais, dizem que entrou mais um membro para a família, dão-lhe nome próprio e apelido, educam-no, exibem as habilidades que o novo filho, filha, irmão ou sobrinho consegue fazer, e assistimos a verdadeiros excessos, em que o dono beija o cão na boca e o leva com ele para a cama, o enche de brinquedos e roupas e mantas e cestos como se ele fosse um bebé e ainda ao progressivo desinteresse, à medida que o animal cresce e já não é tão engraçado ou ainda, quando a sua natureza canina se revela e o cão se torna inconveniente e é necessário prendê -lo, castigá -lo, ostracizá -lo para fora da habitação e, no limite, atirá -lo para a rua, num local afastado e assim o retirar da sua vida para sempre.
Todos sabem que este tipo de situações ocorre, um pouco por todo o lado, e isso diz muito acerca da nossa humanidade. E quando olho um desses cães, soltos por aí, vagueando a esmo, de olhos baixos ou então fitando-me com uma expressão dorida e um apelo mudo, ou observo o ar feroz com que me ladra aquele ser poderoso que um dono (cobarde?!) mantém acorrentado num espaço exíguo ou aquele outro, encolhido na sombra de um muro, à chuva e ao sol, de noite e de dia, a proteger de roubo bens inestimáveis, tenho vontade de alijar de mim o rótulo humano e ir ser cão, com todos esses, organizando uma revolta contra os donos.
George Orwel escreveu uma ficção, justamente intitulada O Triunfo dos Porcos, no contexto da qual os animais de uma quinta, liderados pelos porcos, se revoltam contra o dono, conquistando todos os seus privilégios. Pode concluir-se que, no final, os porcos e os restantes animais não criaram um mundo mais justo ou harmonioso para eles mesmos, conduzidos à sua liberdade. O certo é que, despertando para a consciência da sua opressão, e não tendo ate aí uma concepção de classe, só conseguiram reproduzir o que aprenderam com os antigos donos, criando, para eles, uma sociedade tão injusta quanto a primeira.
Regressando aos cães, sobre os quais escrevo hoje, vejo perfeitamente que estes espécimes, das mais variadas raças e sub raças, cruzados e sobrecruzados para satisfazerem caprichos daqueles de quem vão ser os melhores amigos não têm já os instintos selvagens que lhes permitam sobreviver, quase humanos que são e ainda cães, algures numa zona intermédia onde a consciência é larvar e a dependência do homem que o domesticou e manipula representa a sua verdadeira natureza.
É, pois, uma obrigação moral que os homens tomem realmente conta desses seres amáveis e capazes da fidelidade, não como se eles fossem da nossa espécie, mas na sua especificidade animal. Para que desapareçam das ruas esses despojos famélicos e carentes, para que os canis se desentupam, para que não se pratique neles a eutanásia que ainda relutamos em aceitar para nós, para que nos tornemos dignos das qualidades que eles, os cães, estão dispostos a pôr ao nosso serviço incondicionalmente.
Quis escrever sobre os cães, os nossos, os civilizados. Passei por eles, de leve; e afinal creio ter escrito um texto breve sobre o homem e a sua frequente inumanidade.
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