“Ouço
sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste…”
In Húmus, de Raúl Brandão.
ANABELA BORGES |
Assim começa um
dos meus livros favoritos, um daqueles livros que temos vontade de retomar a
cada instante, ler e reler para absorver o seu conteúdo, único e feroz, sobre
as fragilidades da condição humana.
Somos pó. Ela
dizia, “somos pó. Morremos e pronto. Não há mais nada. O nosso corpo apodrece
na terra até ficar só pó”.
Desde sempre,
ela acreditara que fosse assim. Desde que percebe o que implica morrer, que
entende o processo desta forma. Simples. Por isso, custava-lhe tanto que a
morte viesse e fosse levando as pessoas à sua volta, uma a uma. Por parecer tão
simples, era tudo mais difícil.
E quando alguém
partia, ela enfraquecia sempre um bocadinho. Era o corpo que não se ajudava,
não tinha forças; era a cabeça que tombava pesada e doía. A morte era dura. Era
dura, escura e cruel. A morte era fria. Ficava envolta em tal onda de frio
quando estivesse alguém para morrer, que as tremuras, a náusea, a palidez
tomavam-lhe conta do corpo.
Tudo se tornava
difícil de suportar. E, apesar de tudo, ao outro dia era preciso arranjar
forças e andar – o rosto desfigurado do espanto e do choro, o rosto envelhecido
e curvado. Era preciso tratar de coisas – porque, afinal, nós é que estamos
vivos; é preciso ir enterrar os mortos.
Vai-se, de
arrasto, enterrar os mortos. E o ruído de morte rói e persiste ainda por muito
tempo. Persistirá.
Estamos em Março
e eu podia pôr-me a falar dos dias mais luminosos e da Primavera que está quase
a chegar. Mas não.
É Março, mas
ainda me soa a Janeiro. E Janeiro é para mim um dos meses mais difíceis e
tristonhos do calendário – mês longo, escuro, melancólico, frio, ausente.
Este ano, o frio
prolongou-se em Março (pelo menos na 1.ª metade) – o frio da meteorologia e o
frio que ronda a morte.
Desde Janeiro
que ainda não deixou de ser Janeiro. Março trouxe-me momentos fantásticos com
crianças (o melhor do mundo, afinal!), trouxe-me momentos de leitura e de
afectos, mas trouxe-me também a morte. Levou-me pessoas e bichos – Março traiçoeiro,
dá com uma mão, tira com a outra.
E o ruído rói e
persiste, e o choro, o espanto, o frio.
Uma vez entre
outra, a recusa da morte aplaca-se um bocadinho, atenua, trazendo alguma paz de
espírito.
Não é possível
aceitar a morte, mesmo sabendo, desde o início, que ela é a parte mais certa da
vida. É apenas possível esperar que ela nos traga algum conformismo.
Porque…
Há um vento que
zurze no fundo das janelas.
Há uma luz
apagada no fundo das almas.
Há um grito que
procura o silêncio arrastado do fundo da noite.
Há uma dor
ungida que nenhuma boca pode calar.
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