HÉLDER BARROS |
Fernando, mais tratado na sua freguesia e no seu grupo de amigos, conhecidos e familiares, como Nandinho, foi sempre um solteirão, com uma vida condizente com tal estado civil. Viveu sempre com os seus Pais, só saíndo de casa para emigrar temporária e recorrentemente para a França ou Alemanha, sempre que o trabalho faltava e o dinheiro escasseava.
Fora isso, era um “bon vivant”, boa figura, filho varão, com duas irmãs, nunca lhe faltaram mulheres pretendentes, mas por um motivo ou por outro, nunca nenhuma lhe prendeu o coração, de forma a que este se casasse com alguma. Aventuroso por natureza, gostava de entusiasmar muito as mulheres durante o período de cortejamento e, concretizados os seus intentos primários, ou não, depressa se aborrecia e procurava outra. E diz o povo e bem, “quem muito escolhe acaba sozinho, ou pouco acerta” e assim aconteceu com o Nandinho... foi ficando pela casa de seus pais e aí viveu para sempre. Com setenta anos de idade morreu a sua Mãe e ele manteve-se no seu lar acompanhando o seu Pai quase com oitenta anos.
Como fazia umas horas no trabalho na restauração e bar, sem horário fixo, tomava conta da lida diária da casa, com grande facilidade e simplificando como os homens quase sempre fazem, ou seja, sem o esmero de uma mulher. Além dos cafés, onde gostava de ver futebol, jogar cartas ou simplesmente conversar com os amigos, tinha o vicio das mulheres e da caça, sendo que com o avançar da idade, o último começou, cada vez mais, a sobrepor-se ao primeiro... a lei da vida não perdoa!
Todas as quintas feiras e domingos lá arrancava ele no seu velho jipe acoplado ao seu atrelado de caça, cheio com os seus cães e seguia com alguns amigos caçadores para trás-os-montes, onde verdadeiramente se divertia. Dia da caça, dia de natureza, de companheirismo, de diversão na busca da presa, no jogo do gato e do rato, de algum excesso gastronómico e alcoólico. Ali ele estava plenamente feliz, numa atividade de homens duros e que gostam dos montes, das serras, das geadas, das neves, dos ventos e de grande confraternização. O dia de caça era como que um paroxismo existencial, o zénite da diversão deste homem simples, mas com os seus requintes muito próprios.
Uma vida de boémio, de eterno solteiro, contribuiu para o envelhecimento precoce de um homem. Noites mal dormidas, uma alimentação desregulada, uma vida com poucas rotinas, nunca é muito saudável e tem um preço que se paga com a saúde. Sempre se ouviu dizer, desde antanho, que homem bem casado é homem bem tratado, com uma garantia de longevidade média bem maior do que a opção celibatária.
A degradação física e psicológica de Nandinho começou a ser notória, por volta dos sessenta anos de idade, com problemas de diabetes, intestinos, coração, aos quais se recusou sempre a tratar, pois a vida na sua concepção ontológica, não suportava a ideia de doença, sofrimento e do tratamento inerente. Sempre que um cão se feria, Nandinho, sabia o que fazer com a crueza da sua arma; disparava e pum, já estava. Para ele não existiam equações complexas, era em tudo sempre sim, ou, não; queres ou não queres; vais ou não vais…
Tinha um sobrinho e afilhado deficiente mental que lhe cuidava de forma prestimosa dos seus animais, facto que muito agradava a Nandinho, pelo que este quase todos os dias, invariavelmente, dava uma volta com o sobrinho de jipe, levando-o ao café, prestando-lhe uma atenção que este muito apreciava. No fundo compreendiam-se bem um ao outro, dado que o sobrinho adorava ajudar o padrinho nas tarefas de caça e adorava ajudar a treinar os animais.
Um dia Nandinho não se conseguiu levantar da cama, tendo o Pai e irmãs ligado aos bombeiros que o levaram para o hospital. Depois de muitas horas de observação, os médicos traçaram um diagnóstico negro, que só podia ser resolvido com uma operação à próstata e intestinos, com fortes probabilidades de um problema oncológico em estado muito avançado.
Nandinho que sempre fora independente, livre e que só assumia os compromissos que queria, concebia a vida numa perspetiva hedonista, não quis aceitar a sentença que os Doutores lhe traçaram e decidiu resolver a situação à sua maneira… Pediu à telefonista do hospital que lhe chamasse um táxi e veio para casa pelo final do dia seguinte ao da entrada na instituição de saúde. Chegou a casa, não dirigiu palavra ao velho Pai e ancião, que assustado nem reagiu, pois já pressagiava nos seus pensamentos algo de muito mau. Nandinho dirigiu-se calma e serenamente à arrecadação, arrancou todos os adesivos, cateteres e tubos que trazia no seu corpo, pegou na sua arma favorita, carregou-a cuidadosamente, mas com convicção, como num ritual, apontou-a à cabeça e disparou… escusado será dizer que, acima do seu tronco, só restaram pedaços de carne e ossos envoltos em sangue!
No início da década de oitenta do século passado, assisti enquanto miúdo ao filme “O Caçador”, com um elenco de luxo e recheado de jovens atores o que contribuiu particularmente para a qualidade de vencedor de Óscar de Melhor Filme do ano: Robert De Niro, John Savage, Cristopher Walker e Meryl Streep, entre outros, apresentaram um desempenho que leva o espetador para uma dimensão, de uma forma que potencia a percepção daquilo que as personagens sentem em cada momento. O filme divide-se em dois grandes momentos, e se isto é poderoso no início, em que são dadas a conhecer as personagens e o que as une e as distingue, este elemento torna-se ainda mais central quando a ação se desloca para um cenário de guerra e posteriormente para um de tortura e luta pela sobrevivência.
O filme começa de forma lenta, como se fosse uma situação social: primeiro conhecem-se os anfitriões, depois mais umas pessoas que vão surgindo e depois sim, inicia-se a ação já com todos estes elementos em mente e, no fim, resta dar a conhecer como cada personagem lida com as suas memórias, traumas e cicatrizes – físicas e psicológicas. Aqui, na segunda metade de “O Caçador”, encontra-se o que torna este filme merecedor do prémio máximo da academia – a capacidade de dar a perceber várias dimensões, em profundidade, da mente humana, não só em uma, mas em várias personagens simultaneamente. Isto faz com que este filme possa ser qualificado quase como que um ensaio sobre a condição humana, nas suas forças e fraquezas, e aquilo que no final, realmente une e divide os seres humanos. Depois de assistir a este grande filme que me interpelou de forma marcante, ao nível das diversas formas e vivências com que a condição humana pode ser confrontada; não me sinto com moral nenhuma para julgar o Nandinho, igualmente caçador, como a personagem de Robert de Niro no filme supracitado. Nem alvitrar teorias da conspiração, ou sentenças, carregadas de lugares comuns. A condição humana de cada ser é formada pela condicionante do meio físico e social, das instâncias e das circunstâncias da sua vida.
Penso que só nos conhecemos verdadeiramente, no medo e na coragem, na ação ou inação, na perspetiva de viver ou de morrer, na fome ou na fartura, em suma, em situações limite. No filme referido e de que muito gostei, existe uma analogia clara entre a relação do caçador de veados, representado por Robert de Niro, e as suas presas; com a sua situação de cativeiro no Vietname, em que os vietcongs obrigavam os prisioneiros, que neste caso eram igualmente amigos de infância a jogarem à Roleta Russa, enchendo o tambor do revolver até alguém tombar e ser atirado para um monte de cadáveres. Quem é o caçador, quem é a caça, questão muito relativa na nossa vida, mesmo que não seja em situações limites.
E tudo isto a propósito do Nandinho caçador… a nossa vida tem muito que se lhe diga, e em poucas palavras, não sei explicar melhor. A propósito, a personagem que o Robert de Niro representou, também regressou a casa tranquilamente, mas não se suicidou, voltou para o Vietname para um decisivo jogo de Roleta Russa, com o seu amigo de infância que ficou lá e se viciou neste jogo mortal; por ironia do destino viria a morrer na presença do seu melhor amigo. O caçador quando voltou foi caçar, teve um veado debaixo da sua mira, mas não conseguiu disparar... mais uma cena marcante do filme. No filme a banda sonora também é uma experiência que vale a pena viver; para mim, o cinema e a música são duas formas de arte que quando bem combinadas conseguem transportar a nossa mente para outros universos...
Há muita gente iludida, arrogante, cega pelas circunstancias favoráveis da vida; pessoas que nunca são capazes de prever o quão débil é a sua condição humana… entre a vida e a morte, existe um limite muito frágil, numa fracção de segundo tudo se pode alterar, portanto sejamos ao menos, mais humildes e não nos levemos tanto a sério, é o mínimo, digo eu!
“O infinito é ele menos o metro em que avultamos; a eternidade é ela menos a hora em que vivemos.” ― Teixeira de Pascoaes»
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