REGINA SARDOEIRA |
Há alguns dias tive a oportunidade de ler (mais) um texto de análise sobre o trabalho dos professores e respectivas férias.
Num tempo em que a informação percorre avassaladoramente todos os canais possíveis, pela qual toda a gente sabe tudo acerca da vida de todos, espanta-me sobremaneira que ainda se especule acerca de um tal assunto. Espanta-me que, tendo a esmagadora maioria das pessoas frequentado a escola, não tenha sido ainda absorvido por todos o carácter especifico dessa profissão. Espanta-me que a categoria destes profissionais não tenha sido ainda reconhecida como pertencendo ao topo e não à média (ou abaixo dela) e que ninguém tenha verdadeiramente compreendido o que é ser professor.
Sei bem que nem todos os professores chegam a esta profissão por terem uma intrínseca vocação, quer dizer, por sentirem que ensinar é a tarefa essencial para justificar-lhes o sentido da existência. Mas sei o mesmo acerca dos médicos, por exemplo, que não acedem à carreira por sentirem uma ânsia incontrolável de salvar vidas. E, apesar disso, os médicos têm um elevado estatuto social, ao contrário dos professores.
Apesar da possível ausência de vocação por parte de alguns docentes - e o mesmo é válido para os médicos - a verdade é que só no contacto efectivo com os revezes do ofício (ou com as compensações) é que o trabalhador pode aperceber-se do significado real da sua tarefa - seja ela ensinar ou curar. Começar seja o que for é perceber o caminho que há -de ser trilhado e apenas esse caminho poderá demonstrar se a vocação encontra, seja em quem for, o modo de expressar-se.
Serve este intróito para exprimir a extrema perplexidade que me acomete quando me perguntam se estou de férias - só porque os alunos as têm - ou se, em Junho, entro de "férias grandes" - só porque, uma vez mais, os alunos deixam de ter aulas durante um período mais ou menos longo.
Não, em Dezembro, de facto, não entramos de férias no último dia de aulas. Temos, pelo menos, três dias para reunir e dar as notas, depois vem o Natal, mais tarde o Ano Novo e eis que, nos primeiros dias de Janeiro já estamos ao serviço (este ano foi no dia 4, porque, de acordo com o calendário, ao dia 1 - feriado - seguiu-se um fim de semana. Este tempo em que eu, por exemplo, não fui à escola, chama-se interrupção das actividades lectivas; e caso me tivessem chamado para qualquer trabalho de escola eu teria que comparecer. Sei que muitos dos meus colegas tiveram trabalho na escola, em tempo de interrupção lectiva.
O mesmo se passa com os restantes períodos em que os alunos ficam de férias (eles, sim, nós, não) e, temos direito a usufruir de 22 dias de férias, de facto, no verão, geralmente em Agosto ou muito próximo desse mês, por causa dos exames, e, por causa da organização do ano escolar, nunca podemos repartir as férias, como sei que fazem outros profissionais.
A realidade é esta, muito simplesmente.
Mas, pela parte que me toca, e pelo que vejo todos os dias à minha volta, na escola, tenho que admitir a necessidade absoluta de maiores pausas - quer para nós, professores, quer para eles, alunos. O nosso trabalho é duro e intenso. Obriga-nos a lidar, hora sobre hora, com turmas de 30 ou mais alunos e, seja qual for a matéria e o programa que temos que leccionar, precisamos de motivar esse número de jovens para aprender. Noventa minutos é o período de cada aula: agora, pensem um instante. Será possível manter grupos de 30 jovens atentos e reféns do nosso ensinamento durante 90 minutos?
Eu sei que não, por experiência; mas também porque li estudos científicos sobre o problema da atenção. Percebo (em mim e nos outros) o modo como a capacidade de fixar o pensamento e os sentidos numa questão, numa conversa, numa música é frequentemente interrompido por ínfimas sugestões exteriores ou não. Compreendo perfeitamente que um aluno, mesmo que queira, tenderá a abstrair-se com muita facilidade e muitas vezes, no decurso de uma aula.
Também sei que, por mais interessante que seja o assunto a tratar nas aulas, por mais que eu me desdobre em múltiplas estratégias, por mais que percorra a sala ininterruptamente para atingir todos os alunos, há lacunas por preencher, alunos distraídos ou interessados noutras actividades e, invariavelmente, um suspiro de alívio é sentido logo que os 90 minutos se cumprem.
Como resulta evidente, aulas de 90 minutos, deste modo movimentadas - falo de mim, incapaz que sou de me sentar à secretária e daí debitar a matéria, ou de ligar o projector e apresentar powerpoints sistematicamente, ou de ditar apontamentos ou sei lá que mais - levam a um profundo cansaço que, algum tempo à noite não atenua, tanto mais que o trabalho vem para casa e obriga-nos a pensar e a planear o que faremos no dia seguinte.
Toda a gente sabe ainda que os alunos devem fazer testes, pelo menos dois por período. E então, para cumprir essa obrigação, é necessário, primeiro, elaborá -los a tempo de serem impressos na escola e, depois de feitos, é obrigação nossa corrigi-los, normalmente em casa, a horas mortas, roubando tempo ao sono - porque, nós, sendo humanos, tendo uma vida para além da escola, realizamos as tarefas e as funções comuns de qualquer ser humano. Por isso, sim, eu sinto, como muitos dos meus colegas sentem - todos?! - que mais interrupções ou um ritmo mais suave - ou mais normal - seria benéfico para ambas as partes.
Porque, não duvidemos, também os estudantes são sobrecarregados com horários demasiado preenchidos, com uma avalanche de matérias, com um volume excessivo de trabalhos etc.; e, se forem realmente bons e aplicados, não lhes sobrará muito tempo para o imprescindível descanso.
Dir-me-ão que é assim mesmo a vida: trabalho e mais trabalho, uma cruz. E eu objecto que não deveria sê-lo, que dado o nível actual da civilização, o lazer há muito que deveria ter sido instituído como a regra da vida humana.
O lazer, sim, o tempo óptimo para usufruir da existência sem a subjugação a tarefas extenuantes e muito pouco gratificantes, a muitos níveis. Objectar-me-ão que a nossa economia é demasiado débil para permitir tal usufruto. E eu refuto, afirmando o contrário.
Existe uma realidade económica e financeira chamada PIB - produto interno bruto - que corresponde, tanto quanto sei, à soma monetária de todos os produtos e serviços contabilizados num determinado tempo e num determinado país. Há algum tempo fiquei a saber que para a Saúde vão 6% do PIB e, mesmo considerando o facto de tal percentagem corresponder a vários milhões de euros, a cifra pareceu-me demasiado baixa, se pensarmos na distribuição dos restantes 94%. Para a Educação julgo que o valor atribuído será menor, rondando os 4% o que equivale, de novo, a alguns milhões de euros. Feitas as contas, estes dois importantes pilares da sociedade, usufruem de 10% de um total, sendo evidente que muitos milhões são atribuídos a sectores de menor relevância, desperdiçados, ou, muito simplesmente, desviados.
Logo, resulta claro que aos professores e aos alunos, bem como a todos os que intervêm neste sector prioritário de qualquer sociedade, poderia ser dada uma condição de vida muito superior - bastava distribuir correctamente as percentagens do PIB.
Desse modo, as escolas poderiam ter melhores condições, mais funcionários, mais professores, para reduzir o número de alunos por turma, a investigação acerca dos cursos oferecidos aos alunos, mediante as necessidades, poderia ser efectivamente levada a cabo, os vencimentos poderiam subir, criando novas oportunidades a uma classe esmagada e desprestigiada, os horários poderiam ser reduzidos, dando aos professores tempo para serem pessoas comuns e para poderem especializar-se, como devem e nem sempre podem e, talvez, então, falar das férias dos professores pudesse fazer sentido.
Mas, esta minha reflexão, utópica, mas viável, se acaso as pessoas percebessem a importância da educação (e da saúde, etc.), a encontrar eco um dia, teria como corolário a conquista feita pelo homem da sua humanidade. E, nesse preciso momento, deixaria de haver equívocos acerca da abundância de férias de que, efetivamente nós, professores, não desfrutamos agora.
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