domingo, 24 de janeiro de 2016

A NOVA JANELA


MIGUEL GOMES 
Espreito as nuvens cinzentas pelas últimas vezes deitado no azul de napa da cama. O mau tempo aligeira-se, ansioso, acredito, por fugir das intempéries em que se transformaram os pensamentos das pessoas. 

O Inverno troca rápidos olhares com a Primavera, encolhe os ombros e sacode a cabeça, fazendo cair um nevoeiro lento, que se vai pegando ao início da tarde como se clamasse pela noite, quando todos dormem e nos sonhos dos humanos vivem apenas os medos económicos.

Esforço-me por concentrar os dez minutos do exercício em várias palavras, armazenando em partes da memória pequenas letras que possa, depois, puxar como que por um cordel e vê-las saírem, uma a uma, formando frases. Infelizmente, a sede de sentir faz-me sorver todos os episódios que vou colhendo da plantação de esperanças, causando o deserto de palavras onde vou caminhando em círculos.

Pouso o, aos olhos dos outros bastão, cajado e preparo-me para nova ronda decimal em nova posição. Ao meu lado suspiros, inspiros, expiros, vozes retorcidas pelas bocas descaídas, desesperanças em forma de falência de forças e os assobios, longínquos, de alguém que se transpira como se a meio de uma jorna labutasse, agora que a terra é linóleo e o tubérculo um berlinde esponjoso que se vai espremendo, como o suado e molhado lenço a roçar na testa enquanto uma caneca de tinto se ergueria à boca.

Colocam-me a mão no joelho, perguntam-me se está tudo bem, assusto-me e provoco um sorriso. Habituei-me a olhar para fora, para o céu, a ver ainda que por imaginação o céu azul sobre o nublado tempo e temperamento, a ouvir as cenas de cada episódio e a deleitar-me com os bons dias trocados de gabinete para gabinete, os até amanhã se Deus quiser e as melhoras para todos. Como devo ter todas as constelações gravadas na memória, até as do hemisfério Sul, fito o infinito e sinto-me azul, talvez, da cor do mar por reflectir o que o ascende, e pelos esgares do firmamento vou admirando o que falta descobrir até encontrar tudo de novo.

Ouço o cantar assíncrono, o papel sob a cabeça resvala e cai no chão, ergo-me e vejo-o amparado a um andarilho, o sorriso em meia boca, os olhos que brilham e as vozes que o seguem e rimam, num cantar à aniversariante auxiliar pelas suas quase trinta primaveras. Confesso que me emociono e sorrio também ao ver a ruborescida cara da menina, no centro do ginásio, a ouvir os aplausos da merecida salva de palmas do final da canção, para a qual me orgulho de ter contribuído.

Terei que encontrar nova janela do que é meu para poder olhar, de novo, o céu. 

Deixo que a claridade se crepuscule e permito-me ver as nuvens da mesma forma que me vejo ao entardecer no reflexo do vidro do carro, enquanto me conduzo a casa.

As sombras estremecem porque se começam a ver sem luz e agora que o dia ausenta as sombras vítreas que me nebulam, saio no vaguear da noite optando-me vagabundo, sem amaras que não a própria vida, vou lesto e nu porque nada me veste além da luminosidade obscura que orvalha dos candeeiros solitários. 

Dispo-me enquanto se vestem, do berço até aqui, peça a peça, para me deitar em palhas dormindo, a saga de levantar nada e querer poder tirar pele que seja, desabotoar corpo e salgalhar por aí como pétala ao vento em dia de tempestade. 

A meio caminho encontro outros, mesma direção sentidos diferentes, eu na ânsia de me livrar do supérfluo, outros na superfluocidade de se livrarem da ânsia, sigo confiante com o que me resta enrolado debaixo do braço e um abraço a tiracolo. 

Quão longe poderá estar?

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