domingo, 17 de janeiro de 2016

FOTOGRAFIA DESVANECIDA

MIGUEL GOMES
Vejo-o apoiado no balcão. Separam-nos poucos meses de idade e muitos, muitos anos de vida separados, mas, ao mesmo tempo, juntos na cumplicidade que fica sempre que deixamos para trás os portões, outrora altos, da escola primária. Desde que o encontrei na fisioterapia, cada qual na sua função, eu de paciente impaciente e ele de benevolente bombeiro, que pensei para mim mesmo em guardar no telemóvel a fotografia de grupo, tirada no 2º ano, ou 2ª classe como prefiro dizer, nos degraus de acesso à porta de entrada da minha querida escola primária.

Noutros anos o, agora grande, balcão onde apoiamos cada um de nós um cotovelo, teria parecido enorme, um pouco como o muro que separava os dois edifícios da mesma escola, onde o desnível e o saltar para chegar em primeiro lugar à fila de distribuição do leite pareciam tarefas dignas dos ainda escassos e poucos afoitos super heróis que a televisão a preto e branco apresentava. 

Enquanto o tempo saboreia os cabelos brancos e se lembra de ser menos tempo, vamos respondendo sem falar às perguntas que inevitavelmente os olhos fazem quando se cruzam. Pouco há a dizer que mais do que um olhar, uma palmada nas costas, um aperto de mão firme e sentido e um desviar de olhar das cadeiras repletas de tempos e pessoas cicatrizadas, não sei se pela vida, se pela morte que nalguns casos parece tardar em chegar, não me pareça por falta de vontade, mas porque simplesmente, nalguns casos, parece vir alegre e pacata pela vida acima, cercando e colhendo os dias, um de cada vez, no lento padecimento de um corpo que se carcome por dentro, de dentro para fora, até se escoar o tempo na sua última hora.

Aumento a fotografia no ecrã usando dois dedos. Acredito que ao fazê-lo acaricie a mesma. Faço-o com o cuidado e carinho com que a professora fazia a cada um de nós, pirralhos inocentes, como que chovidos por nuvens de um céu outrora mais perto. Estamos perfilados, três filas em três degraus, meninos, meninas, professora e embora não os consigamos ver, andam por ali a volitar sonhos imensos em forma de corridas em redor da escola, caminhadas longas até casa, caminhos de terra e regos fundos de água seca, milheirais e laranjeiras.

Despeço-me, a vida encarrega-se certamente de nos cruzar mais à frente, nem que seja noutros igualmente volvidos 34 ou 35 anos, tu ficas por aí a escoltar de forma solene andarilhos, bengalas e muletas, suportando corpos de gente que não desiste. Eu vou andando, esforçando-me para não mancar, fazendo de conta que a porta do carro é o postigo que abro para o cãozito sair e vir bater-me nas pernas com o rabo enquanto olha para trás de mim e tenta perceber se é único que me consegue ver. Entro no carro, sento-me com cuidado, vergo-me numa vénia ao volante enquanto acomodo a almofada entre o banco e as costas. Fecho os olhos umas poucas vezes até surgir à minha frente a horizontalidade preferida e adequada para este novo dia azul que se pariu do céu após vários dias cinzentos de chuva, dou à chave contente, o painel ilumina-se, mas os meus olhos estão já na porta da escola, sobe-me o olhar pelas escadas por falta de coragem para o fazer pelas pedras salientes e, depois, alçar a perna sobre a grade, vão lestos pelo recreio, dão duas voltas à escola com os olhos a piscar alternadamente como os carros de polícia da balada de Hill Street, sobem os degraus sem se apoiarem no grosso corrimão de madeira e entram de rompante na sala cheia de ganapos. Estão com os olhos enfiados na sebenta, algumas línguas bailam de um canto da boca para outro, as mãos habituadas a pegarem em carros e caricas ou em bonecas de trapos e noutras mãos a bailar ao som do bom barqueiro, bom barqueiro, deixai-me passar, agarram o lápis e seguem solenemente o tracejado da primeira letra. 

Alguém buzina. Entro na auto-estrada, ligo os faróis. Volta-se o olhar para o caderno e chega a memória, sem cansaço, no requinte dos detalhes, dizendo-me que sim, é verdade que o dois parece-se mesmo com um patinho. Depois riem-se, olhar e memória, da caneta de filtro cor de laranja que utilizei para desenhar sardas na minha própria cara, das fichas de cor azul, dos problemas recortados do livro pelo picotado como pequenos bilhetes para um conhecimento hoje doutrinado. Alguém me ultrapassa, a deslocação do ar abana o carro. 

A fotografia desvanece, desbloqueio o telemóvel, o ecrã ilumina-se e lá estamos todos novamente, alinhados, inocentes e orgulhosos. Vem a tempo o tempo de me ver acordar com a pequena erva que a professora me coloca no ouvido, enquanto todos os meus colegas se riem da soneca que tirei sobre a carteira de madeira e tampo inclinado. Aperto as mãos no volante com força, como se sentisse a rugosa e áspera mesa, o sulco onde colocava o lápis e o circular buraco no centro onde, soube-o mais tarde, se colocar o tinteiro, coisa passada que a este passado não pertence. Paro. Desligo o carro. A dor espreita, mas de momento não estou disponível para ela, entretido que estou a pensar na caminhada de logo, à noite, por entre os muros de pedra que vi mingarem enquanto eles me viam crescer, imaginando e sentindo a sacola a bater nas costas, sem qualquer preocupação estética e estilística que assombrasse a igualdade de cada um de nós, putos, nos carreiros que fazíamos com as galochas nos caminhos moles de terra molhada, na esperança de um chã quente quando a mãe abrisse a porta de casa, um pão em forma de flor, a sacola aberta numa cadeira e os livros humedecidos sobre a mesa, as mãos pacientes da matriarca a tirar-nos as calças molhadas, a descalçar as meias e o apertar com as mãos os pés esbranquiçados da humidade que se secou à pele, a roupa pendurada nas costas de uma cadeira virada para o aquecedor a gáz, enquanto um testo tilintava numa dança sobre o tacho e o vapor se levantava com preguiça de subir pela chaminé e ver-se ali, entre o céu e o meu sonho. Saio do carro, bato a porta, não há ferrolhos ou despreocupações, tudo hoje se fecha e enclausura ao medo do que por aí anda, ainda que não se veja, sendo lá o que seja.

Deito mais um olhar à fotografia e bloqueio o telemóvel, caminhando despreocupadamente com a ignorância do conhecimento que dispenso.

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