Pergunta o exame nacional de Filosofia de 2015, III Grupo, 1:
“Haverá alguma circunstância em que seja moralmente aceitável matar uma pessoa inocente, sem o seu consentimento, para salvar a vida de outras cinco pessoas? Apresente as respostas que Kant e Mill dariam à questão anterior, comparando-as.”
REGINA SARDOEIRA |
Como é evidente, os manuais e os professores de Filosofia dão uma visão geral das posições éticas dos dois filósofos e os alunos, melhor ou pior, debitam-nas nas provas do exame. E as respostas são estas:
Kant diria que não: em nenhuma circunstância, e de acordo com o carácter deontológico da ética que ele defende, seria legítimo, do ponto de vista moral, executar um inocente para salvar cinco (que nem sabemos se são igualmente inocentes.) O imperativo categórico declara que devemos fazer o que a nossa vontade possa querer instituir em lei universal e nenhum ser racional pode querer que, matar um para salvar cinco, seja uma norma de conduta universal. Por outro lado, o imperativo categórico também ordena que devemos usar a humanidade, quer na nossa pessoa, quer na pessoa de outrem, sempre e exclusivamente como um fim e nunca como um meio. Ora, sacrificar um, para salvar cinco, é instrumentalizar esse, usando-o e à sua morte como meio para salvar os outros.
Stuart Mill, e a sua perspectiva ética, utilitarista e consequencialista, teria outra opinião: segundo esta versão da ética, deve promover-se a maior felicidade para o maior número de pessoas; sendo assim, aritmeticamente falando, um é menos do que cinco, logo salvar cinco, ainda que com o ónus da perda de um, seria moralmente legítimo.
O meu problema, ao reflectir sobre esta questão – e estive a fazê-lo 50 vezes – é de outra índole. Será legítimo perante jovens de 16/17 anos apresentar este dilema ético e fazê-los ponderar acerca de uma questão tão radical? Bem sei que aos jovens serão apresentados no futuro muitas problemáticas no âmbito dos valores e da moral e quanto mais eles estiverem de posse de instrumentos de clarificação dos actos, tanto melhor poderão decidir dilemas. O problema está na questão em si: “Haverá alguma circunstância em que…”
Necessário seria, em primeiro lugar, definir a circunstância. Imaginem seis náufragos, em pleno mar alto, desprovidos de reservas alimentares e ainda crentes na possibilidade de serem encontrados e sobreviverem. A certa altura, surge a “circunstância”. Os seis percebem que a solução é alimentarem-se de um deles e garantir que os outros cinco sobrevivem. Como escolhem? Tiram à sorte? Comem o mais velho? O mais novo? O mais fraco?
A resposta de Kant é taxativa: não se come nenhum, não se escolhe, nem se tira à sorte, nem se usa qualquer critério, em defesa da morte de um para salvar os outros. E se ele se sacrificar? Kant diz: não deve fazê-lo; estaria a instrumentalizar-se e a permitir universalizar uma lei moral que diria o seguinte: “Devemos deixar-nos comer para garantir a sobrevivência dos outros”. E o consequencialismo? Nestas circunstâncias diria que um deve deixar-se comer em prol do benefício dos outros? Ou que deve tirar-se à sorte? Ou escolher o mais fraco? Ou o mais débil? Aparentemente, o utilitarista daria a sua adesão a um tal acto; afinal, um morreria, mas os outros poderiam sobreviver à custa dele; o princípio da maior felicidade estaria garantido.
Agora imaginemos que estes nossos cinco náufragos acabavam por ser salvos e não tinham outro remédio senão admitir, depois, que conseguiram sobreviver porque se alimentaram de um deles. Imaginemos mesmo que, esse que foi sacrificado era o mais novo, não tinha família que dele dependesse e que acabou mesmo por aceitar ser sacrificado para benefício dos restantes, todos eles pais de família. Levados a tribunal, como iriam ser julgados? Que decisão deveria tomar o juiz? Por outro lado, como prever, em termos consequencialistas e utilitaristas, se o rapaz devorado pelos seus companheiros não teria um papel importante ainda a desempenhar na sociedade, no exercício do qual seria capaz de contribuir para a maior felicidade de todo um país? Como considerar um maior bem salvar aqueles cinco que, muito embora pais de família, poderiam também ser bêbados, desprezadores dos filhos, espancadores das mulheres e virtualmente capazes dos piores crimes?
Não creio que Stuart Mill pudesse, em sã consciência, aprovar este assassinato e consequente acto de canibalismo, mesmo perante uma tal circunstância.
Por esta razão, a questão, deste modo articulada, é capciosa.
Que pode dizer o aluno senão o que lhe ensinaram sobre as respectivas éticas de Kant e de Stuart Mill?
Muito mais produtivo e interessante seria perguntar-lhe: por qual delas optaria, se viesse a encontrar-se numa tal situação?
Sem dúvida que, numa tal circunstância, não é o mesmo fazer parte dos cinco que devem ser salvos ou ser a potencial vítima que, sacrificando-se ou sendo sacrificada, permitiria viver os demais. E assim, o jovem responderia, certamente, que seria consequencialista, caso estivesse do lado da maioria, e kantiano, se lhe coubesse a parte minoritária.
Qualquer um dos filósofos – Kant e Stuart Mill – fala em abstracto, desenvolve uma teoria. Na prática, não tenho a certeza se eles seriam capazes de decidir este dilema: Kant, porque ergueu uma ética baseada em princípios absolutos e o absoluto nem sempre pode ajustar-se à realidade, Mill porque fez depender os fundamentos da sua teoria ética em antevisões ou projecções futurísticas sobre as quais ninguém pode, em sã consciência, pronunciar-se.
“Não deves matar! Não deves usar a tua vida para salvar a de outros! Não deves usar a vida de outrem para salvar-te!” – proclamaria Kant, com o imperativo categórico em punho.
“Se da morte de um, resultar a vida de cinco, deve matar-se esse e salvar os restantes! O sacrificado deve aceitar que o seu sacrifício é necessário e útil para as consequências positivas da maioria! Maximizar a felicidade deve ser o objetivo dos indivíduos na sociedade mesmo que isso implique o sacrifício de uma minoria!” – gritaria Stuart Mill, brandindo o princípio da maior felicidade.
A seguir reflicto sobre as razões que terão levado os agentes que manipulam os conteúdos para exame nacional – manipulam, exactamente, porque a obrigatoriedade de estudar Stuart Mill surgiu apenas quando passou a ser um dos itens da matriz do exame, sem constar dos conteúdos programáticos da Filosofia, nem dos respectivos manuais. E, mesmo sem querer, ocorre-me que, sendo a doutrina ética kantiana demasiado radical no seu desinteresse, universalidade, recusa de instrumentalização, respeito pela autonomia, etc. e logo bastante difícil de fazer aceitar pelos estudantes, apresentar uma visão utilitarista e consequencialista é muito mais consentâneo com o mundo em que vivemos. Stuart Mill e antes dele Jeremy Bentham são conhecidos por defenderem o liberalismo económico e social o que, aparentemente, encaixa nas concepções dos tempos actuais. De facto, a democracia já não é o “governo do povo” como indica a palavra grega δημοκρατία – pois entre os gregos surgiu a primeira manifestação desse tipo de outorgação do poder às pessoas que decidiam directamente e em praça pública os seus destinos. O correr dos séculos manteve a democracia, como conceito, e mostrou ao mundo ser o regime político mais humanista. Mas foi-lhe acrescentado, enquanto conceito e enquanto forma de governo, uma série de adendas que acabaram por desfigurar totalmente o desígnio que a sua base continha. Hoje, o povo não detém o poder, cedeu os seus direitos a um conjunto de pessoas que elege – fez o designado Contrato Social, defendido por Jean-Jacques Rousseau – esperando que esses seus representantes cumpram o dever, apenas porque é o seu dever, já que para tal foram eleitos. Deve o povo esperar que os seus representantes o representem mesmo? Deve, pois para tal realizaram o contrato. Deve o povo esperar, por essa razão, que a sua vida esteja protegida, a todos os níveis? Deve, pois aqueles que o representam prometeram fazê-lo. E as promessas devem ser cumpridas? Devem, porque senão deixariam de ser promessas.
Mas, vejamos: se houver grupos, dentro dos grupos que foram investidos do poder do povo, por contrato, e esses grupos inter-grupos decidirem governar à revelia do povo, quebrando o contrato? E se entre todos decidirem como deve viver o povo, que os contratou para representantes, e se arvorarem em classe social, para além e em resguardo do povo a que sentem já não pertencer? Aí, nessas esferas, contrárias e à revelia do contrato social, gerar-se-ão interesses específicos e surgirão novas maiorias e novas minorias. Pergunta-se: será moralmente legítimo sacrificar uma minoria – os idosos, os doentes, por exemplo – para salvar a maioria – os jovens, os saudáveis, etc.? Será moralmente legítimo sacrificar um povo inteiro para servir interesses de outros e maiores países?
Kant continuaria a responder negativamente; Stuart Mill iria pela afirmativa. E assim se perpetuam as injustiças da designada democracia de base liberal ou neoliberal alicerçada no consequencialismo/utilitarismo.
Entre a ética absoluta de Kant que diz: “Faz o teu dever, porque é o teu dever e não leves em conta as consequências.”; “Faz apenas o que puderes querer universalizar.”; Não te uses nem uses os outros como meios para atingir fins.”, e o utilitarismo de Mill que apregoa: “Procura a felicidade e tem esse objectivo como fim último da tua acção.”; “Escolhe os meios de conseguires a maior felicidade para o maior número de pessoas possível mesmo que tenhas que sacrificar algumas.”, qual será a resposta que melhor se enquadra nas mentes dos jovens a quem foi feita a pergunta:
“Haverá alguma circunstância em que seja moralmente aceitável matar uma pessoa inocente, sem o seu consentimento, para salvar a vida de outras cinco pessoas?
Apresente as respostas que Kant e Mill dariam à questão anterior, comparando-as.”?
Se entre as 50 respostas que li, uma delas admitisse não saber que resposta dariam, respectivamente, Kant e Mill, apesar da aparente clareza das suas doutrinas, e fosse capaz de argumentar, eu ignoraria os critérios e dar-lhe-ia a cotação máxima. Mas a tanto não chega a preparação para os exames nacionais de Filosofia do 11º ano.