terça-feira, 2 de junho de 2015

COMO SE AVALIA A FILOSOFIA VS. CIDADANIA ?

REGINA SARDOEIRA 
A maior parte das pessoas considera que os filósofos são pessoas extremamente teóricas, cujos pensamentos tendem a tornar complexo o que é simples e que (para tudo exprimir em poucas palavras) andam nas nuvens! Ao mesmo tempo, hostilizam a filosofia dizendo que não serve para nada, que não tem valor prático e que estudá-la é, por isso, inútil.

A maior parte das pessoas está, todavia, errada. E os verdadeiros filósofos são extremamente práticos, tendem a transformar o complexo em simples e, longe de andarem nas nuvens, tem os pés firmemente assentes na terra. E a verdadeira filosofia, se praticada, é a mais útil das ciências, logo deve estudar-se, para levar à prática os seus ensinamentos.

Falo assim porque sou daquelas pessoas que leva a filosofia muito a sério e que por volta dos 15/16 anos rejeitei as aulas de filosofia do liceu, por me parecerem inúteis e me compelirem a decorar enunciados que tão pouco entendia adequadamente. Foi extremamente difícil ceder às exigências da minha professora e decorar o suficiente para passar de ano, já que eu acreditava ser a filosofia algo de muito diferente do que aquilo que me era servido em aulas muito fastidiosas. Apesar disso, segui para a universidade, licenciei-me em filosofia, embora, invariavelmente, tivesse esbarrado com professores que me obrigavam a decorar matéria e depois a “papagueá-la” nos exames. Recusei papaguear, levei o curso a ler o que me agradava e a estudar apenas o que considerava interessante e útil. O mais extraordinário é que consegui passar todos os exames, mesmo sem ler os apontamentos dos mestres, mesmo sem aparecer nas aulas a maior parte das vezes e lendo, das extensas e intragáveis bibliografias das “cadeiras”, apenas o que me agradava e me parecia ter algum interesse.

Percebi, no final da aventura que foi tirar semelhante curso, que o meu destino era ser professora de filosofia e, lembrando-me da maioria dos meus professores que matavam a filosofia em cada aula, não quis, à partida, seguir esse caminho. No entanto, vim a descobrir, em aulas dispersas, que, apesar de tudo, fui dando, que era capaz de usar os meus conhecimentos e fazê-los chegar até aos outros com tal eficácia que, nunca traindo a ciência das ciências, conseguia que os meus alunos obtivessem, em pouco tempo, o saber necessário para conseguirem bons resultados em exames nacionais.

Todo este relato vem a propósito de sentir (e saber) que pertenço a uma espécie de pessoas que põe em prática o conhecimento e que, apenas podendo fazê-lo, me interessa adquiri-lo. De igual modo, quando o passo para os outros, tento demonstrar-lhes que devem ver, nas questões e nas teorias dos filósofos, guias para a vida e contributos para a formação do pensamento pessoal e da aplicação à prática de viver.

Desde que conheci verdadeiramente o filósofo alemão Kant (e aprendi-o à minha própria custa, exclusivamente) que aderi sem dificuldades às linhas da sua filosofia moral a que ele chama, justamente, Razão Prática. Na moral kantiana não se trata de especular sobre os actos, juízos de valor, regras, mandamentos ou máximas, mas de os pôr em prática, em ordem ao bem e à virtude.

Há dois mandamentos kantianos (ou imperativos categóricos) que particularmente me têm servido como guia e por eles ajuízo do acerto ou desacerto do meu comportamento moral e também daqueles que, à minha frente, realizam acções.

O primeiro diz o seguinte. “Age de tal maneira que possas querer que a máxima da tua acção se converta em norma de conduta universal.”

Parece obscuro, talvez, e depois irrealista e nada prático. E contudo, vejamos melhor. Se, em cada momento, eu fizer somente o que a minha vontade deseja que possa ser uma regra universal – não se virando, por isso, contra mim e levando em conta o bem-estar de todos, não estará aqui um princípio prático capaz de endireitar o mundo?

Devo mentir? Não devo. E porquê? Porque é absurdo que a minha vontade possa querer instituir a mentira como regra de conduta universal. Devo roubar? Não devo. E porquê? Porque ao querer transformar o roubo em regra de conduta, legitimada universalmente, estou a admitir que eu própria seja roubada e que todos devem roubar-se uns aos outros. Multipliquemos os exemplos. Veremos sem dificuldade que apenas os actos virtuosos podem ser universalizados, sem contradição racional, enquanto todos os outros, sendo praticados, violam esta regra e voltam-se por esta razão contra nós mesmos.

Vou agora aplicar este mandamento kantiano a um acontecimento verídico, a um caso passado comigo e já divulgado nesta mesma publicação.

Estacionei mal o meu carro um destes dias. Deveria tê-lo feito? Não, porque a minha vontade não pode querer que todos estacionem ilegalmente e porque a carta de condução me torna, pela minha vontade, sujeita ao código das estradas.

A polícia deve multar-me quando descobre um carro mal estacionado, seja ele de quem for? Deve. Porque faz parte do seu código profissional, a que ficou sujeito, por inerência, logo que se tornou agente da autoridade. Logo, a vontade do agente deve querer que perante a detecção de um acto ilegítimo, por parte de um cidadão, ele cumpra o seu dever porque exactamente desse mesmo modo devem agir todos os demais agentes.

Portanto, eu deveria aceitar, sem discutir, a sanção prevista na lei para aquele delito e submeter-me a todas as consequências legais, visto que a minha razão e a minha vontade percebem que a manutenção da ordem passa pela observância das leis a que estamos todos vinculados, enquanto cidadãos.

Porém, um incidente travou a linearidade de um caso simples, e um elemento novo e nova avaliação foram introduzidos no decorrer dos acontecimentos. Quando me dirigia para o carro, um passo em falso fez-me cair. E tal aconteceu no exacto momento em que um agente da autoridade, saído de um carro também ali (mal estacionado como o meu, note-se!) se dirigia a mim para admoestar-me por estar mal estacionada. No momento em que o fez, eu estava no chão, caída, e logo que me levantei, sozinha, mostrei –lhe a minha contusão e disse-lhe que não me sentia bem.

Pergunto: à luz do mandamento kantiano, qual era o primeiro dever do agente? Multar-me, por estar em infracção evidente, ou prestar-me socorro (talvez bastasse deixar-me uns minutos a recuperar do choque)? Seguir com os procedimentos morosos da consulta dos documentos, do exame dos selos do carro, da redacção dos papéis necessários, da pressão sobre a necessidade de ir assinar (ao carro da polícia) e de pagar de imediato a multa, ou insistir para que fosse ao hospital, conduzir-me lá, ele próprio, e, depois de verificar que eu estava recuperada, passar-me a multa que, efectivamente, devia passar? O que deveria ele querer, primeiro, universalizar naquele momento, em que poderiam digladiar-se dentro dele dois imperativos: socorrer-me ou multar-me?

Eu não tive e não tenho dúvidas. O primeiro dever de alguém, quer perante si mesmo, quer perante os outros, diz respeito à preservação da vida, à assistência quando se está ferido ou doente; logo, a minha vontade quis que eu tratasse, em primeiro lugar da minha condição física e quis também que, em segundo lugar, sofresse os efeitos do meu incumprimento da lei. No entanto, a vontade do agente foi noutro sentido, de modo nenhum kantiano, de modo nenhum ético: “estou aqui para multar e é esse o meu dever; se ela caiu, não é problema meu – que vá tratar-se depois.” Logo, ele universalizou esta máxima de conduta e o que resulta daqui é o seguinte enunciado: “ Devo multar esta pessoa porque ela infringiu a lei, mesmo se a vejo a sangrar e com tonturas; e devo querer que qualquer pessoa aja deste modo em circunstâncias idênticas.”

E eu? Deveria ter entrado no carro, apesar de o agente estar a dirigir-se para mim, e ir para o hospital, onde seria assistida, dizendo-lhe: “Espere um pouco, vou tratar de mim e já volto!”? Ou deveria ter feito o que fiz: aguentar meia hora de sofrimento e mal-estar e só depois me deslocar ao hospital para serem avaliados os estragos do incidente?

Este pensamento fez-me meditar na segunda formulação do mandamento kantiano que diz o seguinte: “Age de tal maneira que uses a humanidade, quer na tua pessoa, quer na pessoa de outrem, sempre e unicamente como um fim e nunca como um meio.”

Perante este mandamento, falhámos ambos, eu e o agente. Eu deveria ter ido ao hospital de imediato, independentemente das consequências, tratando-me a mim mesma como um fim e resolvendo o meu problema, preservando a minha saúde e a minha integridade física; ele deveria ter olhado para mim como um fim – uma pessoa que necessitava de apoio – e não como um meio para cumprir qualquer meta de passagem de multas (estavam ali vários carros em transgressão) agendada para aquele momento pelo seu superior, decerto.

Não fugi do local para resolver o meu problema emergente, porque sabia que haveria consequências perniciosas para mim: usei-me como meio. O agente deu prioridade às ordens de passar multas que recebera e ignorou o incidente da minha queda, usando-se a ele próprio como meio para atingir o fim, cumprindo a ordem superior.

Resta somente um pormenor. O agente da autoridade agiu mal de várias maneiras. Procedeu com desumanidade, mesmo quando me perguntou, displicentemente, se queria uma ambulância (porque não a chamou logo, sem tão pouco me perguntar?). E eu? Devo dirigir-me ao seu local de trabalho e apresentar uma exposição dos factos para que o superior ou outra entidade qualquer o repreendam e, eventualmente, castiguem?

As máximas kantianas já expostas dizem-me que sim, que é esse o meu dever, que não posso querer que estes actos prepotentes e cruéis de uma autoridade, que não olha a meios para atingir os fins e achar que cumpriu o dever, se tornem normas de conduta universal. No extremo, eu poderia ter sofrido consequências mais graves e admiti, enquanto o agente me obrigava a responder a perguntas e a exibir documentos, etc, uma possibilidade de paragem digestiva ou outra mais grave consequência. Devo querer universalizar estes comportamentos considerando legítimo, no limite, deixar morrer alguém, apenas para passar uma multa? Não devo querer que o agente seja repreendido, apenas porque daí poderão advir consequências para mim, universalizando deste modo um comportamento displicente – da minha parte?

Passaram quatro dias sobre este incidente e ainda não estou refeita, nem física nem psicologicamente, nem nas minhas convicções acerca do que deve ser uma conduta verdadeiramente ética e logo humana. 

Serve este testemunho de filosofia prática para que a maioria das pessoas que rejeita o trabalho dos filósofos e a própria filosofia perceba que não é filósofo aquele que leu muitos livros de filosofia e sabe imensas teorias de cor, mas antes aquele que reflecte por si e leva até ao mundo os conhecimentos que recolheu nas lições dos grandes homens que foram (que são) os filósofos, e se auto-avalia, avaliando os outros, com o discernimento racional que a prática de pensar, para agir, se transformou nele numa segunda natureza.



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