terça-feira, 23 de junho de 2015

GAFANHOTO ALENTEJANO

REGINA SARDOEIRA
Pude um dia observar um gafanhoto – sou afortunada! A casa, alentejana típica, pintada de branco com uma barra azul forte, separando a alvura do toque negro da rua, tinha um pátio nas traseiras, por onde luzia um sol escaldante e quotidiano. Aí, haviam plantado duas árvores de fruto, ainda tenras naquele tempo, não mais altas que eu, meros arbustos esquálidos com algumas folhas longilíneas, uma nervura central mais espessa e umas dez mais ténues de cada lado do pequeno limbo, pessegueiros ou macieiras, não saberia dizê-lo com exactidão embora, agora que penso a sério no gafanhoto, me pareça que eram pessegueiros. O gafanhoto, claro, porque ali vinha ele todos os dias, exactamente à hora em que os homens almoçam, qualquer coisa entre as 12:30 e as 13:00 horas, poisava sobre a árvore, fazendo tremer a haste frágil, e com as suas mandíbulas, terríveis se ele fosse proporcional ao meu tamanho, mas apenas confrangedoras porque eram mandíbulas de gafanhoto, com uns insignificantes milímetros medidos em toda a sua extensão, ia comendo o tecido tenro metodicamente, à semelhança de quem come um peixe, isso mesmo, um peixe, pois, como se fosse uma espinha deixava intacta a nervura central, enquanto o limbo era devorado da orla para o fundo, primeiro, e do fundo para a orla, em seguida. Observar o gafanhoto, neste ritual imprevisível de almoçar toda uma folha de pessegueiro ainda impúbere (se assim podemos chamar a uma árvore emergente) constituiu uma experiência memorável, ver os olhinhos vivos, redondos e castanho irisado e as patas traseiras feitas para o salto, e ali dobradas, arrumadas por cima do dorso como se fossem instrumentos em repouso de uma oficina bem organizada, enquanto os dois pares de patas dianteiras seguravam firmemente a haste e as mandíbulas, dotadas de pequenos dentes, praticamente invisíveis, roíam o tutano da folha num discreto ruído de trituração tornou-se, também, o meu ritual da hora do almoço. Acreditem ou não, durante alguns dias, talvez duas ou três semanas ou nem tanto, aquele gafanhoto – porque eu tive a certeza que era sempre o mesmo – veio ali, poisou, mastigou e engoliu, sempre com o mesmo método, uma folha de pessegueiro por dia. Afeiçoei-me ao insecto, compreendem isto?

Não tendo comigo, na minha passagem exótica pelo mundo alentejano, qualquer animal de estimação, decidi, na medida do possível, adoptar o gafanhoto. Mas não imaginem que fui comprar uma gaiola e o levei para casa a fim de lhe servir, eu própria, a folha do pessegueiro! Não. Todos os dias, à mesma hora, dirigia-me ao pátio, procurava entre as folhas e lá estava o meu gafanhoto, deliciado, parecia-me, a comer o seu almoço ou quem sabe? a única refeição do seu dia. Onde ia, depois de comer, pois nunca ali o encontrei mais tarde, de onde vinha antes de comer, pois também por ali não estava de manhã, nunca pude vir a saber, nem tão pouco cheguei a vê-lo em movimento pelos ares, o que seria comum e eventualmente desinteressante. Mas vê-lo comer, ouvir o mastigar preciso das suas pequenas mandíbulas no acto solene e rigoroso de absorver o limbo da folha, pelo limite da nervura central, representou para mim um acto de intimidade com o bicho, inédito em toda a minha vida. Não poderei dizer se o gafanhoto soube que foi «o meu gafanhoto» durante aquele período, efémero, convenhamos, mas ainda assim de extraordinária longevidade, visto tratar-se de um gafanhoto. Suponho que ele não soube, suponho que ele não poderia ter sabido, afinal não passava de um gafanhoto e os gafanhotos nada sabem: não pensam!

Um dia, bruscamente, não porque tivesse roído todas as folhas da pequena árvore, não porque a minha presença o tivesse importunado, mas por razões que ignorarei para sempre, dado nada saber da vida enigmática do «meu gafanhoto», percebi que ele não regressaria nunca mais. E tive um desgosto. Afeiçoara-me ao visitante furtivo da árvore do pátio alentejano, aguardava com júbilo a hora em que o iria encontrar na sua solitária refeição, quase à mesma hora da minha, e logo que percebi que não voltaria a vê-lo, nem assistiria mais à refeição deleitada no aconchego vago do pequeno arbusto, senti o incómodo subtil, mas persistente, da perda de um amigo.

E ainda penso: que aconteceu ao gafanhoto, o meu pequeno amigo daqueles instantes furtados ao rigor da racionalidade, porque deixou, um dia, de assentar o seu corpo, frágil, se comparado com o meu, mas extraodinário de perfeição e vigor à sua escala de insecto poderoso, nos ramos daquele pessegueiro de folhas tenras e ainda escassas, e ali saciar o seu apetite e refazer as suas forças?

Não o saberei nunca, é claro, como disse ignorei sempre de onde vinha e para onde ia, antes e depois de ali se deter; talvez tivesse chegado a sua hora de deixar a vida, talvez o tivessem apanhado, homens ou outros bichos para dele fazerem malícia ou refeição, talvez tenha encontrado outras folhas mais suculentas ou mais propícias… o certo é que me deixou! E aquela árvore, aquele pátio de paredes brancas, com a orla azul a separar a alvura, do chão escurecido pelo pó e pelos passos, nunca mais foram os mesmos, desde então.

Há vários anos que perdi o meu gafanhoto alentejano, mas penso muitas vezes nele, acreditem. Talvez julguem que é loucura e eu julgo-o convosco, de bom grado: afinal, seres respeitáveis que somos, do alto das nossas cátedras racionais, porque havemos de prender-nos a insectos, mesmo que sejam gafanhotos corpulentos a saciarem a fome nas folhas nutritivas de uma árvore tenra? Mas a verdade é que, durante os dias em que observei a refeição ritualística, no calor opaco da primavera alentejana, senti uma unidade transcendente com a natureza, de que também sou feita, e acabei por perceber que me havia sido dado o privilégio de sorver a pureza de um gesto, a verdade de uma vida ainda não contaminada. E isso constitui, até hoje, uma espécie de refúgio cristalino quando preciso operar a catarse, após certos mergulhos no visco turvo da perversão humana. Hoje, finalmente, contei a história do meu gafanhoto alentejano que me deixou prematuramente, antes de o observar tão profundamente quanto desejava, a ponto de ter chegado a dar-lhe um nome e a desvendar-lhe, quem sabe?, uma psicologia própria… mas, por isso mesmo, na exacta medida em que não o desvendei até ao âmago, e nunca cheguei a querer possuí-lo ou sequer a agarrá-lo, retendo-o para mim, guardo dessa espécie de relação marginal uma intensa e viva memória: aquele gafanhoto anónimo, plasmado no verde discreto de uma árvore humilde, nunca me desiludirá, nunca envelhecerá nas linhas do meu pensamento e veio a tornar-se, por essa via, o perfeito paradigma das relações humanas, tão enviesadas e distorcidas pela posse e pelo engano, que mais vale delas ver-me privada para sempre.

Onde quer que estejas e mesmo que não estejas há muito em lado nenhum, louvo-te, pequeno gafanhoto da planície doirada, porque me ensinaste a intimidade transcendente das trocas invioláveis, só possíveis nos limiares da fantasia, onde o sonho se converte na autêntica expressão da realidade.

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