MIGUEL GOMES |
A candeia não vai à frente, alumia apenas uma vez e isso basta, o suor cai por vezes nas bagas órfãs e estas rebolam-se como que felizes.
O odor ainda não acidou, a mistura de cimento barrento e terra faz as vezes de chão, os pés são nutriente de uma noite que vai cair tarda nada e os garrafões de vidro e vime emparedam as laterais de uma quase cave, conquistada ao ventre do solo, sob o soalho de pinho repousado em vigas grossas de carvalho talhadas de goiva e ostentando a finura de uma veia cava saliente.
De cima pendem as teias de aranha, o barulho de passos da mãe, falecida, ecoam na memória, mas mesmo assim, ainda que quase perdidos no esquecimento de quem de filho se fez homem e de homem se fez pai, dão qualidade à degustação de um vinho, zurrapa, como se pela espuma vermelha, rosa, se pudessem limpar os lábios de um beijo saudoso.
Dizem que não dá para o lucro.
Nem para o prejuízo.
Mas, pelo menos, dá para a fermentação da idade madura, amadurecendo as memórias dos tempos descalços onde as leiras conquistavam os cumes dos pequenos passos de petiz, foi assim que Deus quis, mundo feito de vindima por quem de homem e mulher se encima, a sede e o calor, o lenço na testa, a golfada perdida num conto, o corpo atirado a um canto e enquanto uns vindimam outros, na enxertia da adolescência, se dão ao passo ligeiro do amor e ocultos pela límpida tarde de um sábado que fecha os olhos ao que não quer outros vislumbrem, se dão ao esmagamento de uvas e de corpo, um contra o outro, assim se quer o principiar da vida, adulta, mão suada no peito firme, mão caída na rigidez de vime, um escasso minuto de oxidação e tudo se resume à história contada daqui a tempos, nas sombras que a lareira tem, “foi assim que conheci tua mãe”.
É de golfada ligeira, quase sem parágrafo, que as tesouras de poda se convertem ao degrau de passada larga das escadas de madeira, bailaram no bolso de trás da calça remendada presa nas presilhas pela verde fiteira, escorregadia, que há-de amarrar o saco lá mais para o final do dia.
Cuidado com esses aí, uma unha rasga tanto como a navalha e se por um lanho se vem à vida, por outro se esvai o vinho, vá de lá essa cura, o que aperta segura, cuidado, já não disse?, e a canalhada ri-se, de cu espetado no ar enquanto dedos de atirar caricas se mexem lestos por entre ervas e catam os bagos que caíram do alto do cacho, migalhinhas são pão!, e era um molete que comia este moleque.
Há-de cair açúcar, de cana, no lagar e este, como ventre de mãe, vai-se mexendo devagar pelas pernas adultas e varizadas, contadas nas antigas coutadas por onde marchavam exércitos de homens e mulheres, atentas, ao esperneio maduro de músculos como que avançando ficticiamente pelas leveduras enquanto a vida se encarregava das agruras, sonham pelo alcançar do seio de encontro ao ombro quando lhe forem servir o jantar e, talvez, entre uma caneca e um naco de boroa, alguém se lembre da concertina e enquanto o vinho fervilha no lagar entregue aos cuidados do tempo, o bailarico faça degustar as rodas e as luzes a rodopiar e os corpos que se vindimam num ligeiro enamorar.
O mundo vai tampando o olhar ao que fica, pouco lhe importa se está macerado o homem, aqui sentado no mocho velho, a ouvir o que lhe diz o filho de suas mãos, engana o tempo e a idade, se a saúde não chega para erguer o corpo, posso eu levantar o copo, olhar néctar e fazer-me religião, não te quero o pão, apenas este o meu sangue, que se derrama para remissão dos meus pecados.
Perde as horas quando lhe batem com o pé no soalho, anda comer caralho!, e ele acossado pela acidez humana engarrafa a recordação e bebe um gole de sulfitos, remédio para os aflitos, qualquer dia dá-lhe a degustação na solução e acaba-se.
Hei-de agarrar-me à videira, quedando-se-me as pernas que me caia também o serrote na jeira, eu que tanto tinto e branco trouxe na estima, verto-me em enzima e podarei o meu olhar quando erguer a face para sentir a chuva na cara e adormecer colhido, para que me façam o gosto e me amassem na memória, como o mosto.
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