REGINA SARDOEIRA |
Estou aqui a reflectir sobre a palavra “rasteira” e a descodificá-la como correspondendo a uma armadilha, a um obstáculo que se deixa no caminho, de propósito, para alguém tropeçar e cair, a um modo falso ou falacioso de proferir um enunciado, de maneira que aqueles com quem falamos sejam ludibriados. Se penso, aqui e agora, em “rasteira” é na exacta medida em que acabo de ouvir/ler uma reportagem da Antena 1 acerca dos exames nacionais hoje realizados. E cito: “Já quanto a Filosofia as coisas não correram tão bem: alunos e professores dizem que esta prova tinha algumas “rasteiras”.”
De imediato me sinto apoiada a vários níveis com esta palavra tão certeiramente aplicada ao exame de Filosofia e à Filosofia que nos obrigam a dar aos alunos do ensino secundário (e note-se que não escrevi “ensinar”, mas sim, “dar”). Precisamente: este exame de Filosofia, como outros exames de Filosofia do mesmo teor, apoiados num programa de Filosofia absolutamente inadequado não pode deixar de ser uma tremenda “rasteira”.
Mas falemos, antes de mais, do exame nacional, em si, seja ele de que área for. Vejamos se também os exames nacionais de Português, Matemática, Geografia, etc. são rasteiras passadas a alunos e professores.
Durante dois ou três anos, consoante os casos, os alunos são avaliados, de modo contínuo, quer através de testes, quer através de trabalhos escritos ou orais, quer através das suas atitudes e comportamento, e o professor vai-os conhecendo, gradualmente, vai-os classificando, numa sucessão de três períodos (ao longo de cada ano). Tratando-se de professores normais, que dão aulas normais a alunos normais (deixo de lado as excepções), posso dizer, com algum rigor, que, no final desses dois ou três anos, o professor conhece bem o seu aluno, pelo que a avaliação definitiva que lhe atribui deve corresponder ao valor global do aluno – uma vez que esse valor tem que ser traduzido de modo quantitativo.
No termo dos dois ou três anos, esse aluno, já classificado por aquele ou aqueles que tão bem puderam conhecê-lo, para avaliá-lo, é obrigado a preparar-se para um exame nacional e, em duas horas, deve responder a um conjunto de perguntas e resolver um certo número de itens, relativos às matérias já leccionadas e avaliadas nos dois ou três anos anteriores. Primeira rasteira: em duas horas, joga-se todo o trabalho feito em dois/três anos lectivos. Posteriormente, os exames são entregues, sob anonimato, a um professor/corrector a quem dão, ao mesmo tempo, instruções de correcção, critérios e propostas de resposta. Esta rasteira é para o corrector que fica refém das orientações que lhe são dadas e, não fazendo ideia de quem é a prova que está a corrigir, trata o que está escrito no papel de modo impessoal, seco, burocrático. Ele não sabe se a nota do exame era muito ou pouco importante para o aluno, ignora se o aluno estava nervoso ou preocupado com a situação exepcional do exame, nada conhece das características pessoais daquela entidade numerada; apenas sabe que terá que classificar a prova (para o bem ou para o mal).
Por outro lado, há todo um teatro, nas salas onde decorrem os exames, que é, a todos os níveis, absolutamente extraordinário. Dois professores aguardam os alunos e fazem-nos sentar, de acordo com a lista ordenada alfabeticamente; obrigam-nos a largar tudo o que transportam consigo num local designado; analisam se ele tem em seu poder apenas material de escrita e, se houver necessidade de outros suportes, como máquinas calculadoras ou dicionários, um professor especialista é seleccionado para vir examinar se tais materiais são autorizados ou se esconderão alguma possibilidade de fraude; lêem-lhe um decálogo de regras do comportamento que deverão assumir durante o exame e logo que acabe; se transportam consigo uma garrafa de água, fazem-no descolar o rótulo; e agora até certos relógios mais avançados terão que ser apreendidos, pelo que os próprios relógios se revelam objectos suspeitos! As folhas têm que ser preenchidas de uma certa maneira, sob pena de terem que ser inutilizadas ou rasuradas, burocraticamente, com duas assinaturas, etc. Os dois professores vigilantes e os alunos devem permanecer ali duas horas (e mais) absolutamente silenciosos e pouco mais do que hirtos, zelando para que tudo decorra conforme o estipulado.
Tudo isto constitui uma série de rasteiras, quer para quem vigia, que precisa assemelhar-se a um polícia e escrutinar rigorosamente os alunos, quer para os alunos, já à partida colocados num acto excepcional e ainda submetidos a tão estrita e suspeitosa vigilância.
Dir-me-ão que sempre assim foi, que o exame exige estes procedimentos para ser credível e isento, que é necessário o sigilo e o anonimato para não haver embustes; e eu objecto que o próprio exame é, em si mesmo, na sua condição aferidora e na sua excessiva importância, um embuste, uma rasteira.
Os alunos vão fazer exame porque são obrigados; mas só a algumas matérias. Há, desse modo, matérias de primeira (as que são, obrigatoriamente, sujeitas a exame nacional) e matérias de segunda (as que dispensam essa aferição). Algumas são importantes para compor a média dos alunos que querem seguir para a universidade; outras, nem por isso.
O exame de Filosofia, que o aluno pode ou não realizar no final do 11º ano é, decerto, o mais estranho de todos. Em primeiro lugar, não é obrigatório: mas pode servir para libertar o aluno de realizar uma das outras duas provas obrigatórias que deve realizar. Exemplificando. O aluno é da área de ciências e deve fazer obrigatoriamente exame nacional de Física e Química e de Biologia – mas pode trocar um destes por Filosofia; O aluno é da área de Humanidades e deve fazer obrigatoriamente exame nacional de Geografia e História – mas pode trocar um destes por Filosofia.
Nunca entendi que espécie de vantagem tem o aluno que substitui Física e Química por Filosofia, ou Geografia por Filosofia, a não ser trocar um mal maior (a Física e Química ou a Geografia) por um mal menor (a Filosofia); mas também não consigo entender por que há-de a Filosofia aparecer a esses alunos como um mal menor! Que os exames são males, isso parece não haver dúvidas (eu sou do tempo em que as notas elevadas de frequência produziam dispensa de exames…porque o exame era um mal a evitar e as boas notas tinham esse poder!), mas por que razão a Filosofia teve que converter-se numa oportunidade de fugir a uma matéria tida como mais difícil e valer o mesmo (ou seja o aluno fica aprovado ou não com o exame de Filosofia, como ficaria com o de Física e Química ou Geografia) quando as diferenças entre as matérias são abissais…isso não me entra na cabeça! Agora se me disserem que fazer o exame de Filosofia permite obter uma nota que pode dar acesso à universidade (mesmo tratando-se de uma disciplina de formação geral e não específica)…essa razão posso atender. Mas, tanto quanto sei, nem para entrar no curso de Filosofia é exigida, especifica e absolutamente, uma nota de exame a Filosofia!
Sendo assim, como credibilizar este exame? É evidente que os alunos que decidem fazer exame de Filosofia não se interessam propriamente pela Filosofia, antes querem livrar-se de uma disciplina que, segundo eles, lhes traria mais trabalho! Por outro lado, consultando, as médias de exame nacional do ano passado a Filosofia – 9,7 – não creio que a troca tenha sido excepcionalmente benéfica, percebendo que a Física e Química a média foi de 8,8 e a Geografia de 10,5!
Escrevo todas estas considerações e sinto um certo desconforto. O conceito de exame nacional não faz grande sentido, neste tempo marcado por tantas diferenças de norte a sul do país e mesmo dentro de uma mesma cidade ou região.
No que diz respeito à Filosofia, por exemplo, há dois anos atrás o Ministério decidiu apresentar um programa para exame não coincidente com o programa que era lecionado durante o ano. Logo, os professores necessitaram de fornecer apontamentos- extra aos alunos, visto que os manuais adoptados não incluíam esses assuntos.
Stuart Mill e David Hume, por exemplo, não eram estudados em profundidade: mas o exame obrigou a tal. Descartes era leccionado como exemplo do racionalismo, juntamente com Platão e Kant: de um momento para o outro o exame questiona Descartes com uma certa profundidade, ignora Kant no que concerne à Gnosiologia, pede aos alunos que comparem as ideias dos filósofos…Quanto a mim, afirmo que, para que os alunos pudessem efectivamente compreender Descartes ou Kant ou David Hume, necessário seria um estudo muito mais profundo e durante muito mais tempo. Desde o ano passado que os manuais de Filosofia passaram a incluir estes temas não-obrigatórios e alguns trazem mesmo a tarjeta: Matéria sujeita a avaliação externa. Mas isto não significa que os professores tenham sido informados acerca da alteração dos programas ou tão pouco tenham sido consultados a esse respeito: sai no exame, logo é obrigatório, mesmo que à partida, não conste das planificações.
Rasteiras e embustes: eis o que me parece ser qualquer exame nacional. Rasteiras e embustes: eis o que julgo serem os rankings das escolas efectuados friamente, com base nos resultados dos exames; rasteiras e embustes: eis o que considero ser a avaliação dos alunos feita nesta base e consequente avaliação do professor.
Eu, por exemplo, passei este fim-de-semana um pouco nervosa, pois não pude deixar de pensar que um grupo de dezasseis dos meus alunos iriam submeter-se hoje à prova de Filosofia – para não fazerem outras, tidas como piores (para eles) – e que semelhantes alunos decerto vão descer a sua (em geral) já baixa classificação de frequência. Tentei alertá-los para isso e fiz o esforço (a que não sou obrigada) de dar-lhes aulas de apoio para o exame. Fiquei estonteada, pois percebi que os temas do 10º ano já estavam no limbo e os do início do 11º seguiam o mesmo caminho. Sei que os alunos estudam nas vésperas: como guiá-los em tão pouco tempo na imensidão de problemas que a ciência filosófica alberga? Como dar-lhes a fórmula capaz de, uma vez decorada, resolver todas as questões? Não dei. Ou se dei, foi insuficiente porque veio a rasteira: os alunos foram questionados sobre estética, filosofia da arte, géneros artísticos – e não há, decerto, tema mais complexo do que ajuizar filosoficamente sobre a obra de arte. Ora, ao longo dos anos, este tema não foi incluído nos exames nacionais, e eu imaginava que afinal haveria alguma sensatez nas mentes de quem elaborava as provas. Não dei ênfase ao assunto: mas ele lá está, na prova, como rasteira!
Não chegavam Kant, Stuart Mill, Locke, Rawls, Descartes, David Hume, Popper e Kuhn? Não era suficiente a lógica e as regras do silogismo, a retórica e as falácias? O determinismo e o livre arbítrio e as éticas deontológicas e utilitaristas? E o conhecimento prático ou por contacto ou proposicional e se a crença justifica ou não o conhecimento? E…?
Não, era necessário que os alunos soubessem falar também de arte e de estética, dessem a sua opinião acerca do expressionismo e de sei lá que mais e se movimentassem nesse universo tão escorregadio como é o da conceptualização da arte e da obra de arte!
Rasteiras. Embustes. Eis o que penso dos exames nacionais e um pouco de todo o sistema de ensino em Portugal.
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