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REGINA SARDOEIRA |
Nesta crónica, que será a última de 2014, decidi partilhar com os leitores um tema muito específico. E, se vou fazê-lo, é na medida em que, ao efetuar o balanço do meu ano, percebo que uma circunstância fez pender a sua nota valorativa para o lado negativo.
Enquanto professora, com maior ou menor sucesso junto dos alunos, sempre consegui levar as aulas a bom termo. E, se tive problemas, nas muitas turmas que me passaram à frente, de comportamento menos bom, de motivação diminuta, de aproveitamento mais reduzido, fui sendo capaz de equacionar as diversas situações e resolvê-las satisfatoriamente.
Porém, este ano letivo cujo primeiro período terminou, trouxe-me uma experiência absolutamente nova. Uma experiência que me abalou como nunca e me fez perder o controlo e o autocontrolo, deslizando para águas movediças, cuja profundidade e sentido não entendi ainda e provavelmente não chegarei a entender.
Creio que a função de um professor continua a ser ensinar. Ensinar, no sentido mais amplo do termo, pois, postados à frente, no meio, ou atrás dos alunos, nós, professores, vamos passando múltiplas mensagens, desde as que constam das planificações e dos currículos disciplinares, até às de caráter formativo, no contexto lato da pedagogia. Não sou capaz de dar uma aula, sabendo que um aluno, lá ao fundo, ou ao meio ou à minha frente está distraído e logo não absorve, minimamente, o que tenho para dar-lhe; preciso de ver a turma atenta, preciso de sentir que as minhas palavras atingem o auditório, preciso de sair da aula com a sensação de que alguma coisa aconteceu.
Como é óbvio, para obter este resultado, preciso de lutar. Tenho que inventar-me e reinventar-me, constantemente, e inventar e reinventar constantemente o modo de apresentar os assuntos e os próprios assuntos. E sei perfeitamente, tão perfeitamente que posso concretizar com os próprios exemplos, que houve aulas em que falhei, alunos e turmas a que não consegui chegar em pleno.
Mas nada me preparou para o grupo de 20 alunos que este ano letivo me coube em sorte. Nada, nem sequer o que, em anos passados, ia ouvindo de colegas, me pôs de sobreaviso em relação ao espírito deste punhado de jovens a quem devo lecionar Psicologia. Confesso que tudo o que fui ouvindo, em conversas de acaso, sobre este tipo específico de turmas e de alunos me pareceu sempre exagerado: eu não conseguia crer que numa escola habitassem jovens cujo único objetivo era impedir os professores de dar aulas, ter atitudes e comportamentos impróprios, estar ali, porque os obrigam, à revelia do seu próprio desejo, defraudando qualquer expectativa de sucesso mútuo.
Quando enfrentei aqueles alunos pela primeira vez, comecei a compreender, abriu-se um pequeno halo de luz ao fundo do túnel, vi que, realmente, tinha deparado com outro universo.
Percebi, em primeiro lugar, que eles estavam ali à força, ou seja: até completarem a escolaridade obrigatória – 12º ano – ou até atingirem a maioridade civil, o estado obriga-os a ir à escola (“Se não viermos, a polícia vai buscar-nos a casa!”, disseram-me.). Entender esta realidade constituiu a minha primeira perplexidade.
Olhei para eles, um após outro: vi tédio, revolta, cansaço, desafio; e depois tomei consciência de eles serem uma espécie de exilados ou asilados, de certo modo banidos do designado ensino regular por falta de capacidade, motivação, ou tudo junto, e, arrumados naqueles cursos, classificados como “profissionais”, para, com mais facilidade e menos exigência conseguirem o diploma da escolaridade obrigatória completa. Esse certificado (e apenas isso) é tudo o que eles desejam (sem o desejarem de facto, já que são obrigados a tal) e é por ele que estão ali: aprender seja o que for, criar uma cumplicidade com o professor, de modo a enriquecerem-se reciprocamente, ocupar os minutos e as horas e os dias das aulas, de forma construtiva, em ordem à sua formação humana, e tudo o mais que leva o professor a programar uma aula e o aluno a apropriar-se dela, eis o que não lhes interessa minimamente.
Logo que fiz esta descoberta, esforcei-me, quis incutir-lhes algum estímulo, mandei vir os livros e criei os materiais, tentando fazer-lhes ver que a Psicologia, sendo o estudo do próprio eu, poderia dar-lhes indicações importantes para se compreenderem a si mesmos e ao mundo, onde inevitavelmente serão largados, mais tarde ou mais cedo.
Tarefa vã. Os livros estiolaram sobre as mesas e as palavras que usei para explicar-lhes os conteúdos, soaram no vazio de uma sala, ao mesmo tempo que os destinatários tentavam – com êxito – prestar atenção a todo um conjunto de estímulos (os telemóveis, a música, as brincadeiras, os risos, o pregar partidas, etc.), interrompendo constantemente a explicação, com palavreado inadequado, com pedidos para sair, com propostas para irem para outro lugar, porque estava calor ou frio, ou noutro sítio qualquer seria bem melhor…
Não quis castigá-los, expulsando-os da sala, porque essa não é uma tarefa simples e não surte qualquer resultado. Teria que chamar o funcionário, preencher uma ficha, enviá-los para o Gabinete de Apoio Disciplinar, onde novas fichas seriam preenchidas, pelos próprios expulsos e pelo professor ali destacado, fichas, a seguir, arquivadas, tempo passado, repreensões dadas, mas não assimiladas enquanto tal…não, esse não iria ser o meu caminho. E disse-lhes.
Expliquei-lhes, pacientemente, tudo o que precisava que eles me dessem, para que as aulas fizessem sentido; pedi ao diretor da escola que me coadjuvasse, com a sua autoridade e reforçasse, assim, a minha mensagem; desdobrei-me na criação de materiais, essencialmente audiovisuais e até comprei cadernos para que registassem os sumários e neles escrevessem apontamentos! Nada, mas absolutamente nada, mudou o espírito – obstinado em não aprender, tendente a desrespeitar a boa ordem, a manifestar repúdio pelas matérias, a pedir sempre para estar num sítio diferente – daquele conjunto de alunos!
Ainda por cima, os cursos profissionais, para nós, professores, são extremamente exigentes. Temos que elaborar o material e arquivá-lo, em pasta própria, recolher trabalhos feitos na aula e submetê-los de igual modo ao arquivo, elaborar um cronograma de aulas e uma planificação rigorosos que têm que ser seguidos à risca, sem uma falha – qualquer falta tem que ser reposta para que o cronograma se efetue, de facto – há uma plataforma informática onde temos que fazer o registo rigoroso dos sumários, das classificações, das faltas etc., para além de termos que manter em ordem o livro de ponto; no tempo certo e exato da conclusão de um módulo, temos que o registar nas sedes próprias (livro de ponto, programa informático) e a seguir elaborar uma prova, aplicá-la aos alunos, corrigir e dar-lhe as conhecer o resultado, pedir que façam a autoavaliação e a avaliação do professor…provavelmente haverá mais ainda que deve ser feito e que não consegui, até agora, absorver!
Enquanto tal decorre, da parte de quem leciona, do outro lado, a total e absoluta indiferença. Aprender? Não querem. Estar atentos nas aulas? Nem pensar. Comportarem-se devidamente, com educação e compostura? Não sabem, ou não querem. Tomar apontamentos, registar os sumários, fazer as consultas necessárias? Dá muito trabalho.
Durante os três meses do primeiro período, fui ter com aqueles alunos três dias por semana. Dei-lhes quase 60 aulas. Lecionei um dos três módulos que constituem o programa, apliquei a prova respetiva, informei-os dos resultados e classifiquei-os, iniciei o módulo seguinte e deixei-os ver filmes, uma vez (pedido renovado diariamente), ir para a biblioteca (porque está mais confortável) uma vez ou duas, e lutei todos os minutos de todas aquelas horas para que me escutassem, para que realizassem os trabalhos que lhes fui propondo, para que estivessem quietos e calados e se comportassem com educação.
Cheguei ao final do período a considerar-me vencida: não, não sou capaz de cumprir a minha função junto daqueles alunos, sei que apesar de lhes ter dado tantas aulas e tantos conteúdos nada ficou, naquelas cabeças ocupadas com outros objetivos, nada marcará a vida deles daqui para a frente só pelo facto de me terem tido, a mim, como professora de Psicologia.
Falando com colegas, também eles a lecionar este tipo de turmas, fui ouvindo dizer sempre o mesmo: eles não querem, não aprendem, não vale a pena!
E eu, perplexa, sempre perplexa: e então, o que faço eu nas aulas? Deixo-os ver um filme sempre que me pedirem? Ouvir música? Conversar em alta voz e cantar e brincar, enquanto dura a aula? Faço de conta que aquilo é normal e deixo andar, enquanto sumario matéria que não dou (porque não posso) e lhes facilito os testes até ao máximo e permito que troquem impressões, uns com os outros, enquanto os fazem? Sento-me junto deles e jogo as cartas, ou oiço música ou canto e danço ou sei lá o quê (o sumário está feito, o cronograma cumpre-se, os papéis arquivam-se)? Com a consciência da minha incapacidade de os vencer, junto-me a eles e salvo a minha sanidade?
As férias chegarão ao termo dentro de dias. Daqui, exatamente, a uma semana, saberei que vou enfrentá-los no dia seguinte. Como farei a minha aparição naquela sala de aulas – um monobloco pré-fabricado (de que eles se queixam) já que a escola está em obras – de modo a manter a serenidade, de modo a não trair as minhas convicções, enquanto professora?
Tenho pensado sobre o assunto e, de duas soluções possíveis, a nenhuma me apraz aderir: tento ser a professora normal que costumo ser e continuo a diligenciar ensinar-lhes Psicologia, sabendo que falharei, mas tentando, apesar de tudo, ou entro na atitude displicente que eles talvez desejem e deixo-os fazer tudo o que quiserem e o capricho lhes ditar, no exato momento da minha aula?
Escrevo estas reflexões e, ao mesmo tempo, vou meditando sobre o tempo e o mundo que engendrou esta situação. Percebo que a culpa não é deles, já que um sistema aberrante inventou uma obrigatoriedade de aprendizagem teórica, mesmo para quem talvez estivesse melhor a fazer qualquer outra coisa de útil. Se alguém pensa que os cursos profissionais são práticos, que se desengane rapidamente: o horário deles está repleto de matérias que exigem esforço de atenção, raciocínio abstrato, cálculo. Lá estão a Matemática, a Língua Portuguesa e a Estrangeira, a Psicologia e outras matérias que os fazem sentar a uma mesa e realizar tarefas de que foram dispensados, aparentemente, quando se inscreveram num Curso Profissional: não imagino que tipo de profissionais virão a ser aqueles jovens, absolutamente impreparados, num mundo onde mesmo os preparados não encontram profissão. Por outro lado questiono-me: e eu? Que estou ali a fazer com o meu arsenal de conhecimentos teórico-práticos e os temas da Psicologia, que reconheço tão apropriados ao cariz de tais alunos? Que faço eu ali? Qual o meu papel, no fim de contas? Se não posso ensinar, nem motivá-los para a aprendizagem, se nada produz o mínimo efeito e nem consigo que sintam por mim uma simples empatia – porque estou no caminho oposto ao que eles querem trilhar – por que razão continuarei a ir, dia a dia, semana a semana, para semelhante local de mútuo sacrifício?
Todos sabemos que a vida é dura. Todos sabemos que há missões difíceis. Todos sabemos que ser professor é um trabalho intenso, duro e quantas vezes rude. Eu, pelo menos, sei-o. Mas vencer os desafios da dureza, da dificuldade, da rudeza pode trazer a recompensa gratificante do resultado. E julgo que todos sabemos (eu, pelo menos, sei-o) que quando o nosso esforço dá frutos e os vemos acrescentados naqueles que nos são dados para educar, nunca mais pensamos na dor e no sacrifício, para nos deleitarmos apenas com a obra realizada. Porém, se durante três meses, bati invariavelmente contra uma parede que nada me devolveu e a quem nada consegui dar, se durante três meses pus a minha imaginação e capacidades à prova, para sentir, invariavelmente o sabor amargo da derrota, não será que alguma coisa de muito errado, e absurdo e até aberrante está a passar-se nestes ghettos que são os cursos profissionais que prendem os alunos a um cativeiro que eles não pediram e não desejam e os professores a uma luta sem tréguas e sem vitória à vista?
Continuo perplexa e não faço ideia como vou iniciar o novo ano e o novo período letivo, nesta circunstância específica da turma de ensino profissional que me foi distribuída. Dir-me-ão que tenho sorte: há quem lecione três, seis, sei lá quantas turmas deste jaez – ou pior, porque dizem-me que no ano anterior esta mesma turma, agora expurgada de 9 elementos muito mais perniciosos, deu ainda mais problemas – há quem o faça e sobreviva, mesmo admitindo que os alunos não querem saber de nada, mesmo saindo das aulas estonteados e exaustos e levando para casa o peso da frustração.
Todavia, continuo a perguntar: se sou professora e não consigo ensinar, se sou professora e não consigo motivar, para aprender, uma turma de 20 jovens, se me aconselham a desistir e a fazer o jogo deles, já que não há outro remédio…onde reside afinal o vício, o erro do sistema? Não em mim, decerto, que me encaminho para aquelas salas sempre com uma réstia de esperança; não nos alunos, sem dúvida, que se sentem enjaulados e coagidos a uma situação que não lhes apraz. A revisão tem que ser operada a outro nível, num plano onde as decisões globais se tomam e onde a adequação à realidade deve ser feita – para que a escolaridade obrigatória possa fazer sentido. Para que os jovens sintam que, apesar de incapazes ou desmotivados para as questões teóricas, há neles um manancial e uma reserva de habilidades práticas a serem explorados. Recuso-me a acreditar que sou incompetente, por não conseguir ensinar psicologia àqueles 20 alunos; mas também recuso dar-lhes o estatuto de imbecis ou de réprobos, desistindo da humanidade que há neles.