REGINA SARDOEIRA |
Blowin’ in the wind* é um poema-canção susceptível de ser tratado filosoficamente, na exacta medida em que, na aparente simplicidade da sua linha condutora, nos remete para o questionar fundamental da humanidade, sem contudo fornecer a menor sombra de resposta.
Deixando de lado, temporariamente, o aspecto lírico-musical, para nos concentrarmos no seu sentido intrínseco, percebemos de que modo este texto pôde tornar-se um hino, as palavras proféticas da voz de uma geração, no contexto temporal em que foi composto, na especificidade concreta do espaço social e físico em que se enquadrou (1962, EUA); mas entendemos ainda a peculiaridade que pôde transformá-lo numa obra perene, muito para além da mensagem de protesto, do grito inflamado de um jovem dirigido às consciências perras do seu tempo. É simultaneamente compreensível e paradoxal que o seu autor houvesse recusado, desde aquela época até aos dias de hoje, o título de «voz de uma geração» ou de «profeta» e demais epítetos com que o rotularam e são conhecidos até à saciedade. É compreensível na justa medida em que aceitar ser o porta-voz de uma geração quando se tem pouco mais de vinte anos e todo um caminho pessoal a percorrer, ver-se amarrado a um título, honorário e vitalício, e assumi-lo seria a sua própria condenação, seria deixar pender às costas uma espécie de cruz de martírio e ter que nela dar a vida pela geração de quem concordaria ser a voz; mas é paradoxal se atendermos ao carácter radical das questões que o poema enuncia, se absorvermos que o seu autor era um jovem e que as palavras lhe brotaram, exatamente assim, do fundo do ser para a folha de papel.
São nove perguntas ou, por outro lado, nove acusações, se quisermos desde já aceitar que Bob Dylan intentava com elas dar corpo a uma forma de protesto; e, contudo, a resposta vai ressoando no vento, é inefável, flutuante, efémera, inalcançável e subtil, não é para ser dada, ou então é fluida, dispersa como as rajadas que a levantam no exato instante em que parecia que a havíamos recolhido.
Quantas estradas deve um homem
calcorrear/Antes que lhe chamem um homem? / Por quantos mares deve a pomba
branca navegar/ Antes de poder dormir na areia? / Quantas vezes terão que voar
as balas dos canhões/ Antes que sejam banidos para sempre?
Quantos anos pode existir uma
montanha/ Antes de ser lavada pelo mar? /Quantos anos podem certas pessoas
existir/ Antes de lhes ser permitida a liberdade? / Quantas vezes pode um homem
virar a cabeça/ Fingindo que não está a ver?
Quantas vezes deve um homem olhar
para o alto/ Antes de poder ver o céu? / Quantas orelhas deve um homem possuir/
Antes de ouvir os homens gritar? / Quantas mortes haverá até que ele saiba/ Que
já morreram demasiadas pessoas?
A resposta, meu amigo, vai ressoando
no vento/ A resposta vai ressoando no vento.
Não é possível empreender a análise
de um texto (ao qual retirámos, nas linhas da tradução, uma parte substancial
da sua matéria musical e poética) se não intentarmos perceber onde pretende o
autor chegar, o que quer atingir, que efeito visa produzir nos que vão lê-lo,
ou neste caso concreto, ouvi-lo, preferencialmente. Afigura-se-nos que o facto
de o texto ter sido construído sob a forma de ininterrupto questionamento, cuja
resposta é, propositadamente, dispersa no vento, nos envia para uma espécie de
neblina do sentido, como se o autor, de modo inadvertido, mas nem por isso
menos presente, recusasse responder ou atribuir responsabilidades a quem quer
que fosse pelas sucessivas e radicais questões de cariz ético-existencial que o
texto, de facto, levanta.
Calcorrear estradas, navegar pelos
mares, voarem balas de canhões, eis o fulcro do movimento do homem, da pomba e
das balas até atingirem o porto de abrigo: ser considerado um homem, poder
dormir na areia, banir para sempre. Inversão dialética, movimento e repouso, atividade
e descanso. Deste modo o autor exprime a antinomia presente no âmago do mundo,
quer seja na referência expressa ao homem, cuja vida inteira nem sempre chega
para atingir o seu destino, o seu objetivo, o alvo da sua demanda, quer na
metáfora da pomba branca, que tanto pode querer aludir ao símbolo eterno da paz
e da mansidão, como à referência bíblica da pomba de Noé, cuja barca necessitou
navegar por longos dias até poder atracar em areia firme, e depois,
explicitamente, as balas dos canhões presentes em todas as guerras, literal ou
metaforicamente, cujo troar ribomba continuadamente sem que dê mostras de
querer silenciar. Dialética expressa na contradição entre o movimento e a
necessidade do descanso, dialética nunca remida em síntese, pois a resposta
continua móvel na flutuação vária do vento.
O tempo, esse enigma, pressentido
pelo homem, medido e espartilhado nas engrenagens construídas para imprimir
sentido aos dias e aos anos, o tempo é o protagonista da segunda estrofe desta
composição poética. Quantos anos, quantas vezes, e eis aqui presente a
repetição de gestos ao longo das épocas da vida individual e coletiva, e é o
tempo que uma montanha necessita para ser lavada pelo mar, montanha essa que
pode bem ser o amontoado heteróclito de tantas ideologias, teorias e sofismas a
necessitarem a purificação das águas, também elas metafóricas pois serão as
águas do espírito redimido, e são ainda os anos que alguém precisa viver até
ser restituído à liberdade para que nasceu, e é o sujeito individual e é a
massa coletiva da humanidade na História, e portanto no tempo, e de novo o
tempo, presente nas vezes que os homens se ignoram, voltando a cara, fingindo
não ver o rosto do outro, a alegria do outro, a dor e a verdade do outro. O tempo,
a exercer aqui a sua irremediável ligação ao espaço e ao movimento por
estradas, mares e mesmo pelo ar, a que alude a primeira estrofe, o tempo que
ciclicamente desnuda perante a consciência lúcida a sua face emaranhada e
dispersa, o tempo, presente na consciência dos homens como catalisador e
processo catártico da aventura racional, e contudo a antinomia dialética
permanece irresoluta e irresolúvel visto que a resposta continua pairando,
difusa, no vento.
Por fim, o grito pungente, o aviso,
a denúncia: Como levantar a cabeça e caminhar direito, sem que nos verguem uma
e outra vez a cerviz de mamíferos bípedes, advindos à consciência? Quantas
orelhas são precisas para que alguém possa ouvir os gritos dos homens? Quantas
mortes serão ainda perpetradas antes que ele perceba que já morreu muita
gente? Com este último verso, o sujeito-alvo das questões, abstrato e como que
oculto nas frases precedentes, objetiva-se na última sentença/questão com este
pronome pessoal ele, ele, assim mesmo, com minúscula, afastando a ideia
tentadora de que o autor acusa Deus pelos cataclismos presentes na história dos
homens, remetendo a responsabilidade para todos, para cada um, responsáveis que
somos pela antítese da nossa caminhada orientada para nenhures, ou, menos provavelmente,
para uma entidade mais acima na hierarquia do povo, um governante, talvez, ou
um líder, esse que poderia ser capaz, se acaso existisse, de dar a resposta
que, de novo, continua dispersa no vento.
Através desta análise possível da
canção emblemática de Bob Dylan, Blowin’ in the Wind, desvelamos o seu possível
alcance filosófico, não porque haja nela obscuridade ou indícios de pretensão
ideológica, mas exactamente pelo oposto: as palavras anunciam o cerne das
questões vitais de toda a humanidade, presentes, muitos séculos antes do ano em
que foi escrita, presentes desde o advento da consciência humana e progressivos
sinais de perplexidade e de angústia perante o poder maléfico, e potencialmente
letal, do prodígio da racionalidade, aparentemente apenas apanágio do homem em
todo o mundo animal conhecido. E contudo a resposta que talvez o leitor/ouvinte
lograsse obter, essa não é apresentada por uma razão potencialmente dupla: na
medida em que ela flutua e se dissolve no preciso instante em que achávamos
tê-la agarrado, permanecendo adiada, permanecendo enigmática e logo incapaz de
solucionar os problemas, ou porque é dirigida à consciência de cada um que, tal
como o autor do texto, pode elaborar idêntico questionamento, buscando a
resposta em si e caminhando coerentemente rumo ao solucionar de um problema que
também é o seu.
Pelo que nos foi possível conhecer
sobre a história deste poema/canção, escrito em New York, em 1962, quando Bob
Dylan tinha 21 anos e começava a trilhar o caminho que o levaria onde chegou e
rumo ao qual se fez à estrada, vindo do Midwest, e fazendo fé na folha do
manuscrito a que tivemos acesso, o texto nasceu absolutamente coeso, com o
ritmo, a métrica, a rima e o refrão exactos, com uma hesitação apenas, quanto
às palavras iniciais de um dos versos e uma alteração prontamente realizada
ainda no manuscrito que inverteu a ordenação entre a segunda e a terceira
estrofes. Magia? Sussurro da divindade ao ouvido do criador? Surto prodigioso
de inspiração, qual sopro metafísico a dirigir-lhe o pensamento e a mão?
Numa perspectiva fenomenológica, o ato
criativo pode explicar-se racionalmente, aquém ou além da magia (a que aliás o
próprio Bob Dylan faz alusão, na entrevista dada em 2004 ao programa 60
minutes), como sendo a organização brusca e objetiva de um processo de
laboração íntima, decorrido nas esferas profundas do si e subitamente advindo à
consciência de modo claro e apto por isso a ser expresso.
Bob Dylan afirma acerca de si
próprio no documentário de Martin Scorsese, No Direction Home, Eu era um
expedicionário musical, e atentando ao sentido das palavras expedicionário
e expedição damo-nos conta da necessidade que lhe foi inerente, principalmente
nos primeiros anos da sua chegada a New York, de caminhar pelas ruas, sorver
figuras, sons, imagens cheiros, numa ânsia sensitiva de captar para si os
múltiplos materiais do rumor vibrátil da cidade, essa capital do mundo por onde
corria o sangue vivo de tudo o que valia a pena sondar e haurir. Como chegou à
cidade grande já iniciado, cônscio do seu destino e munido dos meios
necessários para a ele vir a aceder, não se permitiu perder tempo e a sua mente
foi-se transformando num imenso depósito de sugestões e ideias, que, como se de
um caldo primordial se tratasse, foram assumindo formas sempre várias até se
concretizarem em melodias e palavras.
Por estas razões, o texto Blowin’ in
the Wind releva de uma mente desperta e ativa, de um intelecto conhecedor da
situação específica dos homens do seu tempo, quer operada através da observação
directa, quer pela prática de escutar e de interpretar as canções oriundas da
dor e da miséria das classes oprimidas do seu país, as quais foram a sua
primeira escola de músico e de cantor e o primeiro alvo da sua tarefa
expedicionária. Não importa que ele, a autor do poema e da música, jamais
tivesse sido um desses oprimidos famélicos, não é relevante que por ele não
tenham passado, de modo direto, as perseguições, os ataques, as discriminações
raciais e tudo o mais que naquele tempo era o pano de fundo da vivência do povo
americano (e não iremos analisar em detalhe, de momento, a contextura política,
social e económica dos anos 60 nos EUA, pois não é esse o nosso propósito.): o
que urge destacar nas linhas deste poema/canção tornado hino e manifesto, cantado
e logo divulgado por outros intérpretes e atingindo a celebridade antes de o
seu autor poder captar o alcance da obra que tinha produzido, é a capacidade
extraordinária de dar corpo a inquietações universais, de as expressar sob a
forma inquisitorial, tocando o cerne do desassossego perene da humanidade e
percebendo de modo íntimo que as questões, pela sua radicalidade, representam a
própria estrutura e logo a fundação da consciência humana, pelo que qualquer
hipótese de resposta ou de solução será irremediavelmente dispersa no vento.
Se Blowin’ in the Wind fosse apenas
um manifesto panfletário, um meio de intervenção numa cruzada político/social
específica, um brado isolado de um jovem sedento de atingir a fama e ocupar,
enquanto estrela, o palco sendo protagonista de ações de massas, para além
dele, decerto o vigor expressivo das suas palavras e o caráter radical do
questionamento, de que é exclusivamente composto este poema, não teriam hoje,
mais de quatro décadas depois de ter sido composto, o caráter actual que lhe é
reconhecido, a universalidade que lhe é apanágio e ter-se-ia evolado no tempo e
erradicado do espaço, que foram, por outro lado, o motivo específico da sua
criação.
*BLOWIN’ IN THE WIND
How many roads must a man walk down/Before you
call him a man?/Yes, ‘n’ how many seas must a white dove sail/Before she sleeps
in the sand?/Yes, ‘n’ how many times must the cannon balls fly/Before they’re
forever banned?/The answer, my friend, is blowing’ in the wind,/The answer is
blowing’ in the wind.
How many years can a mountain exist/Before it’s
washed to the sea?/Yes, ‘n’ how many years can some people exist/Before they’re
allowed to be free?/Yes, ‘n’ how many times can a man turn his head,/Pretending
he just doesn’t see?/The answer, my friend, is blowing’ in the wind,/The answer
is blowing’ in the wind.
How many times must a man look up/Before he can
see the sky?/Yes, ‘n’ how many ears must one man have/Before he can hear people
cry?/Yes, ‘n’ how many deaths will it take till he knows/That too many people
have died?/The answer, my friend, is blowing’ in the wind,/The answer is
blowing’ in the wind.
BOB DYLAN, 1962
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