terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A RACIONALIDADE DO DESENTENDIMENTO

REGINA SARDOEIRA
O mais difícil de levar a cabo no mundo em que vivemos é conseguir, pelo diálogo, compreender cabalmente o ponto de vista do outro. E assim, o desentendimento vai alastrando.

Cada um de nós vive murado na sua própria subjetividade, essa pele interior que nos amarra a uma visão unilateral do mundo e dos outros, inevitavelmente parcial e confinada.

Se escutarmos atentamente as conversas, junto de nós, ou aquelas em que nós mesmos participamos, perceberemos, sem dificuldade, que a predominância da palavra “eu” é uma constante, o que só pode significar quão importante é, para cada um, definir a sua perspetiva. 

Mediocremente, também, os interlocutores escutam quem se lhes dirige, e esse ato é falaz por duas razões: o ato de escutar implica uma disponibilidade de si, em relação ao outro e consequente reforço da atenção que se lhe deve dispensar; o ato de retrucar, opondo a sua versão à do outro, predomina sobre a análise minuciosa do que é exposto, pelo que, a maior parte das vezes, quem deveria ouvir está, de facto, a engendrar, mentalmente, os tópicos que vai opor. 

Entendermo-nos pela palavra é, pois, difícil, diria mesmo, praticamente, impossível, já que cada termo que utilizamos comporta uma multiplicidade de sentidos – basta consultar um dicionário para tal verificarmos – e aquele a quem nos dirigimos, apelando ao ato de escutar, quando escuta (se escuta) interpreta. E como interpreta? À sua única e exclusiva medida.

Esta é a condição humana: somos falantes, pensantes e criadores. No ato de falar, desejamos exprimir uma ideia, uma opinião, uma tese; geralmente, usamos o código linguístico da nossa referência original, para passar, pela comunicação, pensamentos que nos vão surgindo numa catadupa ininterrupta, sob a forma, quantas vezes luxuriante, de discurso. E não deixa de ser um fenómeno extravagante, esta capacidade humana de organizar espontaneamente os sons que constituem uma palavra, os sintagmas que organizam as palavras, em frases, as interjeições e cambiantes que lhes vamos adicionando, de acordo com o efeito que desejamos produzir.

Produtores de efeitos: eis o que somos nós, enquanto falantes e logo criadores, visto que, não raro, nos enredamos em imagens retóricas, em simbologias abstratas, em exemplificações, mais ou menos figurativas, sempre com o fito de obtermos a adesão do nosso interlocutor ao pensamento que, submerso na flutuação da palavra, dele deriva de modo lógico e certeiro.

Mas agora, que assim reflito, percebo, e vou percebendo, que talvez a explanação dos pensamentos não seja, exatamente, o correspondente ao pensamento mesmo. Decerto as palavras não são as fiéis intérpretes das ideias, porque as vamos pronunciando de modo automático, célere, e em nenhum momento o discurso faria sentido se necessitássemos de parar, para refletir, segundos antes da palavra a proferir. Logo, há uma sombra de mistério nesta nossa velocidade de seres falantes, capazes de se expressarem pela linguagem e pela língua – duas categorias muitas vezes confundidas, mas claramente distintas – atingindo os outros de modos, frequentemente também, avassaladores. Mistério, na exata medida em que damos vazão a um discurso já totalmente elaborado, para nossa surpresa, se acaso nos lembrássemos de refletir sobre o assunto. É por isso que um escritor pode perfeitamente conseguir escrever um livro de rajada (ou em várias rajadas consecutivas), dando-se conta, nos intervalos do processo, que, se assim pôde organizar palavras, frases, textos, capítulos (e por aí adiante) num impulso, quantas vezes vertiginoso, é porque o texto, inteiro e coeso, já pairava nos recessos da sua mente, faltando apenas abrir-lhe as comportas e deixá-lo expandir-se.

Esta verificação que vou fazendo, ao mesmo tempo que escrevo – outro mistério, já que consigo escrever automaticamente e ainda analisar o próprio automatismo desta mesma escrita – faz-me sentir o caráter semidivino que nos acomete, enquanto humanos. Semidivino, entenda-se, porque a deus demos, enquanto homens, prerrogativas que nós próprios inventamos e talvez elas nos pertençam efetivamente: a nós, e não a uma certa entidade extra-humana, muito acima da nossa esfera limitada, que dizemos (ou podemos dizer) ser a sua criação. 

Torna-se claro, para mim (ao menos neste gesto de falar, de escrever, de pensar) que somos capazes de saltos vertiginosos e rodopios incomensuráveis, ao nível das palavras com que afirmamos a nossa separação da restante animalidade. Essa comum condição dos humanos falantes, condição pela qual nos pomos em contacto com os outros, condição máxima da nossa evolução, rumo a requintes comunicativos inimagináveis, nos tempos em que nos hominizávamos, percebendo que podíamos usar a mão, e depois as cordas vocais, e depois o corpo todo, em sentidos, sempre e sempre para lá dos outros seres da natureza, parece que nos aproxima – mas tem-nos, inequivocamente, alienado.

Falamos é certo, expressamos possíveis pensamentos, através de discursos mais ou menos coesos ou profundamente articulados e lógicos – e contudo, cada dia que passa, o fosso comunicativo é maior, a ilusão de veracidade mais avassaladora, e o solilóquio, a substituição contemporânea do diálogo. Este fenómeno paradoxal acontece porque, do outro lado de nós, estão aqueles a quem dirigimos o nosso discurso. Eles, mas também os seus valores, as suas ideias e ideologias, as suas próprias metáforas e subterfúgios linguísticos: eles próprios, constitutivos de um discurso ainda não explícito, mas pronto a enunciar-se, quase sempre em despique – pela mera razão que enunciei à partida: parece que cada um só quer ouvir-se a si próprio, parece que cada um nada mais deseja que apontar a síntese do que julga ser a interpretação do discurso lançado pelo interlocutor, e opor-se-lhe, mostrando o que pensa ser supremacia.

Por isso aludi à nossa condição de humanos, como sendo semidivina: é que se fossemos deuses, mesmo, não necessitávamos da linguagem, bastaria o silêncio, para, desse modo, caminharmos no meio da multidão e, de imediato, sentirmos a cumplicidade, feita de luminescências subtis, pelas quais nos entenderíamos todos!

Até lá, se esse dia chegar, tenderemos a um desentendimento cada vez mais profundo, na exata medida em que vamos multiplicando e aperfeiçoando técnicas de comunicação verbal, gerando idiomas específicos e exclusivos, vertendo em absoluto ruído a dádiva da linguagem que conquistámos para nosso benefício, enquanto humanidade.

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