Há algum tempo que me tenho esforçado para fugir ao Natal, ignorando os chamamentos múltiplos de
múltiplos interesses, no âmbito dos quais sou envolvida numa espécie de fúria coletiva que, num espaço/tempo fugaz, toma conta de tudo. Não fui capaz nunca de me escapar, houve sempre um motivo ou dois, uma festa ou duas, dois presentes ou três que me obrigaram a admitir a chegada desta época e a render-me a ela.
REGINA SARDOEIRA |
O Natal, em si mesmo, é uma celebração religiosa – e todos deviam saber disso. Uma celebração religiosa pela qual se comemora o nascimento do homem, tornado o símbolo maior de uma comunidade de crentes, um homem que, a crer em muitas narrativas, terá vindo salvar a humanidade do declínio engendrado no pecado, tomando-o sobre si na hora final do sacrifício. Um homem que, paradoxalmente, mas no rigor da crença, é Deus, assim mesmo, com letra maiúscula, o Único, o Verdadeiro, Aquele que criou o mundo e os homens e preside a todos os acontecimentos desde que o tempo é tempo.
Não se sabe se, de facto, esse Homem-Deus nasceu no dia 24 de dezembro, há mesmo quem fale de tal improbabilidade, atendendo a narrações e interpretações históricas, nunca concluídas e nunca concludentes. Mas apesar de tantas e tão científicas dúvidas razoáveis, não trocaram (ainda?) esta data por outra qualquer, não emendaram a tradição (e agora essas quebras acontecem com regularidade!); daí que, quando dezembro se anuncia (ou muito antes) um certo espírito natalício desperte, cheio de vigor, e as ruas se encham de luzes, de música, de vibrações humanas, de uma certa energia bastante contagiosa que me leva a pensar: “Estarei errada, exatamente eu, por querer fugir ao Natal? Será esta onda de júbilo, estas palpitações de entusiasmo, esta gente em tumulto por avenidas e praças, acotovelando-se em lojas e arquejando ao peso de múltiplos embrulhos, a verdade do Natal e eu, afinal, uma réproba, a querer ignorar a euforia de toda uma cultura?”
Invariavelmente, cedo às luzes, ao pinheiro, ao presépio. Invariavelmente, monto, dentro de casa, o meu Natal. Invariavelmente, vou cumprindo a tradição e, se o faço, é sem meios-termos. Trata-se de comer determinadas iguarias, em família? Trata-se de comprar presentes e embrulhá-los, com capricho, para surpreender as pessoas próximas? Trata-se de penetrar no torvelinho das ruas enfeitadas e exclamar: “Bom Natal!”, sempre que cruzo com um amigo ou conhecido ou até um desconhecido qualquer que acabou de me servir um café? Então, se é para entrar no espírito comum, entro com o corpo todo e devoto-me a fazer o melhor de que sou capaz…e acabo por me esquecer da minha tentativa de fuga!
Porém, sei perfeitamente que no ano seguinte, a resistência ao Natal vai retornar, como sei que, por fim, acabarei rendida.
Há razões para a recusa, assim como há razões para a rendição.
Não vejo, no modo como é vivido o Natal, uma comemoração religiosa do aniversário do homem símbolo, do Homem-Deus, daquele que, enfim, deu a vida, 33 anos depois de ter nascido, pela salvação do mundo. Não vejo sucederem-se, um pouco por todo o lado, com predominância das igrejas e outros lugares de culto, cerimónias alusivas ao que é mais do que uma efeméride: porque se homenageia, prestando tributo, ao inspirador do maior fenómeno religioso de todos os tempos. E o que vejo, desencanta-me.
Correr, de loja em loja, adquirindo objetos para presentear familiares e amigos, é homenagear Jesus Cristo? Talvez pudesse sê-lo, se aquele que compra e oferece atribuísse a esse gesto uma simbologia religiosa, quero dizer: Jesus nasceu, eu festejo a data e, como ele não está fisicamente presente entre nós, ofereço uma prenda ao meu amigo ou ao meu irmão ou ao meu filho e faço-o no espírito daqueles que, na noite de 24 para 25 de dezembro se dirigiram à gruta, depositando aos pés do nascituro o que tinham de melhor. Fazer um banquete, e encher a mesa de iguarias, mais ou menos abundantes e requintadas, cometendo excessos de todo o género, poderá considerar-se uma homenagem a Jesus Cristo? Talvez pudesse sê-lo, caso as pessoas em volta da mesa tivessem em mente a mensagem integral daquele cujo aniversário é evocado.
Ora, eu julgo que, se acaso o Natal se rendesse à sua autêntica e literal significação, se acaso uma lei qualquer obrigasse os cidadãos a cumprir apenas o preceito religioso, eliminando o restante, cedo a festa seria esquecida e acabariam as luzes e as cores, o bulício e a corrida ao consumo e os banquetes e a luxúria das prendas e dos enfeites!
Esta contradição entre o significado literal de uma data e a metáfora hiperbólica do seu festejo exerce em mim um efeito de resultados ambíguos: por um lado, perdi o hábito de ir à Igreja e ali homenagear o símbolo religioso em cuja prática me educaram; por outro, não consigo imbuir-me do consumismo desenfreado das prendas e dos enfeites. Se desejo Feliz Natal aos amigos, faço-o na medida em que me parece ser isso que eles esperam de mim, ou então para corresponder à respetiva saudação; mas nem sempre sei perfeitamente o que significam estas palavras e este desejo de felicidade objetivados num dia, em que se celebra o aniversário de Jesus Cristo!
Tudo isto me ocorre, é claro, porque faz parte de mim refletir sobre significados, porque desde que me conheço sou, acima de tudo, guiada pela coerência entre as palavras e os atos, os atos e os símbolos, os símbolos e os ritos. Nunca realizo seja que empreendimento for apenas porque é hábito ou porque todos o fazem, ou porque a cultura o estabeleceu e a sociedade o estimula: para mim, estes motivos não são suficientes, é necessário que do meu ser mais íntimo se desprenda a convicção, o sentimento, a vontade de fazer uma festa, manifestar um desejo, pronunciar um voto.
Se, de mim para o exterior de mim, brotar o desejo de celebrar e se todos à minha volta também o fizerem, não preciso de ser invulgar, recusando fazer o que todos fazem. Se sentir que enviar um desejo de Boas Festas ou oferecer um presente de Natal tem um significado intrínseco à minha natureza e provém de um sentimento genuíno, correrei as lojas até encontrar o que pretendo ou construi-lo-ei com a minha própria mão! Mas correr por correr, dar por dar, festejar porque o calendário a tal obriga, comer isto ou aquilo porque a tradição se tornou lei…apenas muito a custo entro nesse espírito!
Não critico o Natal consumista, o Natal do comércio, o Natal da exibição, o Natal do espírito de família. Não me interessa tecer semelhantes críticas, porque vejo bem que, lá no fundo, qualquer um sabe a verdade sobre a sua participação em tão alienantes celebrações. Qualquer um sente o vazio ou o tédio ou a impaciência dos atos a que é obrigado nesta festa que a tradição não perdoa, e qualquer um pode perceber à saciedade que, no dia seguinte à festividade, a vida retoma o seu curso, profanamente, tal como era dantes. E o Natal é imediatamente esquecido e adiado.
O que impressiona a minha mente, aberta e lúcida, tanto quanto pode sê-lo uma mente humana, neste mundo de humanos, é a incoerência, o paradoxo, o embuste nos quais alinhamos todos, ano após ano, falando em Natal, ouvindo Natal, gritando Natal, explodindo Natal pelas ruas, pelas casas e em toda a parte…mas esquecidos do motivo principal e talvez único da comemoração festiva. E custa-me pensar que, se esse homem nasceu nesse dia, há mais de dois mil anos, com o desígnio trágico de permitir o sacrifício da sua própria vida em prol de todos os homens, ninguém o tenha de facto entendido, até hoje, e nada na humanidade me pareça apresentar o menor sinal de haver sido salva.
Salvos, estes homens e mulheres em correria insensata para nenhures, mas ávidos de benefícios materiais? Salvos, estes arrogantes de cabeça levantada e ventre inchado, clamando recompensas, exigindo direitos? Salva, esta raça demente, destruindo- se e destruindo o seu mundo numa irracionalidade tanto mais insana quanto se crê racional? Salva, esta humanidade mesquinha e auto complacente, separada em indivíduos egoístas, crentes apenas na verdade por si engendrada e atirada ao vento?
Não, Jesus nasceu e tornou-se Cristo, a sua mensagem anda por aí, inscrita nos livros e pregada nos templos. Mas não vingou nem se realizou a esperada salvação, não surtiu efeito o nascimento pobre da criança e o sacrifício sangrento no Calvário. E passaram mais de dois milénios!
No entanto, continuamos a festejar o Natal e a desejar felicidades e a cumprir a tradição dos presentes e das iguarias e até parece, de vez em quando, que a luz vai mesmo brotar do fundo da consciência dos homens e que nada será igual daí em diante!
As minhas palavras finais desta crónica de Natal serão estas: oxalá que, de Natal em Natal e de luz em luz, ano após ano, século após século, a estrela expluda no âmago dos homens e o único e verdadeiro Natal possa, por fim, acontecer, salvando-nos e cumprindo a profecia que estava inscrita no destino do longínquo nascituro de Belém.
Gosto. Calo a minha concordância no "não comentário" a esta dissertação. Mas que me apetece comentar, lá isso apetece.
ResponderEliminarLembrei-me (vá-se lá saber porquê) do nosso hino: "...contra os canhões marchar, marchar..."
Ocorreu-me (também não sei a que propósito) o Dia Internacional da Mulher.
Burila o meu pensamento (devo estar com fome) o 25 de todos os abris.
Incomoda-me a justeza de cada euro que eu tenha (ou não) no meu bolso.
Comemorar: trazer à memória. Ontem fiz isto.