«Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder.»
Albert Camus, O Mito de Sísifo
Julgo
entender o suicida mas não sei se entendo o suicídio: porque o suicida é aquele
que decide matar-se e o suicídio é a morte de si – e eis aqui a grande
diferença.
REGINA SARDOEIRA DR |
Ao
entender o suicida, vejo com clareza a atitude do homem sitiado e despido de
ilusões, entorpecido pela doença, pela neurose, pelo desgosto de viver, pela
solidão e pelo abandono, pela recusa do amanhã, pela tristeza ao acordar, pelo
desespero e por tantos outros sentimentos que podem obscurecer o vigor da mente
e travar a força dos músculos. Vejo-o a recusar a vida, quotidianamente, e no
entanto a forçar-se a vivê-la, vejo-o a detestar a relação com o mundo, com os
outros, e contudo a ter que sorrir, conversar, estender a mão, vejo-o a ter
fome e sede e sono, a sentir o sangue a latejar nas veias e contudo a não
desejar mais ter essa aguda certeza de estar vivo e vejo que chega um dia em
que tudo nele se agiganta ao ponto de não aguentar o descrédito de si, o
cansaço de si, a hipocrisia de si, vivo e contudo fazendo um trajeto privado de
sentido num contínuo somar de segundos. Para chegar a efetuar o gesto decisivo
e romper de vez a ligação com o mundo, um homem precisa de atingir um
inexorável vazio, um despojamento essencial, uma descrença absoluta, e uma
coragem incomensurável. E digo coragem, sim, porque aquele que põe fim à vida e
anula a sua desgraça consegue realizar aquilo que muitos outros, inúteis e
insignificantes, misérrimos espécimes desta misérrima raça a que pertencemos
todos, não vão realizar nunca, persistindo em açambarcar o espaço com a sua
fútil presença. Ao menos o suicida percebe que tem que ceder o lugar aos
outros, percebe que não adianta carpir tristeza aos ouvidos do mundo, percebe
que não pode continuar a trair a sua humanidade, sendo um despojo, sentindo-se
um banido.
O
suicida é um herói, porque dá a si mesmo a glória de cortar a linha que o
prende à vida e cumprir o mandamento daquele que um dia pregou, «Morre a tempo!»*, não arrastando a sua sombra inútil pelos caminhos da
terra.
O
suicídio porém, tal como a morte, escapa, de todo, à minha compreensão.
É
uso dizerem: «Que descanse em paz!», e esta frase, de pendor religioso, pode
ter uma conotação vazia, pois o que é descansar em paz, para aquele que morre e
que, por isso mesmo, não pode sentir seja o que for? Ficar estendido no túmulo,
imóvel e frio ou ser incinerado e flutuar ao vento de qualquer lugar terá
alguma relação com ‘descanso’ e ‘paz’? Creio que não. O corpo que repousa no
esquife, a cinza que se desvanece na flutuação do vento não sentem o descanso
ou a paz, ou seja o que for, porque o elo vital foi quebrado e neles nada resta
já capaz de sentir.
Agora
imaginem que à hora da morte, cessado o movimento neuronal e sanguíneo e
reduzido a corpo a um pedaço de matéria sem alento, que em breve irá
desintegrar-se, a consciência – que ninguém sabe o que é, ou onde mora – escapa
às leis do esvaimento próprio da morte e, habituada ao corpo a que deu sentido,
continua a perceber-se a si mesma, como dantes! Imaginem essa consciência, que
nos diz o que sentimos e vemos e desejamos, a persistir, atuante, e a perdurar,
como parte de nós, desarreigada da corrupção, a poder perceber ainda o mundo de
que aparentemente se ausentou! Se assim for – e este é um postulado científico
– que faz o suicida quando executa o ato que crê libertador? Não é verdade que,
pela perenidade da sua consciência, vai prosseguir percebendo as dores, o vazio,
a solidão de que quis ausentar-se, e mais, vai testemunhar a vileza do seu
corpo, entregue aos outros, e todo o séquito de cerimónias, louvores e
homenagens a que o sujeitarão, ou ao esquecimento da sua memória, em breve mais
um desaparecido, entre os milhões de desaparecidos, um nada no tumulto de
muitos nadas?
Mas,
se a morte for outra realidade qualquer, em que se nos revele um mundo novo ou
realidade nenhuma, que, por isso mesmo, nunca existirá, enquanto realidade,
escolher a morte, como faz o suicida, que, aparentemente, quer cortar cerce a
ligação vital, é escolher, afinal, o quê?
Querer
deixar a tortura de uma existência, e logo a seguir entrar noutra,
eventualmente mais terrível e de onde eventualmente não logrará sair – poderá
morrer-se duas vezes? – ou cair num absoluto negrume e ver esse negrume como
imagem do seu mundo, daí em diante, será uma escolha preferível ao somar quotidiano de minutos,
ainda que despojados de valor ou sentido?
Impossível
responder. Para lá desse limiar, que o suicida escolhe marcar e a que os outros
acedem, mesmo sem querer, não há notícias plausíveis, não há teorias
convincentes ou verificações experimentais, não há a certeza de uma existência post mortem ou da sua inexorável
inexistência – há somente hipóteses, postulados, crenças.
Aquele
que morre, porque assim o determinou a sua vontade ou o que julga ser o seu
arbítrio – mesmo podendo não o ser, de facto – escolhe uma terrível incógnita,
escolhe a adesão a um estado de que não tem qualquer referência em primeira
pessoa, escolhe um absurdo para si, pois retira-se de um palco sem saber os
contornos de outro possível.
As
notícias de suicídios, perpetrados por aqueles a que chamamos suicidas,
atingem-nos de vez em quando. Não somos capazes de compreender, nem adianta ir
à procura dos motivos e, mesmo que eles deixem cartas ou indícios, isso não
significa que essas cartas e esses
indícios expliquem a razão íntima do ato de escolher a morte. Muitos tratados
têm sido escritos sobre o tema. Nenhum esclareceu esse fenómeno que acredito
ser recôndito, que acredito acontecer nas zonas mais obscuras da consciência, que
acredito ser uma pequena gota indistinta, cedo tornada onda avassaladora, que
arrasta o suicida para a morte de si, como opção irreversível de todo o seu
ser.
*Friedrich
Nietzsche, Assim Falava Zaratustra
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