terça-feira, 26 de agosto de 2014

O SUICIDA E O SUICÍDIO – QUESTÕES

«Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder.»

Albert Camus, O Mito de Sísifo

Julgo entender o suicida mas não sei se entendo o suicídio: porque o suicida é aquele que decide matar-se e o suicídio é a morte de si – e eis aqui a grande diferença.
REGINA SARDOEIRA
DR

Ao entender o suicida, vejo com clareza a atitude do homem sitiado e despido de ilusões, entorpecido pela doença, pela neurose, pelo desgosto de viver, pela solidão e pelo abandono, pela recusa do amanhã, pela tristeza ao acordar, pelo desespero e por tantos outros sentimentos que podem obscurecer o vigor da mente e travar a força dos músculos. Vejo-o a recusar a vida, quotidianamente, e no entanto a forçar-se a vivê-la, vejo-o a detestar a relação com o mundo, com os outros, e contudo a ter que sorrir, conversar, estender a mão, vejo-o a ter fome e sede e sono, a sentir o sangue a latejar nas veias e contudo a não desejar mais ter essa aguda certeza de estar vivo e vejo que chega um dia em que tudo nele se agiganta ao ponto de não aguentar o descrédito de si, o cansaço de si, a hipocrisia de si, vivo e contudo fazendo um trajeto privado de sentido num contínuo somar de segundos. Para chegar a efetuar o gesto decisivo e romper de vez a ligação com o mundo, um homem precisa de atingir um inexorável vazio, um despojamento essencial, uma descrença absoluta, e uma coragem incomensurável. E digo coragem, sim, porque aquele que põe fim à vida e anula a sua desgraça consegue realizar aquilo que muitos outros, inúteis e insignificantes, misérrimos espécimes desta misérrima raça a que pertencemos todos, não vão realizar nunca, persistindo em açambarcar o espaço com a sua fútil presença. Ao menos o suicida percebe que tem que ceder o lugar aos outros, percebe que não adianta carpir tristeza aos ouvidos do mundo, percebe que não pode continuar a trair a sua humanidade, sendo um despojo, sentindo-se um banido.

O suicida é um herói, porque dá a si mesmo a glória de cortar a linha que o prende à vida e cumprir o mandamento daquele que um dia pregou, «Morre a tempo!»*, não arrastando a sua sombra inútil pelos caminhos da terra.

O suicídio porém, tal como a morte, escapa, de todo, à minha compreensão.

É uso dizerem: «Que descanse em paz!», e esta frase, de pendor religioso, pode ter uma conotação vazia, pois o que é descansar em paz, para aquele que morre e que, por isso mesmo, não pode sentir seja o que for? Ficar estendido no túmulo, imóvel e frio ou ser incinerado e flutuar ao vento de qualquer lugar terá alguma relação com ‘descanso’ e ‘paz’? Creio que não. O corpo que repousa no esquife, a cinza que se desvanece na flutuação do vento não sentem o descanso ou a paz, ou seja o que for, porque o elo vital foi quebrado e neles nada resta já capaz de sentir.

Agora imaginem que à hora da morte, cessado o movimento neuronal e sanguíneo e reduzido a corpo a um pedaço de matéria sem alento, que em breve irá desintegrar-se, a consciência – que ninguém sabe o que é, ou onde mora – escapa às leis do esvaimento próprio da morte e, habituada ao corpo a que deu sentido, continua a perceber-se a si mesma, como dantes! Imaginem essa consciência, que nos diz o que sentimos e vemos e desejamos, a persistir, atuante, e a perdurar, como parte de nós, desarreigada da corrupção, a poder perceber ainda o mundo de que aparentemente se ausentou! Se assim for – e este é um postulado científico – que faz o suicida quando executa o ato que crê libertador? Não é verdade que, pela perenidade da sua consciência, vai prosseguir percebendo as dores, o vazio, a solidão de que quis ausentar-se, e mais, vai testemunhar a vileza do seu corpo, entregue aos outros, e todo o séquito de cerimónias, louvores e homenagens a que o sujeitarão, ou ao esquecimento da sua memória, em breve mais um desaparecido, entre os milhões de desaparecidos, um nada no tumulto de muitos nadas?

Mas, se a morte for outra realidade qualquer, em que se nos revele um mundo novo ou realidade nenhuma, que, por isso mesmo, nunca existirá, enquanto realidade, escolher a morte, como faz o suicida, que, aparentemente, quer cortar cerce a ligação vital, é escolher, afinal, o quê?

Querer deixar a tortura de uma existência, e logo a seguir entrar noutra, eventualmente mais terrível e de onde eventualmente não logrará sair – poderá morrer-se duas vezes? – ou cair num absoluto negrume e ver esse negrume como imagem do seu mundo, daí em diante, será uma escolha  preferível ao somar quotidiano de minutos, ainda que despojados de valor ou sentido?

Impossível responder. Para lá desse limiar, que o suicida escolhe marcar e a que os outros acedem, mesmo sem querer, não há notícias plausíveis, não há teorias convincentes ou verificações experimentais, não há a certeza de uma existência post mortem ou da sua inexorável inexistência – há somente hipóteses, postulados, crenças.

Aquele que morre, porque assim o determinou a sua vontade ou o que julga ser o seu arbítrio – mesmo podendo não o ser, de facto – escolhe uma terrível incógnita, escolhe a adesão a um estado de que não tem qualquer referência em primeira pessoa, escolhe um absurdo para si, pois retira-se de um palco sem saber os contornos de outro possível.

As notícias de suicídios, perpetrados por aqueles a que chamamos suicidas, atingem-nos de vez em quando. Não somos capazes de compreender, nem adianta ir à procura dos motivos e, mesmo que eles deixem cartas ou indícios, isso não significa que essas cartas  e esses indícios expliquem a razão íntima do ato de escolher a morte. Muitos tratados têm sido escritos sobre o tema. Nenhum esclareceu esse fenómeno que acredito ser recôndito, que acredito acontecer nas zonas mais obscuras da consciência, que acredito ser uma pequena gota indistinta, cedo tornada onda avassaladora, que arrasta o suicida para a morte de si, como opção irreversível de todo o seu ser.

*Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

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