Escritor. Escrevedor. Escrevinhador.
Escrevente. Escrivão…Quantas palavras em que é
denunciado, de modo implícito e
óbvio, o ato de escrever! E contudo, indo ao cerne da ação que cada uma delas
desencadeia, nenhuma pode entender-se como sinónima da outra, ou de todas.
REGINA SARDOEIRA DR |
A escrita é uma técnica ensinada e aprendida nos primeiros anos de cada
um, tornada que foi, ao longo da evolução humana, um inestimável instrumento de
comunicação. Uns escrevem somente o mínimo indispensável à vida social; outros
são compelidos a escrever no exercício da vivência profissional. O Escrevente,
o Escrivão, o Escriturário, decerto outros termos designadores de atividades
burocráticas e administrativas usam a escrita numa dimensão meramente técnica e
profissional. Pertencem à escrita, executam-na, deixam dela testemunho: mas
somente de modo exterior, assintomático, impessoal.
O acto de escrevinhar é relativamente comum entre os homens, desde que
são crianças e se enlevam nas primeiras garatujas, até à adolescência, idade
típica do ato de escrevinhar, quando arroubos românticos e pseudo-poéticos
fazem do papel o confidente preferencial. Não teria importância alguma, se o
Escrevinhador adolescente pudesse entender que o que assim produz não possui
qualquer valor literário – salvo as exceções geniais – e se dispusesse a
arquivar os seus manuscritos; ou então, caso neles brilhasse a centelha
criadora, a aprender com os grandes como se dá a passagem de Escrevinhador a
Escritor. Não tenho a certeza se dominar a técnica da escrita poderá ser
condição necessária e suficiente para que se dê semelhante passagem; mas estou
segura que uma tal tentativa pouparia as estantes das livrarias de enormes
mananciais de aberrações escritas…
O Escrevedor é de outra natureza, muito mais perigosa que a
anteriormente referida visto que não nasce de garatujas infanto-adolescentes,
antes se enuncia e denuncia na idade adulta, quando um homem/mulher decide, de
uma hora para a outra…escrever um livro! Este tipo de artesãos da escrita, mais
ou menos cultos, detentores de uma certa experiência que julgam interessante
narrar, desatam a lançar palavras para o papel e, ao fim de umas centenas de
páginas, contentes consigo mesmos, ainda que o produto do ato escrevedor possa
ter qualidade medíocre, decidem editar um livro! O Escrevedor pode recorrer a
uma editora e ter publicação garantida, caso tenha perfil mediático ou haja nas
suas histórias matéria escandalosa, obscena ou meramente «picante». Mas pode
ainda fazer quantas edições de autor quiser, pode começar a intitular-se
escritor e sair à cena com lançamentos e vendas. Nasce então o Escrevedor
profissional, aquele que escreve com o fito de vender, aquele que ousa chamar
romance ou prosa ou poesia ou crónica aos textos que compila e vai acumulando
até ter volume suficiente para merecer o epíteto de livro. O Escrevedor pratica
a escrita com o objetivo único de vender e, por isso, a prosa que executa é
profundamente egoísta, pouco lhe importa se o que relata for absolutamente
inútil, não o perturba o facto de as suas narrações serem pastosas ou
ridículas, meramente enunciadoras de si, sem cunho universal, por essa razão. O
Escrevedor pode ainda querer atingir um público, conquistar uma plateia
específica onde logrará alardear importância. Dificilmente sairá desse círculo
confinado, bastar-lhe-á o elogio de algumas vozes que em tudo se lhe
assemelharão e jamais deixará que uma crítica séria lhe demonstre as falhas
concetuais, lexicais, semânticas ou de estilo.
O Escrevedor não é um Escritor, muito embora produza livros; o
Escrevedor é um artesão e nunca um artista, produz obra para vender, faz dessa
atividade profissão e, porque disso sobrevive, disciplina-se e escreve tantas
páginas por dia, a horas certas. Vejamos: esta prática do Escrevedor, este
fazer da escrita, profissão, este vender, boca a boca ou porta a porta, o
produto daí resultante, nada têm, em si mesmos, de chocante ou de reprovável,
já que a História encarregar-se-á de joeirar, ignorando tais obras ou, quando
muito, inserindo-as num parágrafo minúsculo, como produções menores da
literatura.
Sabe-se que Beethoven – um dos maiores artistas que a música jamais
conheceu – foi inúmeras vezes «musicador», músico a soldo, produtor de peças
por encomenda. Fê-lo para sobreviver: porque este homem de origens modestas
nunca aprendeu outro ofício, era, com doze anos de idade, músico da corte e,
desse modo, sustentava a família. Este homem grandioso, este artista ímpar de
uma nobreza e elevação extraordinárias foi obrigado a compor e a vender, a
dedicar sonatas, quartetos e sinfonias aos mecenas, precisou de regatear
quantias, viveu atormentado com as necessidades humanas da sobrevivência e
produziu obras para satisfazer esse fim…Mas dessas obras não reza a História,
porque não foi aí que residiu a grandeza do seu génio, ela esteve sempre aquém
ou além da admiração das massas, do gosto popular: aquém, na medida em que não
foi entendido no seu tempo e o que foi entendido não tinha, de facto, valor;
mas além, porque os séculos o consagraram fazendo retumbar o seu eco imortal.
Portanto, o Escrevedor não tem qualquer importância, do mesmo modo que, por
exemplo, a Sinfonia da Batalha de Beethoven não merece citação.
Mas, apesar de a História referir exemplos do género, que não se iluda o
Escrevedor: nada, nas suas obras feitas a peso e medida, terá poder para
resistir e vencer.
O Escritor não precisa de material de escrita – seja ele caneta e papel
ou teclado e monitor – para ser, desde logo, Escritor em pleno. O lídimo
Escritor produz os textos num continuum mental para o que lhe é apenas
indispensável ser/estar vigilante. Um rosto humano, um pássaro, uma frase solta
no ar, uma espreguiçadela, o voltear de uma onda ficam presos, enquanto
motivos, na sua rede imaginária, associam-se a outros, tecendo, com eles, todas
as tramas possíveis, caem no olvido, ressuscitam, emergem e submergem tantas
vezes quantas forem necessárias ou inevitáveis; e um dia, quando o Escritor
agarra a caneta e escreve, tudo estará harmoniosamente feito, desde logo.
Evocando novamente Beethoven percebemos que foi deste modo, e apenas
deste, que ele pôde ser um músico grandioso, mesmo privado do seu mais precioso
instrumento, o ouvido. Curiosamente, a surdez foi condição do seu génio,
libertou-o dos sons banais, do ruído da populaça e de tantos estertores sonoros
e fê-lo viver a música por dentro, no silêncio. Durante 30 anos – desde os 26
anos e até à morte – Beethoven foi surdo, primeiro, ainda de modo intermitente
e por fim, na totalidade. Mas, como a música vivia nele, como a música era o
sangue que lhe corria nas veias, não precisava de ouvir da maneira que o fazem
os comuns mortais para sentir a harmonia sonora, para compor mentalmente
sinfonias, sonatas, missas, quartetos, ouvindo, por dentro, os pianos, os
violinos, as flautas e também o murmúrio dos regatos e das fontes, o ciciar das
folhas nas árvores das florestas, o canto dos pássaros em arroubos de euforia
ou de mágoa. Não ouvindo fisicamente a música que vivia nele, pôde escrevê-la,
fazê-la tocar, chegou ao ponto de dirigir orquestras mesmo sem ouvir o mínimo
som. Chama-se a isto a irradiação absoluta do génio. Se Beethoven necessitasse
do ouvido para ser músico, não teria chegado a sê-lo, pois perdeu-o demasiado
cedo. Se Beethoven fosse um artesão – um «musicador» como escrevi há pouco –
teria parado de compor, necessitaria de aprender outra arte qualquer, logo que
ficou privado do ouvido, erroneamente considerado como sendo o instrumento do
músico. Mas Beethoven era um génio da música, imbuída nele e nele contida desde
o nascimento: não precisava de ouvir a matéria da música, difundida pelos
instrumentos, pois possuía-a em si, no estado puro.
O Escritor pertence a esta categoria. Mesmo sem escrever, materialmente
falando, despojado de lápis e de papel, no negrume da noite mais escura, de
olhos cerrados, o Escritor realiza os seus textos nos arcanos secretos da
imaginação e da sensibilidade. E é por essa razão que o Escritor não pode fazer
da sua arte profissão, não pode regulamentar a criação e debitar palavras
contra-relógio, não pode estabelecer um horário de trabalho durante o qual
exerce o seu mister. Enganam-se aqueles que julgam estar inspirado quem
escreve, de ímpeto, uma página ou mil, enganam-se aqueles que pensam que a obra
que jorra da mão vibrante nasceu no momento preciso do acto da escrita: a
inspiração, se tiver chegado a sê-lo, ocorreu muito antes, ou foi ocorrendo,
dia após dia, hora após hora, até se fixar, se chegar a fixar-se.
O Escrevedor tem que escrever e riscar e rasurar e voltar a escrever, e
é por isso que a obra que lhe sai das mãos revela, a espaços, inconsistência,
desarmonia; o Escrevedor articula pesadamente as palavras e, de tempos a
tempos, uma delas, muitas delas estão a mais ou não são as certas e o texto
torna-se monstruoso e feio. O Escritor não risca, não rasura, não volta a
escrever: e a obra irrompe coesa e harmónica como a criação do mundo no tempo
primordial; o Escritor não precisa de articular seja o que for, cada som é
lógico e íntegro, em si mesmo, e o resultado final da coordenação das
partículas – que nunca o são, de facto, para o criador – só pode ser irradiante
de beleza.
O Escrevedor, se pretende escrever sobre um sítio, localizando nele a
acção narrada, necessita de conhecer o local passo a passo, tem que ir lá,
fotografar, recolher amostras e testemunhos; e, no entanto, por muito que se
esforce, jamais conseguirá expressar o espírito do lugar, na exacta medida em
que o faz depender de fotografias, amostras e testemunhos. Pelo contrário, o
Escritor pode escrever sobre qualquer sítio, fazer decorrer uma acção seja onde
for, mesmo que nunca tenha visitado o local: saberá, com justeza, identificar o
ar que se respira em Paris ou no alto do Kilimanjaro, mesmo que nunca tenha
saído do seu canto circunscrito de terra e, o que será ainda mais
extraordinário, o seu leitor saberá que aquela é a atmosfera exata de Paris e
que essas são as luzes irradiantes das neves do Kilimanjaro, ainda que ele
próprio as conheça de trato e o Escritor não. O Escrevedor, se deseja retratar
uma actividade humana que ele próprio não tenha executado nunca, terá que
aprendê-la primeiro para de seguida se sentir capaz de dar-lhe expressão: mas
nunca o conseguirá, de facto, porque procedeu como artesão e o espírito da arte
que intentou imitar permanecer-lhe-á alheio. E, desse modo, quem vier a lê-lo
encontrará um simulacro e não será capaz de sentir a emanação subtil da atividade
apenas imitada pelo Escrevedor. De modo diferente, o Escritor é capaz de
incarnar em si todas as possíveis artes e atividades humanas, desde que as
pense e se aproprie delas por dentro: quando as narra, quando as amalgama a uma
trama que urde, está a reproduzi-las fielmente, pois viveu-as em primeira mão,
foi o seu obreiro naquela viagem, antes referida, em que escreveu, sem lápis ou
papel, por dentro de si. Logo, todo aquele que o ler vai sentir a verdade da
descrição, pode mesmo identificar-se com o espírito presente, caso as atividades
descritas lhes sejam comuns.
Escritor. Escrevedor. Escrevinhador. Escrevente. Escrivão…tantas palavras
designadoras do acto da escrita e uma, apenas uma, capaz de expressar, por
inteiro, a nobreza prodigiosa de tal arte.
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