terça-feira, 5 de agosto de 2014

ESCRITOR…ESCREVEDOR…

Escritor. Escrevedor. Escrevinhador. Escrevente. Escrivão…Quantas palavras em que é
REGINA SARDOEIRA
DR
denunciado, de modo implícito e óbvio, o ato de escrever! E contudo, indo ao cerne da ação que cada uma delas desencadeia, nenhuma pode entender-se como sinónima da outra, ou de todas.

A escrita é uma técnica ensinada e aprendida nos primeiros anos de cada um, tornada que foi, ao longo da evolução humana, um inestimável instrumento de comunicação. Uns escrevem somente o mínimo indispensável à vida social; outros são compelidos a escrever no exercício da vivência profissional. O Escrevente, o Escrivão, o Escriturário, decerto outros termos designadores de atividades burocráticas e administrativas usam a escrita numa dimensão meramente técnica e profissional. Pertencem à escrita, executam-na, deixam dela testemunho: mas somente de modo exterior, assintomático, impessoal.

O acto de escrevinhar é relativamente comum entre os homens, desde que são crianças e se enlevam nas primeiras garatujas, até à adolescência, idade típica do ato de escrevinhar, quando arroubos românticos e pseudo-poéticos fazem do papel o confidente preferencial. Não teria importância alguma, se o Escrevinhador adolescente pudesse entender que o que assim produz não possui qualquer valor literário – salvo as exceções geniais – e se dispusesse a arquivar os seus manuscritos; ou então, caso neles brilhasse a centelha criadora, a aprender com os grandes como se dá a passagem de Escrevinhador a Escritor. Não tenho a certeza se dominar a técnica da escrita poderá ser condição necessária e suficiente para que se dê semelhante passagem; mas estou segura que uma tal tentativa pouparia as estantes das livrarias de enormes mananciais de aberrações escritas…

O Escrevedor é de outra natureza, muito mais perigosa que a anteriormente referida visto que não nasce de garatujas infanto-adolescentes, antes se enuncia e denuncia na idade adulta, quando um homem/mulher decide, de uma hora para a outra…escrever um livro! Este tipo de artesãos da escrita, mais ou menos cultos, detentores de uma certa experiência que julgam interessante narrar, desatam a lançar palavras para o papel e, ao fim de umas centenas de páginas, contentes consigo mesmos, ainda que o produto do ato escrevedor possa ter qualidade medíocre, decidem editar um livro! O Escrevedor pode recorrer a uma editora e ter publicação garantida, caso tenha perfil mediático ou haja nas suas histórias matéria escandalosa, obscena ou meramente «picante». Mas pode ainda fazer quantas edições de autor quiser, pode começar a intitular-se escritor e sair à cena com lançamentos e vendas. Nasce então o Escrevedor profissional, aquele que escreve com o fito de vender, aquele que ousa chamar romance ou prosa ou poesia ou crónica aos textos que compila e vai acumulando até ter volume suficiente para merecer o epíteto de livro. O Escrevedor pratica a escrita com o objetivo único de vender e, por isso, a prosa que executa é profundamente egoísta, pouco lhe importa se o que relata for absolutamente inútil, não o perturba o facto de as suas narrações serem pastosas ou ridículas, meramente enunciadoras de si, sem cunho universal, por essa razão. O Escrevedor pode ainda querer atingir um público, conquistar uma plateia específica onde logrará alardear importância. Dificilmente sairá desse círculo confinado, bastar-lhe-á o elogio de algumas vozes que em tudo se lhe assemelharão e jamais deixará que uma crítica séria lhe demonstre as falhas concetuais, lexicais, semânticas ou de estilo.

O Escrevedor não é um Escritor, muito embora produza livros; o Escrevedor é um artesão e nunca um artista, produz obra para vender, faz dessa atividade profissão e, porque disso sobrevive, disciplina-se e escreve tantas páginas por dia, a horas certas. Vejamos: esta prática do Escrevedor, este fazer da escrita, profissão, este vender, boca a boca ou porta a porta, o produto daí resultante, nada têm, em si mesmos, de chocante ou de reprovável, já que a História encarregar-se-á de joeirar, ignorando tais obras ou, quando muito, inserindo-as num parágrafo minúsculo, como produções menores da literatura.

Sabe-se que Beethoven – um dos maiores artistas que a música jamais conheceu – foi inúmeras vezes «musicador», músico a soldo, produtor de peças por encomenda. Fê-lo para sobreviver: porque este homem de origens modestas nunca aprendeu outro ofício, era, com doze anos de idade, músico da corte e, desse modo, sustentava a família. Este homem grandioso, este artista ímpar de uma nobreza e elevação extraordinárias foi obrigado a compor e a vender, a dedicar sonatas, quartetos e sinfonias aos mecenas, precisou de regatear quantias, viveu atormentado com as necessidades humanas da sobrevivência e produziu obras para satisfazer esse fim…Mas dessas obras não reza a História, porque não foi aí que residiu a grandeza do seu génio, ela esteve sempre aquém ou além da admiração das massas, do gosto popular: aquém, na medida em que não foi entendido no seu tempo e o que foi entendido não tinha, de facto, valor; mas além, porque os séculos o consagraram fazendo retumbar o seu eco imortal. Portanto, o Escrevedor não tem qualquer importância, do mesmo modo que, por exemplo, a Sinfonia da Batalha de Beethoven não merece citação.

Mas, apesar de a História referir exemplos do género, que não se iluda o Escrevedor: nada, nas suas obras feitas a peso e medida, terá poder para resistir e vencer.

O Escritor não precisa de material de escrita – seja ele caneta e papel ou teclado e monitor – para ser, desde logo, Escritor em pleno. O lídimo Escritor produz os textos num continuum mental para o que lhe é apenas indispensável ser/estar vigilante. Um rosto humano, um pássaro, uma frase solta no ar, uma espreguiçadela, o voltear de uma onda ficam presos, enquanto motivos, na sua rede imaginária, associam-se a outros, tecendo, com eles, todas as tramas possíveis, caem no olvido, ressuscitam, emergem e submergem tantas vezes quantas forem necessárias ou inevitáveis; e um dia, quando o Escritor agarra a caneta e escreve, tudo estará harmoniosamente feito, desde logo.

Evocando novamente Beethoven percebemos que foi deste modo, e apenas deste, que ele pôde ser um músico grandioso, mesmo privado do seu mais precioso instrumento, o ouvido. Curiosamente, a surdez foi condição do seu génio, libertou-o dos sons banais, do ruído da populaça e de tantos estertores sonoros e fê-lo viver a música por dentro, no silêncio. Durante 30 anos – desde os 26 anos e até à morte – Beethoven foi surdo, primeiro, ainda de modo intermitente e por fim, na totalidade. Mas, como a música vivia nele, como a música era o sangue que lhe corria nas veias, não precisava de ouvir da maneira que o fazem os comuns mortais para sentir a harmonia sonora, para compor mentalmente sinfonias, sonatas, missas, quartetos, ouvindo, por dentro, os pianos, os violinos, as flautas e também o murmúrio dos regatos e das fontes, o ciciar das folhas nas árvores das florestas, o canto dos pássaros em arroubos de euforia ou de mágoa. Não ouvindo fisicamente a música que vivia nele, pôde escrevê-la, fazê-la tocar, chegou ao ponto de dirigir orquestras mesmo sem ouvir o mínimo som. Chama-se a isto a irradiação absoluta do génio. Se Beethoven necessitasse do ouvido para ser músico, não teria chegado a sê-lo, pois perdeu-o demasiado cedo. Se Beethoven fosse um artesão – um «musicador» como escrevi há pouco – teria parado de compor, necessitaria de aprender outra arte qualquer, logo que ficou privado do ouvido, erroneamente considerado como sendo o instrumento do músico. Mas Beethoven era um génio da música, imbuída nele e nele contida desde o nascimento: não precisava de ouvir a matéria da música, difundida pelos instrumentos, pois possuía-a em si, no estado puro.

O Escritor pertence a esta categoria. Mesmo sem escrever, materialmente falando, despojado de lápis e de papel, no negrume da noite mais escura, de olhos cerrados, o Escritor realiza os seus textos nos arcanos secretos da imaginação e da sensibilidade. E é por essa razão que o Escritor não pode fazer da sua arte profissão, não pode regulamentar a criação e debitar palavras contra-relógio, não pode estabelecer um horário de trabalho durante o qual exerce o seu mister. Enganam-se aqueles que julgam estar inspirado quem escreve, de ímpeto, uma página ou mil, enganam-se aqueles que pensam que a obra que jorra da mão vibrante nasceu no momento preciso do acto da escrita: a inspiração, se tiver chegado a sê-lo, ocorreu muito antes, ou foi ocorrendo, dia após dia, hora após hora, até se fixar, se chegar a fixar-se.
O Escrevedor tem que escrever e riscar e rasurar e voltar a escrever, e é por isso que a obra que lhe sai das mãos revela, a espaços, inconsistência, desarmonia; o Escrevedor articula pesadamente as palavras e, de tempos a tempos, uma delas, muitas delas estão a mais ou não são as certas e o texto torna-se monstruoso e feio. O Escritor não risca, não rasura, não volta a escrever: e a obra irrompe coesa e harmónica como a criação do mundo no tempo primordial; o Escritor não precisa de articular seja o que for, cada som é lógico e íntegro, em si mesmo, e o resultado final da coordenação das partículas – que nunca o são, de facto, para o criador – só pode ser irradiante de beleza.

O Escrevedor, se pretende escrever sobre um sítio, localizando nele a acção narrada, necessita de conhecer o local passo a passo, tem que ir lá, fotografar, recolher amostras e testemunhos; e, no entanto, por muito que se esforce, jamais conseguirá expressar o espírito do lugar, na exacta medida em que o faz depender de fotografias, amostras e testemunhos. Pelo contrário, o Escritor pode escrever sobre qualquer sítio, fazer decorrer uma acção seja onde for, mesmo que nunca tenha visitado o local: saberá, com justeza, identificar o ar que se respira em Paris ou no alto do Kilimanjaro, mesmo que nunca tenha saído do seu canto circunscrito de terra e, o que será ainda mais extraordinário, o seu leitor saberá que aquela é a atmosfera exata de Paris e que essas são as luzes irradiantes das neves do Kilimanjaro, ainda que ele próprio as conheça de trato e o Escritor não. O Escrevedor, se deseja retratar uma actividade humana que ele próprio não tenha executado nunca, terá que aprendê-la primeiro para de seguida se sentir capaz de dar-lhe expressão: mas nunca o conseguirá, de facto, porque procedeu como artesão e o espírito da arte que intentou imitar permanecer-lhe-á alheio. E, desse modo, quem vier a lê-lo encontrará um simulacro e não será capaz de sentir a emanação subtil da atividade apenas imitada pelo Escrevedor. De modo diferente, o Escritor é capaz de incarnar em si todas as possíveis artes e atividades humanas, desde que as pense e se aproprie delas por dentro: quando as narra, quando as amalgama a uma trama que urde, está a reproduzi-las fielmente, pois viveu-as em primeira mão, foi o seu obreiro naquela viagem, antes referida, em que escreveu, sem lápis ou papel, por dentro de si. Logo, todo aquele que o ler vai sentir a verdade da descrição, pode mesmo identificar-se com o espírito presente, caso as atividades descritas lhes sejam comuns.


Escritor. Escrevedor. Escrevinhador. Escrevente. Escrivão…tantas palavras designadoras do acto da escrita e uma, apenas uma, capaz de expressar, por inteiro, a nobreza prodigiosa de tal arte.

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