A literatura nas suas diversas formas, incluindo portanto o romance, é uma arte e deve ser respeitada por
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REGINA SARDOEIRA
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todos: quer pelos leitores, que necessitam possuir engenho para separar a verdadeira literatura da mistificação, a fim de não serem ludibriados por essas "coisas" com folhas agrafadas, uma capa dotada de um título, quantas vezes pomposo (estou a lembrar-me de alguns mas não os citarei, pelo menos hoje!) acompanhado da palavra "romance" ou "novela" ou "conto" ou "poesia" e do nome do seu autor, como é óbvio. Essas "coisas" chamam-se livros e, infelizmente para os verdadeiros autores de verdadeiros livros, atulham as montras e as estantes das livrarias e assim, o desprevenido vê a "coisa" exposta, muitas vezes com aspeto atraente, e, querendo ler (ainda se lê alguma coisa neste país desesperado!), acede a comprá-la (à "coisa"), achando que adquiriu um livro!
O pior é que, algumas vezes, depois de lerem essas "coisas", os próprios leitores pensam: «Afinal é fácil escrever um romance ou fazer poesia: vou escrever um livro, vou tornar-me poeta!» E, como o material está à mão, logo nasce o semi-plágio ou o plágio completo, pois a internet fornece quase tudo de quase tudo, basta procurar o tema, copiá-lo para um documento do word, adaptá-lo, substituindo esta ou aquela palavra, ou até quase todas, sem custo (para que serve o dicionário de sinónimos?) e eis um romance, ou seja lá o que for, escrito de modo instantâneo!
Queremos romance histórico? Não custa nada! Escolhemos uma época, um acontecimento, um episódio, pesquisamos, copiamos, colamos, mantemos os nomes reais da História (para dar credibilidade!), como por exemplo, D. Afonso Henriques e D. Teresa, a Batalha de S. Mamede e, é claro!, a data da fundação de Portugal ( não duvidem: esta história, bem contada, inclui todos os ingredientes susceptíveis de fabricarem uma telenovela da TVI! O filho que rompe com a mãe e a vence numa batalha, o Conde Andeiro a destruir os pergaminhos da honra de D. Henrique na alcova, as intrigas copiosas de aias e damas de honor e até a mescla de sotaques desde o galaico-português, ao castelhano, ao francês… que sei eu? Já me está a apetecer começar a escrever, eu mesma, este romance!), vamos copiando o enredo, para sermos fiéis às fontes e mostrarmos erudição, adicionamos um bobo inventado no momento, que pode ser a nossa própria caricatura, e outras ninharias insignificantes que também podemos encontrar na internet e copiar, colar, ir aos sinónimos, etc. (o método é sempre o mesmo!) e, quando damos conta, eis-nos com um romance de 750 páginas concluído!
Queremos fazer sonetos e ombrear com Camões ou Bocage? É instantâneo! Pesquisamos na internet alguns sonetos de um e do outro, copiamos, colamos e depois vamos aos sinónimos, mudamos as palavras, aqui e ali e até parcelas do conteúdo por causa das rimas (mas também há dicionários de rimas!) e, de um momento para o outro, eis-nos com um lote considerável de sonetos que, distribuídos pelas páginas (um em cada uma), nos dá, sem grande trabalho, uma coletânea de bons poemas num abrir e fechar de pálpebras! Quem vai descobrir que, por detrás deste semi-plágio, estão Camões ou Bocage? Ninguém pode fazê-lo porque, em boa verdade, graças aos benditos sinónimos, tudo ficou magicamente diferente!
Queremos ser outros Fernandos Pessoas? Ainda é mais fácil, acreditem! Ele escreveu à sombra de tantos heterónimos que podemos fingir sermos mais um que ainda ninguém descobriu… ou então agarramos um poema (há muitos na internet, principalmente nas páginas em língua portuguesa e, portanto, maioritariamente vindas do Brasil, o que exige mais atenção, pois precisaremos de mudar o modo de escrever e acentuar certas palavras [as liberdades dos acordos ortográficos ainda não estavam em vigor no tempo de Pessoa e, por isso, convém usar de prudência para não sermos apanhados de imediato!]) copiamos, colamos…etc e, depois de bem transformadas as palavras, por recurso aos sinónimos, ficaremos de posse de um poema épico ao modo de Álvaro de Campos, por exemplo, mas de onde Álvaro de Campos estará parcialmente ausente e podemos mesmo dar aquele tom rebelde em que ele escreve por exemplo “ Merda, sou lúcido!” e nós, espertos, escrevemos “Trampa, sou límpido ou transparente ou luzidio (é só escolher!)” e já está: eis-nos transformados em heterónimos de Álvaro de Campos, o que é bom, pois ser heterónimo de um heterónimo é de um raro e subtil engenho!
… E depois quando esses "escrevinhadores de coisas" (sabem, folhas agrafadas e com capa a que chamam livros) vão a uma dessas editoras chinfrins (esta palavra quer dizer “algazarra” ou “balbúrdia”, mas, neste contexto, apetece-me que signifique “reles”), ávidas por receberem um certo subsídio do estado para lançarem talentos (para o lixo, não duvidem, mas lançarem, enfim!) e elas aceitam editar esses abortos em forma de livro (essas "coisas" lembram-se?), pois não vejo que critérios de qualidade podem presidir a tanta lixeira editada, aí vem mais uma obra, aí está mais um autor!!! Ou então, se os escritores de "coisas" têm dinheiro disponível e tempo (esses dizem que são “independentes”: ahahah!), não precisam de se preocupar: compõem a "coisa" no sossego do seu lar, depositam-na no bolso da camisa – hoje em dia, com a informática, nem é preciso imprimir nada – dirigem-se a uma tipografia e, como quem encomenda sabonetes ou sacos de batatas, mandam fazer o número de exemplares da "coisa" que acharem conveniente.
Julgam que alguém se dá ao trabalho de apreciar a "coisa", de corrigir os erros, de sugerir ao escrevinhador que reformule, invente, mude isto ou aquilo? Nem pensar! Afinal, a editora ganha o seu subsídio e o autor compromete-se a vender um número pré-acordado de livros que pagam a edição e pelos quais não recebe direitos; a tipografia cobra um preço, como qualquer fábrica de enlatados, e não precisa de se preocupar com mais nada.
No primeiro caso, se o autor se dispuser a dinamizar ações e a divulgar o seu livro, pode ser que ele saia das prateleiras, pois a distribuidora dessas tais editoras que apelidei de chinfrins só distribui até um certo ponto; no segundo caso, o escrevinhador converte-se em caixeiro-viajante e anda de porta em porta a vender a sua «coisa com folhas agrafadas e capa com nome quantas vezes pomposo»!
É esta mistificação aterradora que transforma o panorama da nossa literatura numa aberração. Os best-sellers proliferam: abrimo-los e vemos o tal semi-plágio de que falei (e que é, muitas vezes, a única coisa que se aproveita do romance ou da novela, porque foi copiado, colado, alterado com sinónimos, sabem: aquilo que já vos contei!) e uma mixórdia lamentável de história deprimente e de personagens esfumadas ou caricatas ou nada disso (o que é pior, pois uma personagem «esfumada» pode sugerir mistério e uma «caricata» pode dar vontade de rir, enquanto que o «nada disso» é deprimente!); ou então, vemos, logo na capa, um nome sonante (às vezes acompanhado de retrato, para que não haja dúvidas) daqueles que hoje em dia se chamam Colunáveis, Jet-set ou Qualquer Coisa Estranha e Aberrante do Género e que, ou protagonizaram um escândalo, ou disseram palavrões, ou foram presos, ou cantam e dançam, ou jogam futebol, enfim, qualquer coisa serve, desde que dê brado, seja muito feia ou muito debochada, ou então que, por uma questão genealógica, o escrevinhador das tais «coisas… etc» tenha na família alguém que já deu brado antes (nem sempre brado escandaloso, note-se porque, de vez em quando, o escrevinhador tem antepassados honestos e de qualidade.)!
Tudo o que tenho vindo a escrever pode parecer cómico mas, mesmo sendo-o parcialmente, é, por outro lado, uma verdadeira tragédia. Explicar-me-ei-melhor: como é que o pobre leitor, cansado de telenovelas, campeonatos de futebol, programas de entretenimento, debates políticos confrangedores, publicidade enganosa e caricata, hecatombes (esta palavra, literalmente significa «sacrifício de mil touros» mas se substituirmos «touros» por «homens» o sentido mantém-se e até se reforça) e cataclismos ao almoço e ao jantar (estou a falar da televisão, não sei se repararam) vai decidir o que comprar para, decididamente, começar a entreter-se, lendo?
Enterrado no vício democrático que dita, mais ou menos, que a maioria é que tem razão (a democracia é a ditadura da maioria!), o candidato a leitor chega a uma dessas superfícies comerciais, onde também há «coisas agrafadas, com capa…etc.», vê uma espécie de top de vendas e dezenas de exemplares das «coisas» ali à mão de semear (nunca percebi bem este provérbio pois, podendo haver semeadores canhotos, não sei a que mão estará ele a referir-se!) e, ávido de entretenimento, quando não de oportunidade de cultivar-se, por fim, adquire, como é óbvio, o líder da tabela! Percebem o que certamente poderá ter-lhe acontecido?
Este assunto é escabroso, bem sei, mas o que não será tal nos dias que correm?
Eu, por exemplo, até há pouco tempo atrás considerava, com orgulho, confesso!, que o facto de uma certa editora talvez chinfrim (mas eu não o sabia na altura) ter publicado uma das minhas obras, praticamente sem hesitar e sem sugerir a mudança de uma singela vírgula, significava mais ou menos isto (para mim, claro, e, por isso, estou a escrever na 1ª pessoa): finalmente, fui reconhecida como escritora portuguesa, por fim, chegou a minha vez de fazer carreira e, daqui para a frente, é só escrever e publicar a um ritmo avassalador [é que eu sou assim, sabem, tenho um «ritmo avassalador» no que concerne à escrita e por isso achei que a «minha» editora tinha entendido e iria acompanhar esse dito e redito ritmo] e não tardará nada até ver o meu nome e a minha obra saltarem, como bolas de pingue-pongue, de mão em mão (ou de mão para mão ou nem uma coisa nem outra, porque falei de pingue-pongue e não devia)!
Mas agora digam-me: por acaso sabem quem sou eu, que livro editei, ou alguém editou, para receber o tal subsídio? Se eu lhes disser o meu nome e o título do livro e se, por acaso, decidirem arriscar alguns euros (e, neste tempo de crise, eu própria não aconselho semelhante imprudência: as folhas agrafadas com capa, etc, não são comestíveis!) e adquirirem o exemplar, não terão sérias dúvidas acerca do valor do seu conteúdo? Em primeiro lugar, não protagonizei ainda nenhum escândalo sonante, não pertenço ao Jet-set (como me custa escrever esta expressão!), não canto, não danço, não sou nem fui amante de nenhum futebolista ou afim envolvido em escândalos com apitos e quejandos, os meus antepassados, se bem que alguns deles talentosos, não chegaram ao ponto de me abrir os portões da fama… e por aí adiante; em segundo lugar, depois de tudo o que escrevi até agora, como irão ter a certeza de que não fui à internet copiei, colei, etc. (já disse tudo isto antes) de modo a escrever um dos tais romances instantâneos que eu afirmo a pés juntos existirem por aí às dúzias?
Quanto à «minha» editora que agora posso classificar de chinfrim sem hesitações, lançou-me, é verdade (para o lixo e eu já explico, melhor!) mas, depois de o fazer, nem olhou para mais nenhum dos livros da minha autoria que oportunamente lhe enviei! E porque digo eu que me lançou, mas para o lixo e não para o início da carreira de escritora a que eu, inocentemente, achei que iria aceder?
Como fui eu que paguei a edição (teria de, feitas as contas, vender 279 livros para que tal acontecesse… e vendi!) e ainda programei, sozinha todos os lançamentos (um deles foi extraordinariamente bizarro pois, de sala cheia, falei de um livro e, para atestar a sua existência (do livro, é claro), havia um único exemplar na hora da sessão, o meu, já que a editora fez as contas, achou que o lucro seria insignificante, não justificando uma certa viagem e não compareceu com os livros que, sendo meus, afinal lhe pertencem!) a dita empresa desinteressou-se e partiu para o lançamento de outra promessa das letras portuguesas, com o respetivo subsídio do estado, etc.
Compreenderam?
Portanto, eis-me em plena crise existencial: sou ou não sou escritora? Eis-me em plena crise de perspetiva criativa: escrevo ou não escrevo mais ao ritmo avassalador a que sou atreita? Eis-me em plena crise de objetivos: faço ou não publicar os meus originais por uma dessas editores que põem anúncios nos jornais a pedir escritores? Eis-me em plena crise emocional: continuo a produzir em torrente e guardo tudo bem guardado deixando o produto em testamento para se transformar em obra póstuma? São demasiadas crises bem sei e há dias em que nem penso muito no assunto: tenho medo, muito medo de enlouquecer!