sexta-feira, 29 de agosto de 2014

DA INFORMAÇÃO À SABEDORIA

GABRIEL VILAS BOAS
DR
Se há coisa que caracteriza os tempos em que vivemos é a informação. Ela está disponível por todo o lado, em múltiplas formas e em quantidades que ultrapassam a nossa capacidade de absorção.
E é aqui que a angústia se instala para quem pretende transformar informação em conhecimento e, através deste, alcançar um estado de satisfação pessoal.
Recorrentemente cometemos o clássico erro de querer chegar a tudo. Por avidez, por vaidade, por ignorância. Transferimos a ideologia consumista para um mundo que é, essencialmente, espiritual. Só podia dar mau resultado!
Processar informação em conhecimento dá muito trabalho e não é suscetível de causar inveja social, esse novo elixir da juventude e do ego.
O conhecimento anda devagar pela vida. Foi feito para saborear e para partilhar e por isso dá-se muito mal em pistas de Fórmula I. O conhecimento não é vaidoso, ávido ou invejoso, muito menos sectário ou preconceituoso, porque sabe que esses são predicados dos ignorantes.
A primeira qualidade do sábio é a humildade. O seu conhecimento será sempre, e por definição, limitado. O sábio possui ainda outra virtude: a frugalidade. Ele não ambiciona possuir toda a informação nem a quer só para si.
A primeira demonstração de sabedoria que podemos ter num mundo a abarrotar de informação é saber selecionar. Selecionar não é excluir, mas antes hierarquizar, escolher aquilo em que nos vamos concentrar.
Quando absorvemos corretamente esta ideia, o conhecimento tem muitas hipóteses de se tornar um prazer. Segue-se o diálogo, a troca de ideias, a argumentação, a curiosidade… e assim se vai construindo um nível superior de satisfação intelectual.
A sabedoria alimenta-se duma vasta e diversificada informação, mas sem a digestão correta acaba por engordar e deformar o sábio, de tal forma que ninguém o aprecia nem ele anda satisfeito com o seu peso. Comeu demasiado, comeu mal. O mesmo se passa com muitos de nós quando lemos, vemos, ouvimos, viajamos com sofreguidão. O silêncio, a reflexão e o saber ouvir são excelentes mestres de vida.
Antoine Lavoisier dizia que na natureza “na se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Com esta máxima, aprendemos a transformar lixo em matéria-prima, mas primeiro tivemos de aprender a separá-lo para depois o reutilizar. Só quando aprendemos a separar o lixo é que este deixou de ser lixo. Toda a informação é importante, mas se não for hierarquizada acabará no cesto do lixo porque aquilo que não percebemos, cansa-nos e em pouco tempo desprezamos.
Claro que conhecemos melhor aquilo que amamos. O truque é amar a descoberta e deixar que as coisas, os sítios, as pessoas nos conquistem… lentamente.

Quem aprecia o prazer de comer inventou o conceito gourmet e no conhecimento precisamos de copiar a ideia porque desfrutar é um prazer de sábios.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

MEU QUERIDO MÊS DE AGOSTO

Não podia deixar terminar o mês de Agosto sem dirigir umas palavras de apreço, que trago sempre no
ANABELA BORGES
DR
coração, aos emigrantes.

Eu costumo dizer que, na minha terra, é dos emigrantes o mês de Agosto.

Respeito muito este mês, porque devolve-me a possibilidade de (re)encontrar muitos destes emigrantes, que sonham todo um ano em regressar às origens. E vivem como que num tempo perro, por vezes preso, como entre as paredes de um caleidoscópio, vidrilhos de mil cores e feitios, à espera de um sinal no calendário, que é o regresso a CASA. A casa onde têm o coração. 

Os primeiros destinos dos portugueses acompanharam as conquistas, as descobertas e a expansão marítima. As primeiras vagas foram para as praças fortes do norte de África. Crê-se que no final do século XV, cerca de 100 mil portugueses haviam já emigrado.

Mais recentemente, entre as décadas de 30 e 50 do século XX, muitos, como o meu padrinho (irmão do meu pai, que emigrou para a Alemanha), partiram para diversos destinos, em busca de uma vida melhor.
Em 1954, o senhor Fernando deixou o pequeno lugar onde nasceu, de nome Aboim, no norte de Portugal, atravessou o Atlântico, rumo ao Brasil, onde se instalou para viver. Optimista, ele diz que se livrou da guerra. Lá, encontrou a mulher da sua vida, num casamento que deu frutos, filhos e netos, e já completou as “bodas de ouro”. Na mesma época, tal como o senhor Fernando, cinco tios do meu marido (todos irmãos), oriundos de um lugar remoto pertencente a Santa Marta de Penaguião, seguiram o mesmo destino, como tantos e tantos outros fizeram.

Estima-se que entre 1958 e 1974, 1,5 milhões de indivíduos tenham abandonado Portugal. As estatísticas oficiais registam, por exemplo, que só no ano 1973, que antecede a Revolução de Abril, 123 mil pessoas emigraram.

Tantos partiram em busca de uma vida melhor, na época lutando contra o clamor salazarista do “orgulhosamente só”. Tantos escaparam à guerra, à custa de deixarem famílias sem um elemento, ou partidas a meio, ou partidas por inteiro.

No final da década de 80 e inícios da década de 90, vi eu partir tantos outros, muitos a abandonar os estudos, a interromper uma vida e a iniciar outra, como aconteceu com a minha amiga Emília, que foi para a Suíça e lá continua até aos dias de hoje.

Ao longo de tantos séculos, muitos milhões de portugueses espalharam-se por todo o mundo. Muitas vezes, fizeram-no por razões culturais, outras pelo espírito de aventura, mas os casos que eu conheço existiram sobretudo por motivos de sobrevivência, para encetar a busca de uma vida melhor – a buscar o que o seu país lhes não dá.  

Na realidade, muito haverá para aprender, sobretudo em termos sociológicos, sobre o fenómeno migratório português. Acredito que a emigração portuguesa ainda está por compreender em toda a sua extensão e implicações.

A emigração portuguesa é um “eterno retorno”. A roda dentada do tempo gira e cria uma nova onda de emigração, a cada instante isso acontece, como está a acontecer agora – todos os dias gente partindo, agora como outrora, como um fado. Levam assombros no olhar, lágrimas e incertezas, e mãos vazias de tudo. E mais do que o silêncio, a distância e a saudade, carregam vidas aos ombros.

O emigrante português, apesar das asas que lhe enfeitam o coração, procura sempre o solo em que se há-de alimentar a sua sorte, como árvore de fortes raízes a agarrar-se à terra que o viu nascer. Não se renega nunca. Sempre regressa.

Não podia deixar acabar o mês de Agosto sem lembrar o emigrante. Boa viagem. Bom regresso. Bom final de tanto. Bom (re)começo de outro tanto que está PORvir – tanto que sabemos já  (que o intuímos) e outro muito tanto de incertezas.

Assim são os emigrantes do meu coração: 

Debatem-se em alegrias,
Conversas rasgadas e risos,
do nascer ao sol-posto.
E é deles a noite e o dia:
as festas e as romarias, as ruas e a sombra das árvores, o folclore e a aldeia, o rio, o mar e a areia…
É deles o mês de Agosto,
que trazem bem guardadas
as adversidades de um ano todo,
porque, em Agosto,
é de esperança inequívoca
o seu rosto.*

*De uns verso que escrevi. 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

“QUEM TEM ALMA NÃO TEM CALMA”

A premissa de Fernando Pessoa serve de base para explicar revoltas internas, como a minha, pela
ALINA SOUSA VAZ
DR
incapacidade de fazer algo perante a barbárie que está a acontecer ao ser humano pelo mundo.

Contudo, hoje, uma brisa chegou com a notícia do cessar fogo permanente entre israelenses e palestinianos em Gaza. A pergunta que se coloca de imediato é: - Haverá esperança para estes povos?

Até quando líderes, movidos por interesses políticos, incitarão, covardemente, uma cultura de cólera no coração do seu povo contaminando o legado de pais para filhos?

A ortodoxia e o fanatismo doutrinário inflamados por um ódio secular levam grupos radicais sunitas a ter como objetivo primário a eliminação de Israel da história. Independentemente das suas histórias, que penso que alguns de nós não as sabe em concreto, todos os seres humanos têm direito a viver em paz. Esta devia ser a base de partida para as conquistas dos seus interesses políticos e territoriais.

Este conflito entre Israel e os grupos armados palestinianos, que se iniciou em 8 de julho, fez mais de 2.130 mortos do lado palestino e 69 entre os israelenses. Números que esses grupos armados usam para justificar a continuação da luta derramando o sangue de milhares de inocentes, incluindo o de cristãos e outras minorias religiosas. Com o intuito de levar a cabo o califado mantêm campanhas militares expansionistas, ameaçam todas as nações que intervenham provocando dor e sangue.

“Quem tem alma não tem calma” perante ideologias de ódio e genocídio que são refletidas no artigo 7 do Estatuto do Hamas, no qual se lê: “Há um Judeu escondido atrás de mim. Venha e mate-o!"
“Quem tem alma não tem calma” em ver armas escondidas em hospitais.
“Quem tem alma não tem calma” em ver escolas como pontos para lançamento de mísseis.
“Quem tem alma não tem calma” nas consecutivas interrupções de acordo de cessar fogo, mantendo o seu próprio povo como refém.

Mas hoje acordamos com uma “luzinha” que muitos não acreditam que continue a brilhar. A Luz da Esperança! Esperança que levou à comemoração pelo fim do conflito, onde tiros de alegria foram disparados para o ar, enquanto nas mesquitas se agradecia a Deus através de alto-falantes.

O Ministério das Relações Exteriores egípcio, mediador das conversações, informou que o acordo prevê a abertura imediata dos pontos de passagem entre Israel e Gaza para a rápida entrada de ajuda humanitária, equipas médicas e de meios para sua reconstrução.


A PAZ não tem preço. Não se compra nem se vende. Consegue-se atingi-la quando o ser humano está carregado de bons princípios morais, sociais, cívicos e, acima de tudo, quando tem respeito pelo seu semelhante. Palavras difíceis nesta guerra, eu sei, mas chega de se usar crianças como escudo-humano. 

terça-feira, 26 de agosto de 2014

O SUICIDA E O SUICÍDIO – QUESTÕES

«Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. São jogos. É preciso, antes de tudo, responder.»

Albert Camus, O Mito de Sísifo

Julgo entender o suicida mas não sei se entendo o suicídio: porque o suicida é aquele que decide matar-se e o suicídio é a morte de si – e eis aqui a grande diferença.
REGINA SARDOEIRA
DR

Ao entender o suicida, vejo com clareza a atitude do homem sitiado e despido de ilusões, entorpecido pela doença, pela neurose, pelo desgosto de viver, pela solidão e pelo abandono, pela recusa do amanhã, pela tristeza ao acordar, pelo desespero e por tantos outros sentimentos que podem obscurecer o vigor da mente e travar a força dos músculos. Vejo-o a recusar a vida, quotidianamente, e no entanto a forçar-se a vivê-la, vejo-o a detestar a relação com o mundo, com os outros, e contudo a ter que sorrir, conversar, estender a mão, vejo-o a ter fome e sede e sono, a sentir o sangue a latejar nas veias e contudo a não desejar mais ter essa aguda certeza de estar vivo e vejo que chega um dia em que tudo nele se agiganta ao ponto de não aguentar o descrédito de si, o cansaço de si, a hipocrisia de si, vivo e contudo fazendo um trajeto privado de sentido num contínuo somar de segundos. Para chegar a efetuar o gesto decisivo e romper de vez a ligação com o mundo, um homem precisa de atingir um inexorável vazio, um despojamento essencial, uma descrença absoluta, e uma coragem incomensurável. E digo coragem, sim, porque aquele que põe fim à vida e anula a sua desgraça consegue realizar aquilo que muitos outros, inúteis e insignificantes, misérrimos espécimes desta misérrima raça a que pertencemos todos, não vão realizar nunca, persistindo em açambarcar o espaço com a sua fútil presença. Ao menos o suicida percebe que tem que ceder o lugar aos outros, percebe que não adianta carpir tristeza aos ouvidos do mundo, percebe que não pode continuar a trair a sua humanidade, sendo um despojo, sentindo-se um banido.

O suicida é um herói, porque dá a si mesmo a glória de cortar a linha que o prende à vida e cumprir o mandamento daquele que um dia pregou, «Morre a tempo!»*, não arrastando a sua sombra inútil pelos caminhos da terra.

O suicídio porém, tal como a morte, escapa, de todo, à minha compreensão.

É uso dizerem: «Que descanse em paz!», e esta frase, de pendor religioso, pode ter uma conotação vazia, pois o que é descansar em paz, para aquele que morre e que, por isso mesmo, não pode sentir seja o que for? Ficar estendido no túmulo, imóvel e frio ou ser incinerado e flutuar ao vento de qualquer lugar terá alguma relação com ‘descanso’ e ‘paz’? Creio que não. O corpo que repousa no esquife, a cinza que se desvanece na flutuação do vento não sentem o descanso ou a paz, ou seja o que for, porque o elo vital foi quebrado e neles nada resta já capaz de sentir.

Agora imaginem que à hora da morte, cessado o movimento neuronal e sanguíneo e reduzido a corpo a um pedaço de matéria sem alento, que em breve irá desintegrar-se, a consciência – que ninguém sabe o que é, ou onde mora – escapa às leis do esvaimento próprio da morte e, habituada ao corpo a que deu sentido, continua a perceber-se a si mesma, como dantes! Imaginem essa consciência, que nos diz o que sentimos e vemos e desejamos, a persistir, atuante, e a perdurar, como parte de nós, desarreigada da corrupção, a poder perceber ainda o mundo de que aparentemente se ausentou! Se assim for – e este é um postulado científico – que faz o suicida quando executa o ato que crê libertador? Não é verdade que, pela perenidade da sua consciência, vai prosseguir percebendo as dores, o vazio, a solidão de que quis ausentar-se, e mais, vai testemunhar a vileza do seu corpo, entregue aos outros, e todo o séquito de cerimónias, louvores e homenagens a que o sujeitarão, ou ao esquecimento da sua memória, em breve mais um desaparecido, entre os milhões de desaparecidos, um nada no tumulto de muitos nadas?

Mas, se a morte for outra realidade qualquer, em que se nos revele um mundo novo ou realidade nenhuma, que, por isso mesmo, nunca existirá, enquanto realidade, escolher a morte, como faz o suicida, que, aparentemente, quer cortar cerce a ligação vital, é escolher, afinal, o quê?

Querer deixar a tortura de uma existência, e logo a seguir entrar noutra, eventualmente mais terrível e de onde eventualmente não logrará sair – poderá morrer-se duas vezes? – ou cair num absoluto negrume e ver esse negrume como imagem do seu mundo, daí em diante, será uma escolha  preferível ao somar quotidiano de minutos, ainda que despojados de valor ou sentido?

Impossível responder. Para lá desse limiar, que o suicida escolhe marcar e a que os outros acedem, mesmo sem querer, não há notícias plausíveis, não há teorias convincentes ou verificações experimentais, não há a certeza de uma existência post mortem ou da sua inexorável inexistência – há somente hipóteses, postulados, crenças.

Aquele que morre, porque assim o determinou a sua vontade ou o que julga ser o seu arbítrio – mesmo podendo não o ser, de facto – escolhe uma terrível incógnita, escolhe a adesão a um estado de que não tem qualquer referência em primeira pessoa, escolhe um absurdo para si, pois retira-se de um palco sem saber os contornos de outro possível.

As notícias de suicídios, perpetrados por aqueles a que chamamos suicidas, atingem-nos de vez em quando. Não somos capazes de compreender, nem adianta ir à procura dos motivos e, mesmo que eles deixem cartas ou indícios, isso não significa que essas cartas  e esses indícios expliquem a razão íntima do ato de escolher a morte. Muitos tratados têm sido escritos sobre o tema. Nenhum esclareceu esse fenómeno que acredito ser recôndito, que acredito acontecer nas zonas mais obscuras da consciência, que acredito ser uma pequena gota indistinta, cedo tornada onda avassaladora, que arrasta o suicida para a morte de si, como opção irreversível de todo o seu ser.

*Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ATÉ ONDE VAI A NOSSA (IN)SENSIBILIDADE SOBRE A VIOLÊNCIA PELO MUNDO?!

CATARINA DINIS
DR
Até onde vai a nossa (in)sensibilidade sobre a violência pelo mundo?! Questiono-me diariamente sobre o nível da nossa frieza quando somos receptores de tantas mensagens/ noticias relacionadas com a violência exercida sobre outro Ser semelhante, devido a ideologias, fanatismos. Indiferentemente de crenças, ideais entre outros enquanto Ser Humano somos portadores de uma fria crueldade, sem escrúpulos seguimos adiante, para o próximo instante. Uma dessas notícias foi a decapitação de mais um jornalista e escrevo “ de mais um” porque o número tem superado o imaginário. 

James Wright Foley, fotojornalista empenhado em mostrar não mais do que a verdade diária, sequestrado em 22 de Novembro de 2012 na Síria e mantido em cativeiro pelo grupo auto-intitulado Estado Islâmico. "Nunca estivemos mais orgulhosos do nosso filho Jim. Deu a vida a tentar mostrar ao mundo o sofrimento do povo sírio. Imploramos aos sequestradores que poupem a vida do resto dos reféns. Tal como o Jim, são inocentes e não têm controlo sobre a política do governo americano no Iraque, na Síria, nem em nenhum lugar do mundo", escreveu Diane Foley no Facebook. È realmente de nos tirar as palavras e a respiração.

Todos os jornalistas seguem por base um código deontológico e a sua ética Jornalística, pois hoje em dia não podemos esquecer que os meios de comunicação são o 4º poder. Esta situação só vem criar ainda mais discussão sobre até onde podemos ir para nós manter informados e seguros ou devemos ter esta noção “ heróica” e procurar levantar o pano escuro em que tantas vezes somos levados a entrar. James Foley apenas pretendia mostra-nos a realidade de um dia a dia tão normal para uns e arrasadora para outra metade do mundo e terminou numa rede de morte.

Esta situação do nosso mundo real, remetendo-nos para um campo interessante da Filosofia, os valores. Mas afinal o que são na realidade os valores. “Os conceitos de bom e de mau, que, à primeira vista expressam com suficiente clareza o que querem dizer, são na realidade confusos, equívocos e de múltiplos sentidos” in “Ensaios sobre o progresso “  de Garcia Morente.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

SINTOMAS DUMA DOENÇA MAIOR

GABRIEL VILAS BOAS
DR
O ébola é um vírus que mata há trinta e oito anos!
No último mês, as televisões europeias foram relatando casos e supostos casos de ébola que atingiu cidadãos da Europa e dos EUA. Entre a ignorância, o medo e a busca desenfreada duma cura para ontem, as populações do mundo ocidental deram-se conta que a febre hemorrágica ébola não tem vacina que neutralize o vírus e que a taxa de mortalidade da doença é de 90%.
“Como não há vacina?” – terão pensado muitos espanhóis, italianos ou franceses, espumando indignação frente ao televisor.
No nosso conceito, sempre bem informado e muito civilizado, só não há cura para a sida ou para o cancro e mesmo para esses a medicina consegue enfrentá-los, minorando a doença, adiando a sua vitória.
Mais indignados ficamos, quando uma consulta num sítio qualquer da internet nos informa que a doença já fez trinta e oito anos. A revolta cresce ao perceber que a indústria farmacêutica disponibilizou rapidamente medicamentos em teste para acorrer à situação dos europeus e dos americanos em perigo. Leio que dois americanos foram salvos pelo fármaco 2MPapp, até agora só testado em macacos.
A medo, lá explicam que a ocorrência da doença é episódica e nunca atingiu mais de mil pessoas por anos, com exceção deste. Todavia, em trinta e oito anos, o ébola já deve ter ceifado um número correspondente ao dobro da população da cidade de Amarante e ninguém se preocupou em mandar umas caixas de 2MPapp, para macacos, ou outro qualquer fármaco experimental para a Libéria ou para o Congo.
O problema nunca foi o número “reduzido” (!?) de casos de ébola ao longo de quatro décadas, o problema é que os infetados sempre foram negros e africanos – essa subespécie humana. Foi preciso morrerem uns europeus de cor branca para acordarmos para a vida e o africano ganhar dignidade humana.
Em África morre gente à fome, em África faltam vacinas básicas, em África falta humanidade europeia.
Na Europa atrozmente insensível em que vivemos, a opinião pública e publicada não percebe que ser grande e de primeiro mundo é, antes de mais, garantir que todo o mundo tenha o básico, assegurar a dignidade humana, em forma de saúde e educação, para todos.
POST SCRIPTUM: O Ricardo Pinto alertou-me para o facto de esta ser a centésima crónica da Birdmagazine. Fico contente pela coincidência de ser eu a escrevê-la. Escrever uma crónica na Birdmagazine é um privilégio que o Ricardo me proporciona semanalmente há nove meses; é a possibilidade de fazer por prazer aquilo que sempre foi a minha paixão profissional. Partilho este espaço com a Anabela Borges, Regina Sardoeira e Alina Vaz. Gosto muito de as ler a todas e espero que continuem por muito tempo.
Refletir sobre aquilo que nos rodeia é um ato de cidadania, uma oportunidade de aprender, um bocadinho de nós que partilhamos com os outros.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

FÉRIAS ALGARVIAS

“Há mais doentes à espera nos hospitais, mais trânsito na Nacional 125 em fuga às portagens da A22, filas em restaurantes e supermercados. É o reflexo de a população triplicar no Algarve durante o mês de agosto”, lê-se no Jornal de Notícias de 16 de Agosto de 2014.
Na mesma data, o Diário de Notícias acrescenta: “Improviso e paciência evitam colapso algarvio no verão”.

ANABELA BORGES
DR
Eu não gosto de passar férias no Algarve. Ando sempre a fugir de ir para lá, mas, volta e meia, vou lá parar, em busca de Sol e de bom tempo, porque sou do norte e farto-me do frio, do vento, da chuva e dos invernos intermináveis. Normalmente, sou bem-sucedida – no bom tempo e nas horas sem hora passadas com a família. O resto costuma ser uma desilusão.

Nunca faço férias no mesmo lugar, na mesma cidade, na mesma praia. Se o faço, é porque gostei muito e então decido repetir a experiência. Tirando isso, vou sempre para lugares diferentes. Vou experimentando um e outro lugar, para ver se não saio decepcionada com o que o meu país tem para me oferecer quando sou turista cá dentro. 

E a zona do país que mais me tem decepcionado em férias é, sem sombra de dúvidas, o Algarve.
Em termos gerais, se eu comparar o Algarve que visitei há uns dez anos com o Algarve de agora, poderei afirmar que as coisas melhoraram um bocadinho, mas foi só um bocadinho.

O Algarve tem ainda muito para aprender em matéria de turismo. O Algarve não aprendeu, nem com a crise.

No artigo supra-referido do JN, podemos ainda ler que os empresários queixam-se de falta de mão-de-obra qualificada, pois contratem-na! A meu ver, em Portugal, não falta mão-de-obra qualificada na área do turismo, o que é necessário é contratá-la e pagar o valor justo por ela. Não é chegar à época alta, arejar o mofo do restaurante (supermercado, lojinha, residência…), que está fechado durante a maior parte do ano, e toca a aviar turistas – venha a nós o vosso, que é para isso que cá estamos e para isso vós cá vindes.

O Algarve ainda não está preparado para o turista de (se ainda se pode chamar) “classe média”, o turista comum, na boa acepção da palavra. O Algarve ainda olha o turista nacional com algum desdém, sobretudo o turista que não tem “fortunas” para gastar. Já está melhor, mas ainda funciona um pouco assim. Deixo-vos aqui uma algaraviada. 

Uma vez, na cidade de Tavira, paguei mais de 100 euros por uma dourada e duas batatas cozidas para dois. Otários… (soubéssemos nós, a ver se lá tínhamos ido…). Não, não era um restaurante de luxo, nem com um serviço de excepção, era um restaurante normal (não fosse o valor da parca refeição, que o torna anormal a meus olhos). 

Em Monte Gordo, há um hotel que se diz de 4 estrelas. Bem, no “meu” país aquilo nunca poderia ser considerado um hotel dessa categoria: as zonas comuns são abafadas, sem condições de se passar por elas sem pingar suores a fio; mais banho menos banho, não adianta, pois basta sair do quarto para verificar que não há ar condicionado – é mesmo para abafar; o restaurante do hotel é do tipo “cantina” de parque de campismo, com tabuleiro e balcão corrido, vergonhosamente encafuado numa cave (abafadíssimo), com filas intermináveis para todas as refeições do dia. Saindo do hotel para ir para a praia, em pleno centro de Monte Gordo, vai-se por caminhos de terra, sem passeios, enfeitados de cocós de cão, contornando os carros estacionados ao trouxe-mouxe – o que, aliás (carros estacionados ao trouxe-mouxe nas imediações das praias), é um postal ilustrado do Algarve.

Em Manta Rota, praticamente também não há passeios, visto que as tascas e cafés instalam as suas esplanadas em cima deles(duvido que isso seja legal), obrigando as pessoas a caminhar pela rua juntamente com os carros; os poucos passeios que existem são estreitíssimos e, como se diz na minha terra, um de cada raça – aqui ladrilho, aqui calcário, ali cimento –, fazendo com que a Manta Rota pareça uma verdadeira manta de retalhos. Típico. Postal.

Qualquer taberneiro do norte do país teria vergonha de pôr à frente o prato de lulas fritas, por 10 euros, que me serviram num restaurante algures em Portimão: as lulas, que nitidamente não eram frescas (via-se que eram congeladas), não eram maiores do que polegares e nadavam em óleo, ladeadas de quatro ou cinco metades de batatas cozidas e polvilhadas com coentros – quer dizer, ficava-se com fome, era pouca comida… Mas algo foi bem pior que a fome! Fiquei enjoada de gorduras por duas semanas (e não, não estou a exagerar). A pobre refeição acabou por ficar dispendiosa, com as entradas, as bebidas e as sobremesas.

Em Albufeira, quando perguntámos à chefe de mesa de um restaurante se podíamos sentar-nos na esplanada, ela demorou uns segundos a responder – aquela mesa que vagara era tão boa para os ingleses! – e depois disse qualquer coisa como (foi verdade!): “Podem, sim. É um prazer acolher os senhores… que falam a língua de Camões”. 

Oh, Camões, Camões: “Esta é a ditosa pátria minha amada”!* 

Albufeira é assim uma coisa entre abismos e absurdos. Depois do dito jantar na “língua de Camões”, fomos dar um passeio a pé. Não se podia. De facto, aquilo é dos estrangeiros, sobretudo dos ingleses: o apertilho nas ruas era aflitivo; os bares estavam a abarrotar de gente; a cidade fervilhava de música, de euforia e fedia a álcool. As pessoas estavam “animadas”, mas não eram necessariamente educadas, pois, por exemplo, atiravam pedras de gelo aos cantores-animadores dos bares, mas como aquilo era tudo em esplanadas no meio das ruas, qualquer um levava com as pedras de gelo, como um de nós levou nas pernas, e não foi bonito. No final, ficou uma sensação de alívio por estarmos em Albufeira só de passagem.

Para finalizar este artigo, acrescento que o Algarve tem, de facto, águas calmas (não disse areias) e bom tempo. E nós, turistas comuns, que vamos em busca disso, até nos esquecemos de todos os males, se nos voltamos para o mar, assim ao fim da tarde, quando as pessoas vão abandonando a praia, tudo a ficar-nos para trás das costas e a paisagem marítima a envolver-nos nos crepúsculos dos mistérios de um mundo ainda por descobrir.

E assim como assim, boas férias!

*Luiz de Camões, Os Lusíadas (Canto III, est. 21)  

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O ADJETIVO

REGINA SARDOEIRA
DR
O Adjetivo. O Nome que se junta a outro. Aquele género de palavras, transversais a todas as línguas, úteis para atribuir qualidades a palavras singulares, permitindo-lhes uma clarificação superior.
Suponhamos que no nosso texto íamos falar de uma MESA. Como resulta evidente, ao lermos a palavra «mesa», somos, de imediato, invadidos mentalmente pelo respetivo conceito que, ao nível ideal, corresponde à imagem de uma mesa concreta, uma, entre as muitas que se nos apresentam à observação quotidiana, a qual pode ou não equivaler à mesa que, enquanto autores do texto, pretendíamos tornar explícita. E então, caso essa mesa específica seja relevante para a compreensão da trama textual, poderíamos recorrer a adjetivos, para retirar da mente do leitor o seu próprio modelo ideal e fazê-lo aderir ao que pretendemos que seja o nosso. E então diríamos, por exemplo, «uma mesa rectangular». Ao dizê-lo, obviamente, todos os outros formatos possíveis seriam de imediato afastados do pensamento do leitor, que se fixaria nas mesas rectangulares suas conhecidas, elegendo, muito provavelmente, aquela que, no seu entendimento de leitor, mais se ajustasse ao contexto. 

No entanto, continuemos a conjecturar. Dizer «uma mesa rectangular» ainda não nos enche as medidas, enquanto escreventes, pelo que necessitaremos de continuar a acrescentar adjectivos; e poderia nascer o seguinte: «uma mesa rectangular imponente».  De acordo com a concepção de imponência que se aloja na mente do leitor, a mesa rectangular surgirá mais ou menos pesada, mais ou menos comprida, mais ou menos trabalhada, feita de um material mais ou menos nobre, mais ou menos gasta pelo tempo. Portanto, carece ainda de objectividade. E o nosso escrevente, obcecado pela sua mesa específica, desejando ardentemente que o leitor reconheça, exactamente, a mesa de que ele quer falar, terá que adjectivar de novo, escrevendo, por exemplo assim: «uma mesa rectangular imponente, polida…» . Novas imagens ocorrerão ao leitor perante este terceiro adjectivo. Polido/a sugere, instantaneamente, brilho e, portanto, um esmero no tratamento do móvel; mas também pode a mesa estar polida pelo uso, o que empurra a imaginação para uma mesa rectangular, imponente e polida porque foi usada por gerações que lhe outorgaram essa qualidade. E então, para não haver dúvidas, já que o nosso escrevente é rigoroso e a sua mesa tem que impor-se, como ele deseja, ao leitor, eis que novo adjectivo emerge: «uma mesa rectangular, imponente, polida, antiga…» .        

Num ápice, o leitor afasta a ideia do polimento obtido na fábrica de móveis e visualiza uma mesa de um solar ou palácio, uma mesa extraordinária de qualidades supremas…mas, viciado que começa a ficar na adjetivação do escrevente, já não sabe muito bem que imagem atribuir ao móvel! Por outro lado, o autor continua a desejar que o seu leitor tenha a noção precisa da sua mesa e, dado que os quatro adjetivos ainda não a exprimem com inteira eficácia, procura outro e a frase prossegue o seu caminho deste modo: «uma mesa retangular, imponente, polida, antiga, adornada…» e logo a mesa se apresenta ao estilo barroco ou rococó ou século XVII ou renascentista ou rústico, adornada com biblelots e jarrões, ou…enfim, as possibilidades tornam-se avassaladoras, de tal modo que o leitor, esgotado, já não consegue imaginar a mesa que o escrevente se esforçou por tornar concreta, adjectivando-a cinco vezes! Se o escrevente continuar neste esforço titânico de caracterizar exaustivamente o objecto em causa, sobrepondo adjectivos, retirará gradualmente toda a concrecção à mesa que se multiplicará e desmultiplicará à medida que a adjetivação progredir. 

Como fazer então para caraterizar a MESA, à volta da qual se desenrolará o texto que começámos a produzir e que, por essa razão, necessita aparecer com absoluta objectividade?

Os métodos existem e cada escrevente deverá escolher o seu, de acordo com o estilo narrativo em questão. 

Poderá referir a MESA assim mesmo, despojada de qualquer adjetivo, compondo uma frase deste teor: «No centro do salão, iluminado por quatro janelas, a mesa refulgia, revelando, na sua textura e nos arabescos que a esculpiam, os segredos das gerações.» Nenhum adjetivo, reparem, e contudo aqui está «a mesa imponente, polida, antiga e adornada»! Falta um, bem sei, a nossa mesa é retangular e, da frase aqui produzida, não emerge a sua retangularidade. Porém, o escrevente talentoso, querendo impor essa qualidade à mesa de que está a falar, poderá continuar o texto do seguinte modo: «Eram vinte os convidados para o jantar daquela noite e o anfitrião ainda não havia decidido a qual deles daria o privilégio de ocupar o extremo oposto ao que lhe pertencia por direito, sendo que os restantes dezanove já se distribuíam harmoniosamente na mesa pelos outros dois lados que a compunham.» De novo, nenhuma adjectivação pende sobre a mesa e contudo não temos dúvidas nenhuma que estamos perante «uma mesa retangular, imponente, polida, antiga e adornada!» E entretanto o leitor começou a antever o cenário, a prever o acontecimento e, sem mesmo dar conta disso, sabe a dimensão e as características da mesa onde vinte convivas irão iniciar um repasto.

Adjetivos? São, sem qualquer dúvida, palavras com uma função imprescindível em muitas situações, podem mesmo usar-se enquanto figura de estilo (nomeadamente em poesia) e tornar belo um texto por via dela. 

Porém, todo o abuso é maléfico e conduz exatamente aos resultados opostos do que qualquer escritor pretende: transforma a sua linguagem num amontoado de palavras inexpressivas de tão profusamente qualificadas, cansa o leitor que se perde na barafunda das sucessivas caraterizações, dispersa e desqualifica, em lugar de precisar e tornar concisa, a linguagem textual.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

ADEUS! ATÉ SEMPRE!

GABRIEL VILAS BOAS
DR
É verdade que a Alemanha é cinzenta e que a saudade, nos primeiros tempos, é tamanha, mas os aviões levam cada vez mais jovens portugueses, cheios de sonhos e ambições para concretizar noutro lugar.
As estatísticas são frias, por vezes cruéis, sempre verdadeiras. Dizem-nos que 500 mil jovens portugueses deixaram o país na última década. Como são simpáticas não divulgam quantos patrícios sucumbiram à “saudade tamanha” de Abrunhosa. São poucos, muito poucos, tão poucos que nem vale a pena contar. Talvez por isso Abrunhosa tenha sentido necessidade de escrever aquele “hit” que nos entra pela alma adentro e nos magoa o coração, mesmo que não pensemos em ir embora.
Este país não é para novos e também não quer os velhos, a quem rouba, mês após mês, euro atrás de euro, uma dignidade cada vez mais mínima. Não é para jovens, despreza os velhos, proíbe as crianças, mas está excelente para aldrabões, corruptos, mentirosos, ou seja, a fina flor do entulho.
Regresso àqueles que partem, novos e velhos, e que não voltarão. Não tenhamos ilusões! As lágrimas de dor e raiva que brotam nos aeroportos hão de transformar-se em alegria contida, quando dali a dois anos, os ordenados de três/cinco mil euros lhes entrarem nas contas do banco. Verão que o inglês técnico do Sócrates sempre teve algum préstimo. E ao guiar um BMW em Berlim, Paris ou Amesterdão lembrarão palavras como “conforto”e “qualidade de vida”.
O mais certo é que não comprem amor pelo jornal. Virá de avião, de carro ou até a pé. Em todo o caso, eles – os jovens portugueses – é que não virão jamais para a terra do nunca. Aqui, cerra-se os dentes para perder devagarinho, mendiga-se uns jurinhos mais baixos para pagar a dívida a cinquenta anos!
Ei-los que partem, matando a alma dum futuro muito mais cinzento que a Alemanha. Abrunhosa gosta de acabar os concertos enchendo de lágrimas os olhos dos fãs e embargando a voz de comoção tamanha. Vivemos uma guerra silenciosa, onde as baixas levantam voo e não tombam. Os que ficam tombam devagarinho, por lhes faltar a inovação dos jovens, a loucura criadora, a coragem e o desprendimento que são a locomotiva de qualquer país. Alguns dizem “adeus e até ao meu regresso”, mas nós sabemos que é para sempre!

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

GUERRA E PAZ

ANABELA BORGES
DR
Regresso de duas semanas de férias na praia.

A vida segue, essa roda-viva, mais calma nas férias (é certo), que nos leva em divagações, a percorrer pensamentos e memórias, sonhos e distracções, para nos devolver sempre à realidade quente e fria dos dias mais ou menos inquietos, mais ou menos redundantes.

A vida, essa encruzilhada, tem feito cruzar nos meus caminhos uma fileira de pessoas, que vão formando uma roda gigante de amizades, conhecimentos, espantos, regozijos e decepções. De tudo. 

Mas sem dúvida, por caminhos insondáveis, que não sei explicar pela física nem pela metafísica, a vida tem-me oferecido cruzar-me com pessoas verdadeiramente admiráveis.

A maturidade vai-me levando a usar afirmações que antes me pareciam frases-feitas, asserções descabidas, sem nexo de serem explicadas (não é da idade, vá, é maturidade só, pode ser?), como “nada acontece por acaso”. Eu cá não sei se isso é verdade, mas dou comigo a não-questionar, e creio que isso talvez seja uma forma de aceitação. E se alguns dizem que “não há coincidências”, aí eu não poderia estar mais em desacordo, porque a minha vida está carregadinha delas. E, na minha modesta visão, talvez que eu não saiba explicar as coisas de outra forma, serva que sou da vida, eterna aprendiz de acasos.

Digo, então, que a minha vida está cheia de coincidências. Tenho tantas histórias de coincidências para contar, que… bem, talvez dêem mais um livro a ser publicado (quem sabe?).

Nestes dias de Agosto, vou encontrar-me com algumas dessas pessoas admiráveis, com quem habitualmente comunico por outros meios, visto estarem a viver muito longe daqui. Não caibo em mim de me saber tão perto delas, de poder dar-lhes dois beijos e um demorado abraço, de poder olhá-las nos olhos e falar com elas. É assim admirável a vida, feita tão simplesmente e complicadamente de encontros e desencontros. (E agora fiquei muito feliz por saber que essas pessoas me querem bem como eu lhes quero a elas, feliz só de pensar em vê-las.) Prometo dar-vos conta, neste espaço, desses abraços. Está prometido.

Mas haverá maior desencontro na vida que a guerra?
“Pensar incomoda como andar à chuva”. Mas por que me incomoda tanto pensar?, por que me pesa pensar? Eu não consigo ser esse ser não-pensador, com o olhar “nítido como um girassol”, que é o Alberto Caeiro, e no entanto não deixarei de concordar que “Há metafísica bastante em não pensar em nada”*. Eu penso pesadamente nas coisas, demoradamente, e por caminhos tão insondáveis que, por vezes, me distorcem o real.

Penso na guerra como uma mortandade, caminhos, longos como rios, manchados de sangue. Penso na guerra com a mesma inquietude com que contemplo o horizonte indefinido de um oceano.

Penso pesadamente na guerra em Gaza. Penso na mortandade, na quantidade de inocentes que paga tão elevada factura de existir – “olho por olho, dente por dente”, pedra contra pedra, sangue por sangue…

Eu não tomo partidos nas guerras. Ninguém tem razão na guerra. Se alguém a teve, perdeu-a no preciso instante em que foi atirada a primeira pedra, seguida da pedra de resposta. Não devia haver “pedras de resposta” na guerra – vingança; pagar na mesma moeda.

Ninguém ganha na guerra. Na guerra, é só perder.

E, ainda assim, a guerra é o logro da conquista. É o Homem a orgulhar-se dos troféus da conquista, manchados de sangue nas mãos.

Aflige-me esta vida diária sangrenta, a dor, a destruição. Aflige-me esta escalada de ódio.

O caso da Faixa de Gaza é tão crónico, que se torna difícil recuar às origens para identificar o(s) problema(s). E os motivos, eles próprios, vão sendo modificados com o tempo pelas mentes humanas, porque não desistem de estar em guerra. Reincide, reincide, reincide. Não há paz!

Muitos justificam os conflitos como um dever histórico do passado, para fundamentarem as guerras do presente. Muitos implicam o seu “deus” e aclamam-no para o centro das guerras, e depois chamam-lhes “guerras santas”. Tanto que fazem, tanto que destroem, tanto pela conquista do nada que é apressar a morte.

Extermínios, etnocídios, genocídios, desastres humanitários; Israel, Palestina, Iraque, Síria… Não há lógica nisto, justificação.

O “estado de sítio” em que se encontram diversas partes do mundo só pode cobrir-nos de vergonha.
Por tempos infindos, Hiroshima há-de observar-nos enferma pelo canto do olho. E o Holocausto ainda aqui tão perto.

Tudo tão perto e tanto já esquecido.
Vergonha!       

*Trechos de versos de poemas Alberto Caeiro (Fernando Pessoa).

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O CLUBE DOS POETAS MORTOS E A FILOSOFIA

REGINA SARDOEIRA
DR
No tempo em que fui uma professora de referência, costumava mostrar aos alunos o filme “Clube dos Poetas Mortos”. Lembro-me de o fazer quando dei aulas na Escola Secundária de Amarante, em 2000/2001, expressamente para uma das turmas – Curso de Eletricidade, 10º ano, 30 rapazes! – porque, depois de esforços extremos para captar-lhes o interesse pela filosofia, me pareceu ser aquele um argumento decisivo. Os alunos viram o filme, atentamente e, no fim, pediram-me que os deixasse ver de novo a cena final. Acedi. A seguir comentaram: “A professora quis dizer-nos que, para merecermos um professor daqueles, temos que ser parecidos com os alunos dele!”

Foi uma interpretação que aceitei porque, de facto, se não houver uma centelha, ainda que leve, nos alunos que lecionamos, as aulas não podem ter brilho e os alunos não podem ligar-se ao professor.

Se escrevo que fui uma professora de referência, assim, no passado (com este verbo «fui») é porque, ao longo dos últimos quatro anos, tenho vindo a sentir que o estilo que fez de mim, paradigma, já pouco importa ao ensino nos tempos que correm.

Agora, é necessário lançar mão do manual, parafraseá-lo, fazer os alunos decorar palavreado, dar-lhes testes formatados, com questões de escolha múltipla e, enfim, prepará-los para um exame, também ele formatado, também ele baseado em estereótipos decalcados dos manuais. Percebi que nem a escola, nem os restantes professores, nem os alunos querem saber de «aprender a pensar», «pensar pela própria cabeça», «encontrar o seu modo de estar no mundo», «formar a sua própria conceção da vida», etc.: tudo aquilo que sempre considerei de primeiro plano no ensino da Filosofia.

Estudar Platão, Descartes, Kant? Sim, certamente, mas com o objetivo de trazer o seu pensamento, universal e intemporal. para a atualidade, para a prática do existir, para o quotidiano. Adepta da filosofia prática, empenhei-me sempre em deixar um lastro que permanecesse para além dos dois ou três anos de filosofia do ensino secundário; querendo que os alunos descobrissem, por si mesmos, fi-los desvendar respostas, em lugar de lhes dar a receita já construída e testada; fomentando a abertura de espírito, fiz-lhes crer que, perante uma certa questão, haverá sempre, pelo menos, duas possíveis respostas e um conjunto de argumentos para justificar uma e o seu contrário.

Mas agora não é isso que os alunos esperam de uma aula de filosofia, não é isso que o sistema quer de uma aula de filosofia. E então, mostrar-lhes O Clube dos Poetas Mortos não fará o mínimo de sentido.

Sei do que falo, porque no ano letivo que passou, fiz a experiência e levei o filme para a aula: acreditam, se disser, que não aconteceu nada com aqueles alunos entediados e ávidos pelo intervalo? Acreditam que muitos deles aproveitaram a aula para se distraírem, verem fotografias, trocarem mensagens de telemóvel, etc. e que precisei de andar de pé, pelo meio deles, para os obrigar a prestar atenção? Como não foi possível mostrar o filme num período apenas de aula, pensei mesmo não lho mostrar até ao fim, senti que eles não mereciam, que, quer vissem ou não o filme, nada mudaria para eles. Percebi que havia perdido horas de aula em que não tínhamos aberto o manual e lido os textos e feito as fichas e revisto a matéria!

E agora que uma notícia dolorosa me fez revisitar as aulas de Mr. Keating, percebo que passei para a fila de trás, entre os professores de filosofia, percebi que o estilo que me granjeou algum sucesso e me fez ser, como disse, referência, enquanto professora, neste momento pouco importa: qualquer pessoa, licenciada ou não em filosofia, com boa média de curso, com má média ou sem nenhuma média, pode perfeitamente lançar mão do manual e dar as aulas que o sistema pede!

Hoje, abri a página inicial do Facebook e vi homenagens ao ator Robin Williams, homenagens a Mr. Keating, citações de Walt Whitman e de Horácio (Carpe diem, quam minimum credula postero = Aproveita o dia de hoje e confia o mínimo possível no amanhã) e senti-me ludibriada porque esta máxima, tornada comum, por causa do filme que deu celebridade ao ator que morreu, é um slogan, apenas um slogan…e talvez a morte, de causas ainda obscuras, do intérprete de Mr. Keating possa corroborar a segunda parte da sentença de Horácio. Talvez ele, Robin Williams, tenha aproveitado o dia até ao momento em que deixou de confiar no amanhã. Nunca o saberemos!

COISAS COM FOLHAS AGRAFADAS, UMA CAPA, UM TÍTULO E UM NOME…

A literatura nas suas diversas formas, incluindo portanto o romance, é uma arte e deve ser respeitada por
REGINA SARDOEIRA
DR
todos: quer pelos leitores, que necessitam possuir engenho para separar a verdadeira literatura da mistificação, a fim de não serem ludibriados por essas "coisas" com folhas agrafadas, uma capa dotada de um título, quantas vezes pomposo (estou a lembrar-me de alguns mas não os citarei, pelo menos hoje!) acompanhado da palavra "romance" ou "novela" ou "conto" ou "poesia" e do nome do seu autor, como é óbvio. Essas "coisas" chamam-se livros e, infelizmente para os verdadeiros autores de verdadeiros livros, atulham as montras e as estantes das livrarias e assim, o desprevenido vê a "coisa" exposta, muitas vezes com aspeto atraente, e, querendo ler (ainda se lê alguma coisa neste país desesperado!), acede a comprá-la (à "coisa"), achando que adquiriu um livro!

O pior é que, algumas vezes, depois de lerem essas "coisas", os próprios leitores pensam: «Afinal é fácil escrever um romance ou fazer poesia: vou escrever um livro, vou tornar-me poeta!» E, como o material está à mão, logo nasce o semi-plágio ou o plágio completo, pois a internet fornece quase tudo de quase tudo, basta procurar o tema, copiá-lo para um documento do word, adaptá-lo, substituindo esta ou aquela palavra, ou até quase todas, sem custo (para que serve o dicionário de sinónimos?) e eis um romance, ou seja lá o que for, escrito de modo instantâneo! 

Queremos romance histórico? Não custa nada! Escolhemos uma época, um acontecimento, um episódio, pesquisamos, copiamos, colamos, mantemos os nomes reais da História (para dar credibilidade!), como por exemplo, D. Afonso Henriques e D. Teresa, a Batalha de S. Mamede e, é claro!, a data da fundação de Portugal ( não duvidem: esta história, bem contada, inclui todos os ingredientes susceptíveis de fabricarem uma telenovela da TVI! O filho que rompe com a mãe e a vence numa batalha, o Conde Andeiro a destruir os pergaminhos da honra de D. Henrique na alcova, as intrigas copiosas de aias e damas de honor e até a mescla de sotaques desde o galaico-português, ao castelhano, ao francês… que sei eu? Já me está a apetecer começar a escrever, eu mesma, este romance!), vamos copiando o enredo, para sermos fiéis às fontes e mostrarmos erudição, adicionamos um bobo inventado no momento, que pode ser a nossa própria caricatura, e outras ninharias insignificantes que também podemos encontrar na internet e copiar, colar, ir aos sinónimos, etc. (o método é sempre o mesmo!) e, quando damos conta, eis-nos com um romance de 750 páginas concluído! 

Queremos fazer sonetos e ombrear com Camões ou Bocage? É instantâneo! Pesquisamos na internet alguns sonetos de um e do outro, copiamos, colamos e depois vamos aos sinónimos, mudamos as palavras, aqui e ali e até parcelas do conteúdo por causa das rimas (mas também há dicionários de rimas!) e, de um momento para o outro, eis-nos com um lote considerável de sonetos que, distribuídos pelas páginas (um em cada uma), nos dá, sem grande trabalho, uma coletânea de bons poemas num abrir e fechar de pálpebras! Quem vai descobrir que, por detrás deste semi-plágio, estão Camões ou Bocage? Ninguém pode fazê-lo porque, em boa verdade, graças aos benditos sinónimos, tudo ficou magicamente diferente! 

Queremos ser outros Fernandos Pessoas? Ainda é mais fácil, acreditem! Ele escreveu à sombra de tantos heterónimos que podemos fingir sermos mais um que ainda ninguém descobriu… ou então agarramos um poema (há muitos na internet, principalmente nas páginas em língua portuguesa e, portanto, maioritariamente vindas do Brasil, o que exige mais atenção, pois precisaremos de mudar o modo de escrever e acentuar certas palavras [as liberdades dos acordos ortográficos ainda não estavam em vigor no tempo de Pessoa e, por isso, convém usar de prudência para não sermos apanhados de imediato!]) copiamos, colamos…etc e, depois de bem transformadas as palavras, por recurso aos sinónimos, ficaremos de posse de um poema épico ao modo de Álvaro de Campos, por exemplo, mas de onde Álvaro de Campos estará parcialmente ausente e podemos mesmo dar aquele tom rebelde em que ele escreve por exemplo “ Merda, sou lúcido!” e nós, espertos, escrevemos “Trampa, sou límpido ou transparente ou luzidio (é só escolher!)” e já está: eis-nos transformados em heterónimos de Álvaro de Campos, o que é bom, pois ser heterónimo de um heterónimo é de um raro e subtil engenho! 

… E depois quando esses "escrevinhadores de coisas" (sabem, folhas agrafadas e com capa a que chamam livros) vão a uma dessas editoras chinfrins (esta palavra quer dizer “algazarra” ou “balbúrdia”, mas, neste contexto, apetece-me que signifique “reles”), ávidas por receberem um certo subsídio do estado para lançarem talentos (para o lixo, não duvidem, mas lançarem, enfim!) e elas aceitam editar esses abortos em forma de livro (essas "coisas" lembram-se?), pois não vejo que critérios de qualidade podem presidir a tanta lixeira editada, aí vem mais uma obra, aí está mais um autor!!! Ou então, se os escritores de "coisas" têm dinheiro disponível e tempo (esses dizem que são “independentes”: ahahah!), não precisam de se preocupar: compõem a "coisa" no sossego do seu lar, depositam-na no bolso da camisa – hoje em dia, com a informática, nem é preciso imprimir nada – dirigem-se a uma tipografia e, como quem encomenda sabonetes ou sacos de batatas, mandam fazer o número de exemplares da "coisa" que acharem conveniente. 
Julgam que alguém se dá ao trabalho de apreciar a "coisa", de corrigir os erros, de sugerir ao escrevinhador que reformule, invente, mude isto ou aquilo? Nem pensar! Afinal, a editora ganha o seu subsídio e o autor compromete-se a vender um número pré-acordado de livros que pagam a edição e pelos quais não recebe direitos; a tipografia cobra um preço, como qualquer fábrica de enlatados, e não precisa de se preocupar com mais nada. 

No primeiro caso, se o autor se dispuser a dinamizar ações e a divulgar o seu livro, pode ser que ele saia das prateleiras, pois a distribuidora dessas tais editoras que apelidei de chinfrins só distribui até um certo ponto; no segundo caso, o escrevinhador converte-se em caixeiro-viajante e anda de porta em porta a vender a sua «coisa com folhas agrafadas e capa com nome quantas vezes pomposo»! 
É esta mistificação aterradora que transforma o panorama da nossa literatura numa aberração. Os best-sellers proliferam: abrimo-los e vemos o tal semi-plágio de que falei (e que é, muitas vezes, a única coisa que se aproveita do romance ou da novela, porque foi copiado, colado, alterado com sinónimos, sabem: aquilo que já vos contei!) e uma mixórdia lamentável de história deprimente e de personagens esfumadas ou caricatas ou nada disso (o que é pior, pois uma personagem «esfumada» pode sugerir mistério e uma «caricata» pode dar vontade de rir, enquanto que o «nada disso» é deprimente!); ou então, vemos, logo na capa, um nome sonante (às vezes acompanhado de retrato, para que não haja dúvidas) daqueles que hoje em dia se chamam Colunáveis, Jet-set ou Qualquer Coisa Estranha e Aberrante do Género e que, ou protagonizaram um escândalo, ou disseram palavrões, ou foram presos, ou cantam e dançam, ou jogam futebol, enfim, qualquer coisa serve, desde que dê brado, seja muito feia ou muito debochada, ou então que, por uma questão genealógica, o escrevinhador das tais «coisas… etc» tenha na família alguém que já deu brado antes (nem sempre brado escandaloso, note-se porque, de vez em quando, o escrevinhador tem antepassados honestos e de qualidade.)! 

Tudo o que tenho vindo a escrever pode parecer cómico mas, mesmo sendo-o parcialmente, é, por outro lado, uma verdadeira tragédia. Explicar-me-ei-melhor: como é que o pobre leitor, cansado de telenovelas, campeonatos de futebol, programas de entretenimento, debates políticos confrangedores, publicidade enganosa e caricata, hecatombes (esta palavra, literalmente significa «sacrifício de mil touros» mas se substituirmos «touros» por «homens» o sentido mantém-se e até se reforça) e cataclismos ao almoço e ao jantar (estou a falar da televisão, não sei se repararam) vai decidir o que comprar para, decididamente, começar a entreter-se, lendo? 

Enterrado no vício democrático que dita, mais ou menos, que a maioria é que tem razão (a democracia é a ditadura da maioria!), o candidato a leitor chega a uma dessas superfícies comerciais, onde também há «coisas agrafadas, com capa…etc.», vê uma espécie de top de vendas e dezenas de exemplares das «coisas» ali à mão de semear (nunca percebi bem este provérbio pois, podendo haver semeadores canhotos, não sei a que mão estará ele a referir-se!) e, ávido de entretenimento, quando não de oportunidade de cultivar-se, por fim, adquire, como é óbvio, o líder da tabela! Percebem o que certamente poderá ter-lhe acontecido? 

Este assunto é escabroso, bem sei, mas o que não será tal nos dias que correm? 

Eu, por exemplo, até há pouco tempo atrás considerava, com orgulho, confesso!, que o facto de uma certa editora talvez chinfrim (mas eu não o sabia na altura) ter publicado uma das minhas obras, praticamente sem hesitar e sem sugerir a mudança de uma singela vírgula, significava mais ou menos isto (para mim, claro, e, por isso, estou a escrever na 1ª pessoa): finalmente, fui reconhecida como escritora portuguesa, por fim, chegou a minha vez de fazer carreira e, daqui para a frente, é só escrever e publicar a um ritmo avassalador [é que eu sou assim, sabem, tenho um «ritmo avassalador» no que concerne à escrita e por isso achei que a «minha» editora tinha entendido e iria acompanhar esse dito e redito ritmo] e não tardará nada até ver o meu nome e a minha obra saltarem, como bolas de pingue-pongue, de mão em mão (ou de mão para mão ou nem uma coisa nem outra, porque falei de pingue-pongue e não devia)! 

Mas agora digam-me: por acaso sabem quem sou eu, que livro editei, ou alguém editou, para receber o tal subsídio? Se eu lhes disser o meu nome e o título do livro e se, por acaso, decidirem arriscar alguns euros (e, neste tempo de crise, eu própria não aconselho semelhante imprudência: as folhas agrafadas com capa, etc, não são comestíveis!) e adquirirem o exemplar, não terão sérias dúvidas acerca do valor do seu conteúdo? Em primeiro lugar, não protagonizei ainda nenhum escândalo sonante, não pertenço ao Jet-set (como me custa escrever esta expressão!), não canto, não danço, não sou nem fui amante de nenhum futebolista ou afim envolvido em escândalos com apitos e quejandos, os meus antepassados, se bem que alguns deles talentosos, não chegaram ao ponto de me abrir os portões da fama… e por aí adiante; em segundo lugar, depois de tudo o que escrevi até agora, como irão ter a certeza de que não fui à internet copiei, colei, etc. (já disse tudo isto antes) de modo a escrever um dos tais romances instantâneos que eu afirmo a pés juntos existirem por aí às dúzias? 

Quanto à «minha» editora que agora posso classificar de chinfrim sem hesitações, lançou-me, é verdade (para o lixo e eu já explico, melhor!) mas, depois de o fazer, nem olhou para mais nenhum dos livros da minha autoria que oportunamente lhe enviei! E porque digo eu que me lançou, mas para o lixo e não para o início da carreira de escritora a que eu, inocentemente, achei que iria aceder? 

Como fui eu que paguei a edição (teria de, feitas as contas, vender 279 livros para que tal acontecesse… e vendi!) e ainda programei, sozinha todos os lançamentos (um deles foi extraordinariamente bizarro pois, de sala cheia, falei de um livro e, para atestar a sua existência (do livro, é claro), havia um único exemplar na hora da sessão, o meu, já que a editora fez as contas, achou que o lucro seria insignificante, não justificando uma certa viagem e não compareceu com os livros que, sendo meus, afinal lhe pertencem!) a dita empresa desinteressou-se e partiu para o lançamento de outra promessa das letras portuguesas, com o respetivo subsídio do estado, etc. 

Compreenderam? 

Portanto, eis-me em plena crise existencial: sou ou não sou escritora? Eis-me em plena crise de perspetiva criativa: escrevo ou não escrevo mais ao ritmo avassalador a que sou atreita? Eis-me em plena crise de objetivos: faço ou não publicar os meus originais por uma dessas editores que põem anúncios nos jornais a pedir escritores? Eis-me em plena crise emocional: continuo a produzir em torrente e guardo tudo bem guardado deixando o produto em testamento para se transformar em obra póstuma? São demasiadas crises bem sei e há dias em que nem penso muito no assunto: tenho medo, muito medo de enlouquecer!