REGINA SARDOEIRA |
E se, afinal, os eleitores se enganaram na escolha, votaram mal, produzindo resultados opostos à sua própria conveniência? E se não respeitar o veredicto popular, obtido após a contagem dos votos, for a obrigação de quem deve presidir à formação do governo?
Ou então, por obra dessa mesma votação e de acordo com os resultados, terá que abrir-se a própria democracia a uma reflexão sobre si mesma e subsequente transformação?
Estas questões surgem -me no seguimento da análise dos resultados das eleições legislativas de 4 de Outubro.
Não é totalmente clara a preferência do eleitorado por um grupo partidário exclusivo. Não há qualquer maioria absoluta a indicar a relevância de uma força política sobre as outras. As votações dividiram-se, à direita e à esquerda, a abstenção determinou faixas de desencanto (ou de cepticismo ou de descrença) . Urge equacionar todas estas razões (e decerto outras ainda) a ver como deve organizar-se um governo que seja tão representativo da vontade expressa nos votos, como deverá sê-lo a constituição da Assembleia da República.
E a vontade popular a este nível parece-me clara.
Ainda que continue a sobressair uma espécie de polarização, pela qual foram dados os primeiros lugares aos dois partidos que, ao longo destes quarenta anos de democracia, se têm alternado no poder, a verdade é que nenhum deles, sozinho, traduz, em pleno, as aspirações dos portugueses. Diríamos mesmo que os votos que lhes foram dados reflectem alguma ignorância, um ténue desejo de renovação ou mera cedência aos truques eleitoralistas, esgrimidos nos actos da campanha, visto que ninguém parecia estar satisfeito com o governo cessante e ninguém parece rejubilar com a possibilidade de os mesmos continuarem a dirigir-nos. Em simultâneo, a percentagem atribuída à designada alternativa não teve suficiente expressão para se manifestar como opção clara, a levar em conta.
Por outro lado, uma grande percentagem de eleitores absteve-se. Julgo que é tempo de perceber que muitos daqueles que se abstêm de participar no acto eleitoral o fazem em consciência. Podem ter - e em muitos casos, efectivamente, têm - a noção exacta do que deve ser a vivência democrática; mas não se vêem projectados inteiramente em nenhuma das forças partidárias concorrentes. Porque, não tenhamos dúvidas : o acto eleitoral é um concurso e nele só participam aqueles que se candidatam.
Não votar pode significar que o cidadão, ao observar os possíveis ganhadores e muito embora queira participar num acto do qual irá depender o seu futuro, não encontre um só a quem deseje dar a preferência. Pode ser que não haja nenhum ou pode ser que haja mais do que um, de cuja combinação resultaria o equilíbrio pretendido.
Abster-se de votar significará então que, mesmo querendo intervir, o abstencionista revela um desejo de renovação, pela qual votar em dois ou três partidos poderia fazer sentido; ou quererá abrir uma vaga para novas tendências não assinaladas no boletim de voto, acrescentando à lista nomes ou siglas.
Por fim, torna-se proibitivo ignorar as percentagens atribuídas aos partidos de expressão minoritária, dado que na sociedade evoluída que todos nós protagonizamos é mister prestar atenção às minorias. Podem não atingir, por esta ou aquela razão, grande expressividade numérica, quando comparadas com os demais concorrentes. Convém efectuar um exame profundo das suas propostas a ver o que há de inovador, de importante, de fecundo nos seus programas eleitorais ou nas figuras que lhes dão corpo. Convém levá-las em conta, na sua qualidade de minorias e, de uma vez para sempre, possibilitar-lhes o lugar de se expressarem activamente - lugar a que têm intrínseco e inalienável direito.
De posse destes elementos de análise, objectivados e contabilizados em percentagens, não será muito difícil perceber a mensagem que o povo português patenteou.
Mais de 40% dos eleitores não votou. A totalidade dos 60% que foram até à mesa de voto, expressou-se do seguinte modo:
36, 83% votou numa associação de dois partidos, francamente desiguais, na sua essência, mas concorrendo juntos por táctica eleitoralista. 32, 38% decidiu-se por um partido, cujo desgaste se manifestou em seis anos de governo, até 2011, o mesmo desgaste que foi perpetuado durante mais quatro anos pelo governo seguinte, incapaz de olhar o presente e assumir as sua próprias e actuais responsabilidades. 10, 22% dos eleitores radicalizou-se numa mescla de matizes esquerdistas, unidos num bloco que se pretende coeso. 8, 27% mantiveram a esperança arreigada na polémica utopia comunista; 1, 39% organizaram-se em torno de um pequeno novo partido.( Etc.)
Cada uma destas forças partidárias vai ter lugares no parlamento, de acordo com o método estabelecido para tal. Porém, nem todas elas terão uma representação no governo.
Por outro lado, ainda que os motivos para a abstenção sejam legítimos e mereçam uma análise exaustiva, os absentistas são imediatamente discriminados e nenhum lugar lhes é dado, quer no parlamento, quer no governo. Isso significa que qualquer que seja a distribuição de lugares na Assembleia e a atribuição das pastas governativas, um número muito expressivo de cidadãos (mais de 40%) não terá quem os represente no parlamento e muito menos terá, no executivo, pessoas da sua confiança.
Estamos, por isso, condenados a ter um parlamento de reduzida expressão -mais de 40% dos portugueses não estão representados - e um executivo muito pouco realista, quanto à verdadeira vontade dos eleitores.
Deste modo, o povo votou mal. Talvez não devesse sequer ter votado, obrigando finalmente a democracia a analisar-se a si própria.
Ou então, por uma espécie de acordo tácito, votou coerentemente, não atribuindo qualquer maioria absoluta e, nessa medida, obrigando os maiores a submeterem -se aos menores. Ou, por outro lado, indefiniu-se, criando uma espécie de enigma ou de fio de Ariadne que urge decifrar, puxando pelas pontas certas.
Uma dificuldade, porém, resultará da situação que assim apresento. Quem terá o discernimento, a sabedoria, a coragem para sobrevoar a plêiade das intenções, expressas ou ocultas, com a neutralidade activa e a consciência íntegra capazes de repor o governo do povo no lugar que lhe compete?
Haverá, neste mundo, homens e mulheres suficientemente lúcidos e audazes para entenderem a urgência de alterar o paradigma, retirando do palco onde se perpetuam e alternam aqueles que, ensimesmados, já não conseguem ver para lá das palas a que se foram moldando?
Esta é, sem dúvida, a dificuldade maior. Onde estão os sábios, os generosos, os desinteressados, enfim, os verdadeiros homens e mulheres dignos da liberdade, aqueles que, visando o bem geral, sejam capazes de perceber que, da multiplicidade das escolhas populares, da sua combinação inteligente e equitativa, resulta efectivamente a verdade da democracia?
Na prática, e enquanto persistir uma certa cegueira colectiva ou um conformismo apático e auto-destrutivo ou uma tendência aberrante para deixar que os outros resolvam os nossos próprios problemas ou seja lá o que for que nos vem anquilosando, ano após ano, seremos governados por hostes de ambiciosos incompetentes que nada sabem das necessidades reais daqueles que, sem saberem muito bem porquê, continuam a dar-lhes uma vitória que, efectivamente, não o é.
Prestem, por isso, muita atenção aos números.
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