"DOMINGUINHOS" |
HELDER BARROS |
Em Fregim, no último quartel do século XX (altura em que melhor o conheci), existiu uma figura típica das aldeias portuguesas, uma espécie de camponês e aristocrata popular, se assim alguém se pode classificar... era e ainda o é, deste modo, que eu considerava a personalidade da figura em questão.
Andava sempre a pé, invariavelmente com um fato bastante gasto, dizia o meu falecido Pai que tinha umas boas pernas, pois não parava. Solteirão, vivia sozinho ao lado da irmã, igualmente celibatária e muito devota à Igreja católica, sendo catequista de uma das quatro zonas, da Paróquia de Fregim. Assim o Dominguinhos aparecia à mana, Tininha, para almoçar e jantar, numa rotina quase diária, não parando em casa e andando sempre a passear.
Pequeno proprietário, agente de seguros local, a nível da freguesia, numa altura em que existiam muitas motorizadas na aldeia, exímio jogador de sueca, mulherengo, a vida correu-lhe sempre, de modo a fazer uma vida simples, mas que o fazia feliz. Como ave da noite, às vezes abusava do copito e lá para setembro lá ia eu com ele, para as Caldas do Gerês, no sentido deste tratar da figadeira, como se costuma dizer... foi da maneira que comecei a conhecer a fabulosa Serra do Gerês e os seus encantos naturais.
Acontece que, uma das coisas que me deixava sempre com a pulga atrás da orelha, era a sua recorrente alusão à expressão - “A Vida é como uma roda...” - a propósito dos mais variados e diversos assuntos. E depois, claro, a aculturação que se deu - a páginas tantas já toda a gente repetia aquela expressão por tudo e por nada. Era o caseiro, o jornaleiro, o carteiro, o homem do café, o Padre, o viuvo, o casado, o solteiro, etc. Ora, tal facto, deixava um pré-adolescente ainda com mais dúvidas existenciais que as inerentes à sua condição.
O mais usual era quando morria alguém na aldeia. Tocava o sino a finados, depressa se descobria quem foi, pois os mensageiros das más notícias e desgraças são céleres e até algo crueis no prazer com que as apregoam e nos meios pequenos nota-se mais. E começava o Dominguinhos a aventar aos sete ventos, passe a redundância: “A vida é uma roda, uns entram, outros saem, mas a roda não pára implacável e indiferente com as nossas perdas ou alegrias”. Vinha o caseiro e dizia: “Amanhã o sol nascerá, uns morrerão, outros encarnarão e nós andamos na roda até saltarmos para fora também...” A viúva chorava e remetia toda a sua fúria para os ditames da roda da vida, que tinha ali um nó na engrenagem... pelo menos, para a sua pobre e triste vida que acabou de ficar ainda mais negra! E depois “a vaca só iria entrar em trabalhos de parto quando mudasse a lua, pois a vida é uma roda, as luas são como uma roda, pois crescem, enchem, minguam e voltam a ser novas, tudo a rodar, numa roda maior sem fim; a roda da vida...” porque a vida é como uma roda, dizia o Dominguinhos da Cidreira!
E, segundo o Dominguinhos, para muitos Barrinhos da Cidreira, quase sempre os que lhe sacavam uns empréstimos que nunca mais seriam devolvidos, quando muito, poderiam ser agravados; a vida atual era uma roda mecânica muito rápida, passava num instante, pois os carros estavam cada vez mais rápidos e modernos… logo tendiam a espetarem-se mais depressa… maus presságios!
No fundo, na sua filosofia de senso comum, o Dominguinhos teria encontrado uma explicação plausível, pelo menos para ele próprio, para as questões mais profundas da existência e para a falta da mesma, naquela ecologia humana e para aquele tempo que se viveu; tudo se resumia à analogia roda versus vida em que todos andavam aparentemente apaziguados e conformados com a peregrina da explicação.
Uma das suas melhores saídas, passou-se quando ele disse a um noivo que, e passo a citar: “A vida era como uma roda, e que ele iria entrar num raio, tal como o da bicicleta, mas que ao menos aqui dava para mudar de aro, se o mesmo já não estivesse afinado... ao que me contaram a noiva não achou muita piada à profecia e ficou de trombas o casamento todo e a roda da bicicleta, não é que teve que mudar dois raios partidos, por mau uso... sim, o noivo voltou a casar mais duas vezes!
A filosofia de senso comum foi sempre uma forma do Homem, na sua sempre relativa racionalidade, tentar compreender o mistério da vida, quando o nosso ritmo era mais natural, muito ligado e próximo ao ambiente da agricultura e dos seus ciclos de produção. Penso que existia uma aproximação qualquer entre o Homem e a Terra, um tal panteísmo que nos tornava mais humanos. Hoje em dia somos mais bem falantes e urbanos e diríamos que a vida é um ciclo, nunca uma roda, como diriam o Dominguinhos e seus pares. Mas não sei é se somos mais felizes com os ciclos...
Resta-me dizer que o Dominguinhos da Cidreira era o meu Tio Paterno e Padrinho, sendo que este texto é uma modesta e despretensiosa homenagem, ou uma bela recordação da filosofia de senso comum, numa aldeia rural, como era então a Freguesia de Fregim, na Cidreira, no inicio do último quartel do século XX.»
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