Van Gogh pintura a óleo duas camponesas a tirar batatas |
HELDER BARROS |
Estávamos nos anos oitenta, em Mancelos, na Gateira, na Quinta da Aldeia, e Luísa era uma Mulher fora do comum. Vivia sozinha, nunca casou, só com os seus gatos, cães, ovelhas, coelhos, porcos e galinhas. Numa casa muito velha, típica das aldeias de então, onde predominava o granito e a telha vermelha típica, vivia Luisinha, como eu a gostava de tratar, com os seus animais, para ela a sua única e verdadeira família... de resto, não conhecia outra. Trabalhava à jornada, ou à jorna como ela dizia, em casa da minha avó, Casa da Aldeia, e noutras casas, designadamente, ajudando os caseiros das diferentes quintas, em troca das refeições e de alguns víveres.
Andava sempre descalça, pés rijos como solas e gostava de beber um copito. Este era o seu único vício que paulatinamente se transformou numa dependência. A imagem que tenho dela é a de uma mulher vestida de negro, com vastas rugas resultantes de uma vida difícil e solitária, com cestos de fruta à cabeça, ou com uma enxada ou forquilha em cima dos seus ombros.
Cozinhar mal sabia, pois o que gostava era de trabalhar na terra, ao ar livre, não ficando atrás de qualquer homem, no que diz respeito, à força e ritmo de trabalho, fosse este qual fosse. Tinha uma relação estranha, pelo menos do meu ponto de vista, para com os animais. Parece que estabelecia uma linguagem própria com estes, dado que na sua relação com eles, o entendimento de todos era quase perfeito. Se fosse preciso ajudar uma vaca a parir, lá vinha a Luisinha cheia de coragem, com a sua forma sui generis de acalmar e de lidar com os animais. Quando estava em casa os animais andavam atrás de si, como se ela fosse um deles. Apanhava cobras à mão e dava-as às galinhas para estas as comerem, só funcionava como e para os seus animais, vivendo com eles, quase vestindo o papel de um deles… afinal, só os animais a compreendiam e estimavam verdadeiramente a sua companhia…
De quando em vez, ia à missa, mas dizia que não a entendia... nunca estudou, foi abandonada em pequena e a aldeia tratou de a acolher e ajudar. No entanto, dizia em tom quase profético que o mundo estava perdido e que devia estar para acabar, pois as pessoas não viviam como os animais. Tinha medo de trovoada, por isso invocava recorrentemente a Santa Bárbara. Gostava muito de crianças, talvez por estas falarem mais à sua alma e ela as entendesse melhor, por isso gostava de se meter comigo e soltava sempre uma boa e alegre gargalhada, quando eu fazia as minhas traquinices.
Próximo do final da sua vida, a minha Mãe tentou junto da segurança social que ela fosse internada num lar, pois estava doente e vivia em condições muito complicadas. A sua cama era de mato, pois se lhe dessem um colchão queimava-o na lareira, era assim que estava habituada a dormir. Quando a minha Mãe e os técnicos da segurança social se dirigiram à sua casa para conversar com ela, esta não contente com o rumo da conversação, correu toda a gente à pedrada, acabando por morrer no meio dos seus animais e sem a presença de ninguém. Os vizinhos que costumavam lá passar para lhe darem a alimentação diária, encontraram-na morta, com os animais muito tristes, resignados e órfãos da sua protetora.
Bem sei que esta é uma história triste, um retrato negro das mulheres rurais, mas foi uma pessoa que me marcou pela sua forma de ser rebelde e quase selvagem... afinal a vida tornara-a assim. Se era feliz à sua maneira, não o sei dizer, apenas recordo o seu sorriso feliz sempre que me via. Uma pessoa amiga de animais e de crianças, que se contentava com as pequenas coisas da vida que nos fazem felizes e que a maioria das pessoas banaliza, deve viver pacificada com o mundo. Ficou alcoólica, o que poderia ter sido um refugio, se calhar para a sua infelicidade, mas no convívio que tinha com os outros, o vinho era uma partilha quase obrigatória e deveria aquecer aquela alma solitária. Tornou-se relativamente comum, para ela, beber com os outros, desde tenra idade, em que já estava só e que já trabalhava como jornaleira.
Não possuía documentos e não se deixava fotografar, pois tinha medo que a máquina fotográfica lhe roubasse a Alma. A Luisinha apareceu na aldeia em criança, abandonada por uma mulher pobre e quando faleceu desapareceu na sua campa rasa, pois nem uma fotografia, nem qualquer documento identificativo, deixou para a posteridade. Há vidas que parecem castigos supremos dos Deuses; encarnações de seres que só conhecem a dor da solidão, da miséria e da incompreensão dos outros. Pessoas que se recusam a estar registadas em papeis, que lhe não dizem nada...
Um exemplo marcante de uma mulher rural, profundamente ligada à terra e aos seus ciclos, que estranhava a vila e a cidade, onde se sentia perdida e deslocada. Para mim ficou o seu sorriso fácil e a gargalhada em resposta às minhas traquinices. Queria morrer com os seus animais e na sua pobre casa; estes eram os seus amigos mais chegados e que melhor a compreendiam e estimavam. A minha Avó sempre lhe ofereceu um quarto confortável, mas ela repetidamente recusou: “tinha que tomar conta dos seus animais”. A felicidade é um estado de espírito muito difícil de alcançar e muito volátil e há tantos que em muito não a conseguem e outros tantos que em pouco a alcançam, embora de forma sempre relativa e momentânea.
Luisinha, jaz agora numa campa rasa do cemitério de Mancelos, que nada tem que a identifique, mas afinal não foi sempre assim que quis ou foi obrigada a viver e a morrer?... ou melhor dito; a vida ensinou-a a ser assim, quase no limite do selvagem... quem sou eu para a julgar, quando a vida a colocou sempre no lado mais difícil, precário e solitário que possamos, hoje em dia, sequer imaginar. Em comparação com os dias de hoje, a Luisinha seria como que um sem abrigo urbano atual, mas na aldeia, em que as pessoas recusam os normativos sociais, votando-se a uma vida em contracorrente e a um abandono total do seu ser.
No dia internacional da mulher rural fica aqui a homenagem a uma Mulher que viveu da terra, com a terra, e, sempre, sem medo do seu peso...
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