MIGUEL GOMES |
Ia perdido nos meus pensamentos, que disparavam em todas as direcções à velocidade que caiam as gotas de chuva no pára-brisas. A única música permitida era o som metódico, monocórdico e angustiante do limpa pára-brisas...
Tinha saído da curva, vagueando em pensamentos obtusos, dignos de quem se perdia num ralo descendente de emoções quando o vi, parado, em pé, a olhar para o nada e a sorrir.
Chovia, mas ele, impávido e sereno, continuava ali, com um blusão azul escuro de tecido impermeável, alto, fartos cabelos grisalhos, olhos claros, rosto barbeado, mãos nos bolsos das calças cinzentas, sapatos desapertados, negros, gastos e grandes. Tinha apenas uma camisa sob o blusão e sobre o corpo velho e os botões das calças desapertados, o que fazia com que se visse a roupa interior.
Chovia, mas continuava, ali, a sorrir.
Abrandei a velocidade e passei por ele lentamente.
Parecia ter parado no tempo, a caminho ou de saída, do posto dos correios. Ao passar por ele não pestanejou ou acompanhou o carro com o olhar, vi-o pelo espelho e ele continuava lá, parado.
De repente, segui para o destino, enquanto outra parte saía de mim mesmo, completo, com o carro, com os pensamentos e emoções e quase seguia em frente na rotunda, que contornei, voltando atrás, olhando novamente e ele, impávido e pleonasticamente sereno, continuava parado a sorrir.
Uma outra parte de mim saltou do carro, atravessando o metal da porta, deu duas cambalhotas e ficou prostrado no chão, à chuva, apoiado sobre o braço direito. Levantou-se e atravessou a estrada, ficando a conversar com aquele estranho homem, enquanto eu continuei a olhá-lo pelo retrovisor e só parei quando cheguei à próxima curva. Subi a avenida e, no triângulo, dei a volta, para passar novamente por ele.
Ao sair da curva, antes do posto dos correios, lá estava ele, ainda parado, ainda à chuva.
Alguns carros passavam por ele, lentamente e olhando, enquanto outras pessoas, no passeio, desviavam-se para não lhe embarrarem com o guarda-chuva. E, o mais intrigante, era aquela pose, de quem já nem está na vida, com o olhar vago, perdido, a sorrir para a neblina.
Parei um pouco, ainda a ouvir a música do limpa pára-brisas, com os pensamentos versando agora apenas uma coisa: aquela figura no horizonte, com toda a vida a passar por ele e ele ali, parado, à chuva, a conversar com uma outra parte de outra parte de mim mesmo.
Arranquei por falta de noção sobre o que fazer, mas ao passar por ele não consegui evitar e parei, abri o vidro e perguntei "Quer boleia para algum lado?", ao mesmo tempo que pedia interiormente que negasse, encharcado iria molhar certamente os estofos, logo os estofos, que não iriam secar facilmente com este tempo chuvoso. Não se mexeu, olhou para mim e sorriu, abanando a cabeça negativamente. Fechei o vidro e com o carro desengatado deixei-o ir lentamente em direcção à rotunda. A outra parte da outra parte de mim mesmo estava ao lado dele, fitando-me com reprovação.
Contorno a rotunda, paro a seu lado, no outro lado da estrada, abro o meu vidro e, molhando-me, pergunto de novo "Quer boleia para algum lado?"
Atravessou a estrada, deixando para trás um dos sapatos, abriu a porta e sentou-se, enquanto eu tentava fechar o meu vidro.
Arranquei, olho para ele, olhava divertido para a chuva no pára-brisas e batia com a mão no joelho ao mesmo ritmo do limpa pára-brisas. A outra parte da outra parte de mim mesmo surgiu à minha frente, a tempo de se sentar sobre mim e ganhar corpo com o meu corpo.
E eu... Eu fiquei sem o conhecimento do que disse o velho à outra parte da outra parte de mim mesmo, nem o que fez a outra parte de mim mesmo, porque eu apenas segui o meu caminho na rotunda, para o meu destino.
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