sábado, 10 de outubro de 2015

A CIGARRA ALEGRE E A FORMIGA PREGUIÇOSA


JORGE NUNO
Vem-me à memória a fábula da cigarra e da formiga, cuja criação é atribuída a Esopo, e que teve relançamento e notoriedade pela mão de La Fontaine, que nos aparece como sendo o verdadeiro autor. Esta fábula era-nos apregoada desde pequenos, mostrando uma cigarra mandriona e uma formiga trabalhadora, tendo em vista apontar-nos o caminho dos valores do trabalho dedicado e da necessidade de poupança, a pensar nos dias menos bons, tudo isto em oposição ao “dolce fare niente”, com consequências desagradáveis para quem escolhe esta segunda via. O meu lado nobre, ou ingénuo, tinha dificuldade em encaixar a ideia de uma formiga castigadora e pouco solidária, perante o pedido de abrigo – com o significado de um pedido de ajuda –, por parte da cigarra, quando chegou o inverno rigoroso.

Já neste milénio, o livro de Luísa Ducla Soares e Pedro Nogueira Ramos, precisamente com o mesmo título mas com um “remake” da história nossa conhecida, viria a ser recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para a Educação Pré-Escolar, 1.º e 2.º anos de escolaridade. Só que a versão desta dupla alterou a visão da cigarra foliona, com pouca vontade de trabalhar e mais predisposta a gozar a vida, e apresentou-a como “uma grande artista, que não trabalha porque só consegue olhar e sentir a Natureza que a rodeia”, deixando no ar esta interrogação às crianças leitoras: “Achas que merece ser castigada por isso?”.

Sem dúvida que eu, muito novo, senti na pele a necessidade de encontrar um sentido para a primeira versão da história. Sentia uma admiração enorme ao ver o carreiro incessante de formigas, sempre carregadas, a transportar alimentos. Também não me incomodava nada o “cantar” da cigarra, quando, no verão, me deslocava de bicicleta pelos campos; aliás, até gostava, e só conseguia identificar a presença da cigarra pelo “cantar”. Em tempos de ditadura, tempos difíceis… apercebi-me que a remuneração, como “formiga”, era escassa para quem tinha trabalhos sazonais, seja a retirar areia do rio, na apanha do tomate, ou como aprendiz ocasional numa qualquer oficina de mecânica. Depressa me apercebi que, no papel de “cigarra” – ainda mais por saber que esta só poderia ser cigarra-macho, já que a fêmea não “canta” –, iria recriar-me com a música, teria mais liberdade de movimentos, possibilidade de desfrutar de novos horizontes e de uma maior independência financeira, fazendo-o com muita satisfação pessoal, podendo enveredar por outros voos, com destaque para o prosseguimento dos estudos.

A nossa mente foi sendo formatada, pelo que é fácil aceitarmos como válido aquilo que existe há gerações e é aceite como verdade, mesmo que sejam “histórias da carochinha” e, neste caso, histórias de cigarras e de formigas. Temos, também, uma tendência para atrair tudo o que é negativo – “é o nosso fado”, diz-se e aceita-se candidamente – e, paradoxalmente, até parece que nos sentimos bem assim, como se fosse essa a nossa zona de conforto. Deste modo, desde muito cedo aprendemos a ter limitações, sentindo como natural a escassez de bens, de afetos, de inteligência e de uma visão mais aprofundada dos valores da vida, factos que nos impedem de ir mais longe. Assim, ficamos pela mediania e superficialidade, e quando surge algo diferente do que admitimos com válido, seguindo a cultura e os nossos padrões de pensamento [limitado, como é evidente], simplesmente rejeitamos.

Na Bíblia King James atualizada (Novo Testamento) é referido, algures: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso; olha para os seus caminhos [ou reflete sobre o trabalho que ela realiza] e sê sábio”, numa tentativa, com este exemplo, de promover uma melhor orientação para a espécie humana, que eventualmente tenha tendência para a preguiça. Talvez influenciado por isso, o ex-ministro Miguel Macedo, logo após a gigantesca manifestação de 2012, organizada pelo movimento “Que se lixe a troika”, assumindo as funções de pedagogo afirmou que Portugal não pode ser “um país de cigarras e poucas formigas”, o que levou à indignação dos mais atentos e que trabalham arduamente, sendo que alguém não resistiu à tentação de escrever, sob forma de resposta: “é fácil ser formiga-rainha na hora de receber € 1400 de subsídio de deslocação, quando efetivamente não se vive deslocado do formigueiro”.

E se lhe dissessem que o mito da formiga trabalhadora caiu por terra? Que se comprovou que cerca de metade de várias colónias de formigas são preguiçosas? A fonte é a revista R&D [Research & Development], que publicou um artigo que dava conta de um estudo efetuado por um grupo de investigadores da Universidade de Tucson, Arizona, EUA, tendo Daniel Charbonneau como responsável da investigação. Fazendo aqui uma descrição sumária, este estudo baseia-se na identificação e observação de 225 formigas “distribuídas por cinco colónias artificiais diferentes, num habitat simulado, com comida e ‘material de construção’ para as formigas usarem”, tendo, naturalmente, um sistema para as filmar. Ao divulgar as conclusões do estudo, afirmou o chefe desta equipa: “Quando começamos a investigar as sociedades compostas por insetos, percebemos que estas [as formigas] também têm os seus problemas: metade delas estão apenas a andar de um lado para o outro enquanto as outras fazem todo o trabalho”. Arrisca uma possível explicação, apontando, numa semelhança com os humanos, que “as formigas servem para substituir outras que entretanto morrem ou então só começam a trabalhar quando o volume dentro da colónia aumenta”, acrescentando que “é também possível que as formigas inativas estejam a ser egoístas e evitem as tarefas mais perigosas enquanto usam os recursos da colónia para investir na sua reprodução”. Para se ser mais preciso, o estudo indica que 34 formigas fizeram o trabalho doméstico, 26 fizeram trabalhos externos, 62 eram generalistas e 103 eram “completamente ociosas”, ficando ainda a hipótese no ar que este último grupo poderia “constituir uma reserva quando fosse necessário atacar ou defender o formigueiro” ou que “algumas formigas poderiam não estar a par das tarefas e ficam a circular para evitar o trabalho”.

Também na Europa, a entomologista Danielle Mersch, da Universidade de Lausanne, Suíça, chefiou uma equipa de investigação relacionada com a atividade das formigas, concluindo que estas “organizam-se segundo as necessidades coletivas” e que “quando se encontram isoladas são na verdade, preguiçosas”, dando conta dessas conclusões na revista “Science”. 

Tal como foi deixada a interrogação às crianças leitoras, também eu, como autor desta crónica, pergunto ao leitor que a lê: “Acha que a formiga-operária, ao esquivar-se de transportar até 50 vezes o seu peso merece ser castigada por isso?”; “Não deveria servir de exemplo aos humanos, quando numa civilização moderna, incompreensivelmente, estão a ser espoliados dos seus direitos, obrigados a mais tempo de trabalho e a redução das condições de trabalho e de salário?

Como é bom ter-se uma atividade que permita contribuir para o bem comum, mas dando uma manifesta satisfação pessoal no papel de “formiga-operária”, desenvolvendo-a com a descontração e alegria de uma “cigarra-macho” no verão!

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