REGINA SARDOEIRA |
Há quarenta e um anos que Portugal é uma democracia. Nem vale a pena frisar o significado legítimo deste tipo de governo, pois de há muito que o povo não governa, se é que alguma vez governou, de facto. Porém, tantos anos de regime, tanta informação, tantos episódios eleitorais, tanto burburinho e discórdia acerca de tantos temas e problemas poderiam, neste momento, ter feito compreender ao povo português o que significa, exactamente, a democracia – esta!
Invariavelmente me surpreendem as reacções das pessoas quando uma greve se anuncia ou é concretizada.
Pelo que sei, a greve resulta da necessidade de resolver um problema e chegar a um acordo com as entidades envolvidas; é o processo final, após todo um conjunto de negociações; e, a ser levada a cabo, sendo justa (e cada um deveria informar-se cuidadosamente sobre o assunto) convoca a obrigatoriedade de as partes envolvidas – os trabalhadores e o público em geral – saberem reagir, sensata e lucidamente, à situação.
Tudo isto dá algum trabalho, bem sei. E, no estado actual da democracia, em que o povo desistiu de governar-se a si próprio, pelas vias legítimas da Constituição Democrática, a maior parte das pessoas não considera que esse trabalho lhe diga respeito, continua a julgar que o que importa é continuarem a viver a sua vida; e “eles” que se arranjem. Ora, “eles” são todos aqueles que um dia foram eleitos para representar os interesses desses que, no momento fulcral, quando os eleitos não cumprem o seu dever, devem reflectir, participar e intervir.
É evidente que uma greve tem consequências e, obviamente, é necessário que as tenha. Essas consequências são o preço a pagar pela obtenção de um benefício, que está a ser retirado, pela recuperação de um direito, que está a ser sonegado, pela reposição da justiça, que está a ser iludida, etc. E o preço paga-o aquele que faz greve – não recebe o salário correspondente ao dia em que faltou – e o povo que, usufruindo do serviço que não funciona naquele dia, percebe que não vai, de facto, poder utilizá-lo.
Logo, quando há greve (seja ela qual for), há lesados, disso não tenho dúvidas; mas, no final, caso a luta tenha sucesso, haverá benefícios. Quando há greve, todo o país lhe está, por isso, sujeito: trata-se de um modo de luta democrático e o hábito de viver em democracia deveria, pelo menos, ter instruído o povo nesse sentido.
É por esta razão que eu não consigo compreender certas razões invocadas pelos trabalhadores que não aderem à greve, tais como: “Vou perder dinheiro, isto não leva a nada, “eles” que resolvam os problemas”, e dos utentes dos serviços prejudicados ou inviabilizados pela greve, que exclamam: “Isto é uma pouca-vergonha!” ou “ Eles fazem greve, mas nós é que sofremos as consequências!”
Como é evidente, se queremos ir trabalhar e os comboios estão parados, por efeito da greve, se precisamos de aceder a um determinado serviço público e esbarramos com tal impossibilidade porque a repartição encerrou por causa da grave, se levamos os filhos à escola e temos que voltar a levá-los para casa, já que funcionários e/ou professores estão em greve etc., isso representará um transtorno, para nós, individualmente considerados. Mas se nos tivéssemos dado ao trabalho de prestar atenção aos anúncios de greve (elas não se fazem sem esse requisito), se analisássemos as razões que levam os trabalhadores a sacrificarem o seu salário do dia e pudéssemos compreender que o sacrifício deles deve ser também o nosso, decerto não se ouviriam tantos disparates quando a comunicação social entrevista as “vítimas” da greve, decerto não veríamos tantos utentes, espantados e com sinais de revolta, quando batem a portas que não se abrem…por causa da greve.
Pessoalmente, não gosto de greves, porque isso indica-me que alguma coisa está a correr mal e que as negociações entre partes chegarem a um beco sem saída: e uma tal falta de diálogo, numa sociedade democrática, desgosta-me. Não gosto de greves, porque elas me fazem evocar tempos de antigas misérias, tempos de carência extrema e de usurpadores dos direitos à dignidade, tempos que, segundo uma perspectiva contemporânea, deveriam estar ultrapassados há muito. Percebo que a greve é sofrimento e que deve ser sofrimento partilhado: pelos grevistas e pelo povo que, mesmo prejudicado, precisaria de manter o silêncio ou de dar o seu apoio. E contudo, em todos os momentos em que os problemas do meu sector profissional obrigam à greve, eu parto para ela, sem qualquer espécie de dúvida.
Perco o salário de um dia? Pois bem: todas as lutas têm um preço, todas as vitórias ou derrotas têm, como pano de fundo, um campo de batalha.
Preocupa-me, umas vezes, outras, insulta-me, enquanto pessoa inteligente e do meu tempo, que haja no povo português um atraso tão grande, que esse atraso seja frequentemente confundido com tradição, que essa “tradição” seja aproveitada pelos turistas que querem ver a miséria pitoresca que não existe nos seus países de origem. Lembro-me de um jovem alemão que conheci, primeiro como correspondente e depois em pessoa, e me visitou na cidade do Porto, no tempo em que eu era também uma jovem universitária. Nos longos passeios que fomos dando pela cidade, ele perguntava-me, insistentemente: “Where are the slums? Show me the slums!”
Na altura espantei-me: como era possível que aquele rapaz quisesse ver o que de pior havia na cidade – as barracas, as “ilhas”, os locais degradados e miseráveis?
Não sei se o compreendo hoje, porque continuo a ver, exactamente, o mesmo: os turistas estrangeiros vêm aqui e fotografam e espantam-se com os hábitos antiquados e os becos sujos das cidades, com a decadência e as ruínas que há muito suprimiram nos seus territórios. Também querem o luxo, quando podem; também querem a beleza natural e o sabor temperado do clima: mas continuam a deliciar-se com todos os tipos de “slums”! Também eles se indignam quando, num aeroporto, por exemplo, querem o voo que reservaram e deparam com a greve dos pilotos ou quando um serviço a que pensam ter direito (afinal são turistas) não lhes é facultado do modo que queriam! E os portugueses, do fundo do seu incurável sentimento de inferioridade, irritam-se por eles: “O que vão pensar de nós os estrangeiros?” E correm a alindar ruas e jardins e a treinar o inglês para poderem ser subservientes até mais não!
Pois bem: os estrangeiros ignoram-nos, nem sabem muito bem onde ficará esse tal Portugal…e, se para cá viajam, apesar de tudo, não será porque tendo um nível de vida muito superior, podem ter aqui férias luxuosas, já que os preços são mais baixos? (Bem sei: as paisagens, as praias, os hotéis, o Algarve…)
Somos, efetivamente, como diria Nietzsche (noutro contexto, é claro, mas, mesmo assim, com todo o sentido neste) “a refutação ambulante de nós mesmos”, andamos por aí, exibindo-nos, engalanados de tudo quanto é fútil, crendo que os nossos ademanes são verdadeiramente indicadores de superioridade cultural e civilizacional. E no entanto, escavando um pouco, só encontramos imitação balofa, seguidismo estulto.
Hoje, em Portugal, faz-se um pouco de tudo, desde as feiras às curtas-metragens, ao teatro, às telenovelas…a maior parte é uma lamentável cópia de realizações já obsoletas nos sítios de origem, um plágio disfarçado do que os outros inventaram, uma terrível apropriação da tradição, no pior sentido possível. Mesmo os escritores da vaga mais jovem usam e abusam de nomes estrangeiros nas suas novelas e romances, situam-nas no fim do mundo ou aqui ao lado…(para ser mais facilmente traduzível? Decerto o português puro e duro pouco interessará a um alemão ou francês…a menos que tenha em si a atmosfera do “slum”!)
Escrevo tudo isto, sabendo que há dignas e honrosas excepções. Sabendo que há criadores autênticos, homens e mulheres portugueses capazes de darem lições aos que vivem para além das nossas fronteiras. Percebendo que temos excelência original, nada e criada no nosso território. Mas porque teremos, depois, de emigrar com ela para que lhe seja feita justiça, para que dê, lá longe, os frutos que aqui nunca chegariam a romper?
De Portugal, como portuguesa, gosto da língua, de muitos locais, de certos hábitos e tradições; não gosto do povo português, confesso. Não sei o que andamos a fazer da nossa língua, aderindo a acordos ortográficos acéfalos (eu comecei a utilizá-lo, para experimentar, e depois larguei-o), não percebo porque descaracterizamos as vilas e cidades, a um ponto tal que, por vezes, da beleza antiga só resta um pequeno centro histórico, de que vale a pena usufruir, afogado num manancial de fealdade (é o caso de Amarante), não consigo reconciliar-me com o facto de chamarmos “tradição” a certos hábitos que são, acima de tudo, os indicadores privilegiados da pobreza e do atraso.
Custa-me imenso ver e ouvir as pessoas e sentir-me transportada para o meu tempo de criança na aldeia onde nasci e cresci, percebendo que os velhos analfabetos e sujos desse tempo não podem ser os velhos analfabetos e sujos de agora, mas que são réplicas idênticas dos seus pais ou avós. Como é possível que quem tem hoje 70/80 anos se comporte exactamente como os que tinham 70/80 anos quando eu era uma criança? Como é possível que ainda haja casebres a cair aos bocados, à beira das estradas, de cujas portas entreabertas espreitam caras tecidas de rugas, corpos cobertos de farrapos e onde se vislumbra o negro brilhante do fumo de lareiras sem chaminé para se libertar?
Todos os dias, quando vou para o trabalho, passo num certo local e deparo-me, frequentemente, com uma senhora idosa, vestida pobremente, levando uma bengala numa mão e um guarda-chuva fechado na outra, para neles se apoiar, que faz a sua caminhada solitária, na berma de uma estrada estreita e sem passeio. Imagino que viva sozinha, num dos casebres que ladeiam a estrada, imagino que lhe tenham dito para caminhar…e ali vai ela, correndo, em cada dia, o risco de ser apanhada por um veículo qualquer e não deixar nenhuma história notável para marcar a sua presença no mundo! E às vezes penso: “Que contradição! Esta mulher caminha para exercitar os membros e viver com mais qualidade e contudo fá-lo, diariamente, em risco de morte. Não haverá um filho, um neto, um vizinho, um chocalho como os que se põem no gado que a protejam de um muito provável acidente?”
Mais ou menos no mesmo local, vejo, invariavelmente, um pequeno cão, deitado calmamente a fazer as suas sestas, praticamente no lado direito da via, também ele, salvo da morte por aquilo a que é comum chamarmos sorte ou acaso…quando ele não está lá, penso sempre que já foi atropelado, do mesmo modo que, quando a velha senhora não passa por mim na sua excêntrica caminhada, me parece que os sinos tocam a rebate!
Somos um país moderno, dizem alguns. Estamos em franco progresso e a recuperar de não sei quantas crises, dizem outros (que são os mesmos!). Os povos da Europa respeitam-nos porque percebem que estamos a cumprir o nosso dever, proclamam enfaticamente terceiros e quartos que vestem a mesma pele e camisa dos primeiros. E não consigo assimilar a miséria que vejo e integrá-la no discurso empolado desses todos.
Mas uma coisa me parece certa: “Eles”, que assim discursam acerca de uma realidade que afinal desconhecem em absoluto) sabem que se dirigem a uma quantidade de néscios e esses mesmos que vêem a velhinha estropiada e só a caminhar perigosamente na berma da estrada, o casebre fuliginosos onde se amontoam famílias, e tantos e tão variados exemplos do “slum” que procurava o meu amigo alemão acreditam no discurso pérfido e correrão a dar-lhes os vivas e os votos, logo que chegar a hora aprazada.
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