ANABELA BORGES |
“A língua é um
organismo vivo”, a professora explicava. E os alunos, naquele ponto, ficavam
logo muito atentos.
E perguntavam,
“Como assim, ‘vivo’? Como um animal?”.
“Sim”, respondeu
a professora, “como qualquer ser vivo”.
“Uma língua
nasce, cresce, modifica-se, envelhece”, continuava a professora, logo
interrompida pelo aluno incrédulo sentado ao fundo da sala (aquele que punha
sempre tudo em causa, mesmo quando se tratava do mais logicamente entendido por
todos), “E morre?”.
“Morre.”,
respondeu outro, sentado na fila lateral.
“Como o Latim!”,
disseram alguns quantos em coro.
A professora
sorriu, orgulhosa. Não raro, recorria ao Latim para explicar a origem de muitas
das palavras. Os alunos sabiam que o Latim era uma língua morta. Mas ali
falava-se da língua viva. A língua em movimento, praticada por mais de 240
milhões de falantes em todo o mundo; a quarta língua mais falada e segunda em
reuniões de negócios, logo depois do Inglês. Estes dados relativos à Língua
Portuguesa, todos recentes, eram apresentados pela professora com recurso a
fontes, para que os alunos vissem da sua veracidade. E perguntava, “É, ou não,
de termos orgulho na nossa língua e de a tratarmos bem?”, os alunos respondiam
“Sim!”, ainda um tanto estonteados pela força dos números.
Daí para a
frente, não foi difícil explicar os ‘processos de formação de palavras’, nem
foi nada difícil para a professora dizer que era contra ‘acordos ortográficos’.
Porque não há forma de uniformizar uma língua falada por cerca de 240 milhões
de pessoas. O Português, nas suas variantes – europeia, africana e brasileira
–, possui inúmeras pronúncias, sotaques, variedades linguísticas e um
vocabulário riquíssimo, de uma riqueza impossível de quantificar. Cada país de
Língua Portuguesa tem as suas especificidades.
Vejamos:
Se não fosse a
riqueza de vocabulário do mundo da lusofonia, a professora nunca poderia dizer
“Estou cá com uma (a)zoeira na
cabeça”, e nem poderia sequer queixar-se que tudo se devia ao banzé feito pelos alunos. Não poderia
dizer que a sua mãe estava a ver a xepa,
que era como lá por casa designavam a telenovela. E em vez da mochila que os jovens tanto prezam,
talvez continuássemos a chamar alforge ao saco de levar os livros para a escola
(um exagero certamente aqui, mas “mochila” não diríamos, que a palavra não é
originariamente nossa). Nem poderíamos utilizar a palavra canoa para designar a curiosa embarcação que habitualmente se vê a
sulcar o rio Tâmega. Ou dizer que comemos pipocas
quando fritamos o milho.
“Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação”, escreveu Vergílio Ferreira. A língua portuguesa conjuga, em muitos aspectos, o sabor salgado e o cheiro da maresia. O caminho essencial, esse desconhecido que foi traçado com vigor e convicção: o mar. E o mar trouxe-nos muitas palavras.
Além das
palavras do mundo lusófono, outras palavras estrangeiras, faladas um pouco por
todo o mundo, vão entrando na nossa língua e fazendo parte do nosso vocabulário
oficial. São os empréstimos. Os alunos não tiveram qualquer dificuldade em dar
exemplos à professora: “croissant”; “paparazzi”; “boom”; “shopping”; e uma
parafernália de expressões ligada ao mundo das tecnologias – “motherboard”; “backup”;
memória RAM; “e-mail”. Ah, sem dúvida, os alunos são barra nisto! É como se
tivessem nascido com um “chip” instalado, com todo um roteiro de palavras
orientadas para o mundo das TIC (acrónimo para Tecnologias da Informação e
Comunicação). E para explicar que eles, os jovens, têm bué de influência nas transformações da língua, a professora
explicou também os processos de truncação. E explicou-lhes assim, “Vocês gostam
de poupar nas palavras: cortam uma palavra a meio, ficam com metade e deitam a
outra metade fora”. Mais uma vez, os alunos foram rápidos a dar exemplos,
“Prof’; Net’; Face’; Insta’…”. E depois ficaram muito admirados quando a
professora lembrou que “foto” é uma truncação de “fotografia” e “metro” de
“metropolitano”. E quando acrescentou que ‘s’tor’ era uma espécie de truncação
da gíria estudantil que significava “senhor doutor”, foi o pasmo geral, uma
surpresa total, pois os alunos desconheciam tal significado do vocábulo que
usam de forma tão recorrente. Habituam-se de tal modo à linguagem corrente, que
acabam por esquecer o vocábulo original. Mas isso é o preço a pagar pela
evolução natural da língua. E esse foi o pretexto para a professora explicar
algumas palavras amalgamadas, que, por força do uso, por pragmatismo, por
rapidez de comunicação (por vezes, por pura preguiça), se transformaram em
vocábulos cuja origem se vai perdendo, como “telefone móvel” para telemóvel, ou
“informação automática” para informática.
Tudo isto faz
parte de um processo lento, estranhado e saboreado pelos falantes. É a evolução
da língua. A língua perde e ganha novos vocábulos, e nós afeiçoamo-nos mais a
uns do que a outros. E procuramos selecionar os que mais nos aprazem na prática
da comunicação.
Lá mais para o
final da aula, um aluno perguntou à professora, “E a palavra ‘s’tor’ como se
escreve?”.
Boa pergunta!
Isso foi logo o que a professora pensou, “Boa pergunta!”. E respondeu: essa
palavra ainda não entrou oficialmente no vocabulário. E, desde já, vos digo: se
entrar, será um problema para os linguístas conjugarem esta palavra com o
Acordo Ortográfico (1990), pois iremos nós retirar um ‘c’ a sector e o
professor passará a ser um ‘setor’?
Porque isto são mais de 800 anos de língua portuguesa, organismo vivo, sempre em evolução. E a evolução faz-se caminhando, não é com golpes de espada de desacordês.
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