HÉLDER BARROS |
Era Agosto de 1975, estávamos em Amarante Fregim e eis que chega de África uma figura que me marcou de forma profunda. O Sr. Ernesto, mais conhecido por “Ernesto Retornado”, homem de estatura mediana, trigueiro e bem disposto, estava nos degraus das escadas da Casa da Cidreira, em amena cavaqueira com os meus pais e tios. Tratava-se de um comunicador nato, homem que tinha feito apenas a quarta classe, mas que tinha muito mundo, mundividência, aquele saber que as vida nos dá, expressando-se muito bem e com o sotaque e os termos africanos, o que lhe conferia uma graça, ironia e uma musicalidade, muito próprias.
O Sr. Ernesto, foi assim que sempre o tratei, era mais um comummente denominado de retornado e, no caso dele, este epíteto até tinha alguma razão de ser. Sim, porque o Senhor Ernesto nasceu e viveu na Metrópole, e, se em novo foi para África trabalhar e depois retornou por força das circunstâncias geopolíticas, tratou-se de um regresso. Tinha sido criado em várias casas de Fregim, até que foi levado para África por um maltês - (habitante de Fregim que foi da ordem de Malta) - que precisava de um capataz numa fazenda de África. Como era oriundo de uma família pobre, ainda mais sem pai que, faleceu muito novo, o convite para trabalhar em África era irrecusável e uma oportunidade privilegiada, que ele não poderia deixar escapar.
Como se tratava de um capataz, isso conferia-lhe um certo estatuto social, pelo menos entre os empregados negros, que recebiam as suas ordens. Estávamos na presença de um homem que já sabia muito dos ofícios agrícolas, antes de rumar a África que, naturalmente, desenvolveu e ampliou os seus conhecimentos e técnicas agrícolas, numa terra em que tudo tinha uma dimensão superior. Os campos planos apresentavam uma dimensão que parecia ser infinita, estendiam-se quase até à linha do horizonte, o seu tamanho era até perder de vista, como referia ufanoso o Sr. Ernesto.
Eu era muito novo, com apenas sete anos de idade e ficava quase que, hipnotizado, a ouvir as estórias do Sr. Ernesto. Ele passou a ser o jornaleiro do meu pai, já antes tinha sido, na altura, criado do meu avô. Então, quando ele estava no quintal, eu ia ouvir aquela figura simpática e com um certo ar de super-herói, a narrar de forma entusiástica, as suas aventuras por terras de África. Desde que chegou, pediu ao meu tio uma loja da sua casa, para lá viver. Como muitos dos retornados, o Sr. Ernesto veio com o que vestia, as suas afeiçoadas recordações e pouco mais.
As suas histórias tinham sempre algo de cativante, porque ocorriam num palco diferente, pelo menos para o nosso imaginário. Claro que o questionava acerca das feras africanas e ele ria-se e dizia-me: “Olhe menino que pior que os bichos, são os homens! Os animais, se não invadirmos o seu espaço e os atacarmos, não querem nada connosco”. Contudo, pacientemente, lá me explicava os tipos de cobras que viu, os macacos e as suas brincadeiras, os leões que se ouviam de noite, o calor húmido, as chuvas diluvianas, o cheiro profundo a terra, as comidas e as expressões bem Africanas. A sua marca distintiva no trabalho e ferramenta de estimação era a sua catana que, conseguiu trazer de África e muitas vezes dizia que abriu muita mata com ela, nas savanas de Angola, chamava-lhe a sua muximba, pelo menos eu percebia assim.
O Sr. Ernesto não tinha dois dedos na mão esquerda, pois numa noite em que dormiu sem rede havia sido mordido por mosquitos altamente venenos e, como não foi tratado a tempo, deixou infecionar os dedos que, mais tarde, já num hospital situado a trezentos quilómetros da sua residência e com um estado de infeção muito avançado, foi obrigado a amputa-los, embora fizesse toda a sua lida diária e trabalhasse de uma forma perfeitamente normal.
Em África, segundo o Sr. Ernesto, vivia-se numa luta constante com os elementos naturais. As chuvadas repentinas poderiam destruir casas e plantações, pois embora quente, era uma chuva pesada e intensa durante várias horas. O calor, em conjunto com os altos índices de humidade, tornavam-se, muitas vezes, insuportáveis, pesados. Mas como dizia o Sr. Ernesto, uma terra que permite que, pelo menos duas vezes no ano seja feita a mesma sementeira, é um local abençoado pelos Deuses. Só é pena que os pretos não gostem de trabalhar, nem se saibam governar, dizia o Sr. Ernesto, para rematar as conversas.
O meu pai e os meus tios puxavam muito pelo Sr. Ernesto, no sentido, de saberem se ele deixou descendência em África, dado que ele tinha ares e fama de mulherengo. Parece que houve uma estória com uma africana, que resultou no nascimento de dois mulatinhos; mas ele era esperto, e sempre desviava a conversa. Com a declaração de independência, o Sr. Ernesto enquanto capataz começou a ser “aconselhado” a regressar à antiga metrópole. Parece que a mulata tinha homem que aceitou os filhos como seus e tudo ficou em paz. Mas o Sr. Ernesto, por vezes, estava nostálgico e contemplativo, quem sabe, a pensar na sua mulata e nos seus presumíveis filhos… mas guardava para ele, nunca falava sobre a sua vida mais privada, desviava sempre o rumo dessas conversas; no fundo tratava-se de um passado, que enterrou, nas suas longínquas e profundas reminiscências privadas; resquícios de uma guerra estúpida.
Cá, em Amarante, o Sr. Ernesto apenas tinha uns sobrinhos em Vila Caiz, com quem ia consoar no período de Natal e almoçar na Páscoa, ou em nossa casa, pois os meus pais nunca o deixavam sozinho, mormente, nessas datas. Homem de jornadas diárias de trabalho, dedicado e perfecionista, tanto tratava das hortas, como dos jardins, sempre com a mesma perfeição, sabedoria e toque muito pessoal. Aos Domingos aperaltava-se todo e lá ia ele, sempre a pé, almoçar em Amarante. Muitas vezes apanhava boleia com os meus pais e lá evitava, mais uma caminhada. Adorava festas, ranchos e cantares ao desafio, talvez, porque esteve muito tempo longe e assim, desse mais valor à nossa etnografia e costumes, que tanto nos identificam enquanto gente de entre Douro e Minho ao nível da nossa memória coletiva.
Um dia, estando eu já na Faculdade, telefona-me a minha Mãe a chorar a dizer-me que tinha morrido o Sr. Ernesto. Foi atropelado mortalmente no lugar da Pousada, em Fregim, por um ex-colega meu de escola, ironia das ironias. Uma parte de mim ficou muito mais pobre, pela falta de uma pessoa que fazia parte dos meus, como se da minha família se tratasse. E assim se pode constatar que, um homem que corre mundo e enfrenta perigos diversos, fome e miséria, inclusivé; pode morrer à porta de casa, numa tarde tranquila de um domingo soalheiro e primaveril… atropelado brutalmente por um carro que, seguia em excesso de velocidade e que se despistou levando na sua frente aquele ser humano fantástico, de uma forma, verdadeiramente, brutal.
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