A inevitabilidade das palavras é a última barreira e a incontornável prova da justiça da banalidade, acaba
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MIGUEL GOMES |
por trazer ao de cima, numa ascensão volumétrica, todo o silêncio que se tenta calar, redimindo sílabas e conjugando as palavras, ora em prosaica arquitectura, ora em queda livre de escarpas feita pelas arestas das próprias letras, vou tentando entender todos os dias que vivo. Escrevo baixinho, inaudivelmente, tentando passar despercebido por entre dois parágrafos que quiseram falar, mas eu não os deixei. Soltar palavras, assim, por soltar, é como tentar perceber todas as notícias que nos tentam noticiar, sem sequer deixar de lado as realidades irreais, vou almocrevando de galho em galho, porque hoje serei pássaro, escutando o passo de quem também se escreve baixinho, indelevelmente, como quem sem parágrafos torna cem eus num só entardecer tranquilo. Oh vento. Tu que me trazes de volta ao local onde esperei pelas histórias, vais esbatendo pela tela sem véu, a que muitos chamam céu, as pinceladas longas de uma matiz alaranjada, acastanhada, azulada, acinzentada e todas as cores que de tão esbatidas me lembram o nada que sou. O brilhar do cair da tarde e o ascender noutro azimute da noite, a pequena aragem que pede licença ao frio e se faz carente de agasalho, o queixo encostado ao pescoço, a aba do casaco emproada, as mangas do casaco que se tornam casulo de mãos gélidas. Há em tudo um sentido de imaginado, uma deificação de um simples arrulhar de um casal de rolas, uma amaravilhação do simples paupérrimo, o encantamento pelo encanto, o coro de uma voz só que canta e embala a própria terra e liberta, de quando em vez, a tuberculosidade de uma extensão de si mesma em forma de alimento. Para onde caminhas tu, povo, que de tão velho te queres sempre novo? Pudera eu ser composto, acompanhado de auxiliar que me dissesse quem tenho sido. A vida faz-se no infinitivo, sem nunca se debater com clausuras de ideias e pensamentos, tropeça por aí ao descer de uma encosta para tomar um café na primeira tasca que traga no ar um cheiro a fumo de carvalho e a mesa já gasta pelo bater do baralho. Ah, caralho, está quente! E o colectivo riso que se acerca de um vulto e com uma palmada nas costas expressa em tons que não se vêm pela cidade aquilo, não isto, a quem os entendidos chamam amizade. O claro e o dito, trocados pelo não dito, fazem das tardes domingueiras o palco principal do circo que se enche e mais vazio fica. Tal como as gentes, em rebanho, caminhamos como putos trôpegos, descalços e com ranho, vestidos com tudo aquilo que nos pesa e não sabemos a falta que temos, o casulo em que nos querem enclausurar enquanto nos dizem que de nós ninguém nos tira, e ai de nós quem nos acorde, não há outra mentira. Vejo o mundo cansado, quase irado, orientando-se a cada passo que lhe impomos. Uma mole de gente, igual por ser diferente, a caminhar cada qual por si, para si, de costas voltadas à intenção (o que conta é o vómito em forma de oração) equilibrando-se neste pequeno berlinde e este, coitado, na supra infinita paciência, vai rodando e rebolando, enquanto estes palhaços criados e malcriados se degladiam nas suas vestes sobranceiras à nudez, calcando os próprios passos, equilibrando-se contra o espaço vago e vazio que é o ocaso do corpo contra o frio. Inevitavelmente, assim, quase baixinho, existirá um dia a necessidade de sabermos habitados por almas, lampejos de uma luz que não brilha por não existir escuridão maior que aquela a que nos damos sem saber. Oh Deus, que foste tu fazer... Era evitável, talvez, todo o recurso expressivo do qual me sinto deficitário. Eu, também, um dia, talvez ontem, serei capaz de erguer a cabeça a sorrir e do alto da falésia que me separa do conhecido gritar baixinho, sussurrando, não me encontrem agora, ainda, enquanto houver hiatos entre sujeitos e verbos, possamos ser o complemento que se transmuta em metafóricas formas de adjectivar o pensamento. Só mais um dia.
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