sábado, 9 de maio de 2015

NÃO MAIS [DITADURA DO] PELO

JORGE NUNO
Habituei-me à sabedoria milenar chinesa, mas desta vez a notícia relâmpago fez mesmo faísca e deixou-me algo incrédulo. A notícia dava conta que na China um homem foi condenado a seis anos de prisão por se recusar a rapar a barba. Como os chineses têm vindo a comprar tudo o que podem… pensei que o caso pudesse estar relacionado aos negócios do pelo e, nuns laivos de excesso de fantasia, até já os estava a ver a ficar com as 29 dependências da Clínica do Pelo, espalhadas pelo litoral de Portugal. Afinal, vim a apurar que o citado caso aconteceu na província de Xinjiang, região do noroeste daquele país, predominantemente muçulmana, onde têm acontecido vários atentados e recrutamento para o Estado Islâmico.

Ainda há pouco tempo, um prisioneiro no Estado do Arkansas, submeteu o seu caso ao Supremo Tribunal dos EUA para esclarecer se ele, como muçulmano preso, pode ou não ter barba grande segundo a sua crença religiosa, quando outras 44 penitenciárias estaduais permitem o uso da barba. Levado ao extremo, este caso definirá se há, ou não, liberdade religiosa naquele país, tido como paladino da liberdade. 

Na comunidade amish, os homens quando casam deixam de cortar a barba, sendo que a barba grande tem o mesmo simbolismo que a aliança no dedo – é um sinal que o homem é casado –. Aconteceu em Bergholz, no Estado de Ohio [EUA], um bispo amish e mais 15 seguidores usaram da força, à noite, para cortar a barba a um determinado número de homens da mesma comunidade, sendo levados a tribunal. A legislação prevê penas até 16 anos de prisão para quem forçar o corte da barba, contra a vontade própria e como forma de humilhação, por ser considerado um crime de ódio.

O pastor John Weaver, no seu sermão “O Significado Histórico e Bíblico da Barba”, menciona a barba fazendo referência a Levítico 19:26-28: “Não comereis coisa alguma com sangue; não agourareis nem adivinhareis; não cortareis o cabelo (…), nem danificareis as extremidades da barba (…). Eu sou o Senhor”. Neste sermão, acrescenta a dado passo: “Não estou a dizer que um homem que não tem barba é menos santificado que aquele que tem barba. Além disso, não estou a dizer que um homem com barba é mais santo do que um homem sem barba”, mas lá foi dizendo que, com base nas Escrituras, os homens tementes a Deus devem ter barbas visíveis. Avança ainda que o Quarto Concílio de Cartago, em 398, decretou. “ O clérigo não deixará o seu cabelo crescer, nem removerá a sua barba”. 

Lembro-me da confusão que tem havido na paróquia de Canelas, com a recente substituição forçada do padre Roberto Carlos, contra a vontade do povo, e do seu substituto – o padre Albino Reis – a ser insultado à frente das câmaras de televisão, com alusão ao seu cabelo e barba compridas, numa mostra clara de intolerância, até pelo aspeto físico do “novo” padre. 

Em Moçambique, na época colonial, era frequente os presos políticos colocados na cadeia central da Machava – ala do Centro de Recuperação Político-Social ou Secção Prisional da PIDE – não serem autorizados durante os primeiros nove meses de “internato forçado” a cortar o cabelo, a barba ou até mesmo lavar os dentes. Bem mais civilizados e tolerantes foram os legisladores e quem aprovou em 1843, em Portugal continental, o Regulamento Provisório das Cadeias, já que no Capítulo II, Artigo 5.º, dão-se instruções sobre o asseio e salubridade nas prisões, devendo o carcereiro “seguir as ordens que mandam limpar, lavar e arejar, e defumar as prisões; bem como as que obrigam os presos (…) a fazer a barba e a cortar as unhas e os cabelos em dias marcados.”

Atualmente, a legislação portuguesa prevê sanções aos taxistas que se apresentem ao serviço com a barba por fazer e situação idêntica já foi adotada em alguns Estados do Brasil. Somos livres de questionar o porquê da aplicação destas regras a estes profissionais e não a outros, tais como médicos, chefs e muitos outros, em que pode estar em causa a higiene e até a saúde pública. Mencionei algumas profissões, mas é evidente que em qualquer das situações, por muitas boas razões que haja, pode estar a ser violado o Princípio da Igualdade consagrado no Artigo 13.º da CRP – Constituição da República Portuguesa, que estabelece que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” e “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Também o Artigo 26.º refere que “(…) A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, (…) à imagem, (…) e à proteção legal contra qualquer forma de discriminação”. Por acaso alguém consegue imaginar o filósofo e professor Agostinho da Silva ou o jornalista José Milhazes, sem barba? Ou os ex-futebolistas Toni e Fernando Chalana, sem bigode? Ou Jesus de Nazaré sem os seus cabelos longos e rapado, como Buda? É parte da sua identidade pessoal, da sua imagem e, como tal, seria desprovido de sentido privá-los do direito de usar barba, cabelo ou bigode, se assim o entenderam! 

Infelizmente, não havia a CRP quando eu cumpri o serviço militar obrigatório, e se era incompreensível a discriminação!... Não podia usar barba no Exército, mas se estivesse na Marinha… podia! Quando fui recrutado, tive que forçosamente cortar a barba, rapar o cabelo e, resolvi aproveitar a única oportunidade para exibir uns pelos sobre o lábio superior: deixei ficar um bigodinho parecido com o do galã Errol Flynn. Numa visita do comandante da Região Norte ao quartel em Bragança, por questões protocolares compareci no gabinete do comandante da unidade, atual gabinete do presidente da autarquia, e àquele general, vindo do Porto, deu-lhe para embirrar com o meu vistoso a alourado bigode! Pegou numa esferográfica, levou o bico a um dos meus cantos da boca e disse, à frente de todos, que o meu bigode era um “bigode à chinês” e que não estava “conforme o regulamento militar”, humilhando-me publicamente. 

Infelizmente, a CRP também não se aplicou ao ti moleiro da Augusta, que ao longo de mais de 60 anos de casado deixou a sua mais-que-tudo exercer o poder de matriarca, impedindo-o, despoticamente, de estar mais que 24 horas sem se barbear. Esse problema não teve a ti Ricarda, que me habituei a vê-la (há mais de 50 anos) a vender peixe de porta a porta, sem complexos e sem ditaduras legislativas relativas aos pelos, como mulher de máscula compleição física, a exibir o seu bigode preto, farfalhudo, de fazer inveja a qualquer homem.



Estranho mundo… ainda mais estranho se eu fizer o exercício do “se”! Se o chinês muçulmano – que eu julgava ser obrigado a ser ateu – vivesse há 50 anos atrás, em Moçambique, poderia ser à mesma preso político, mas sempre teria a hipótese de conservar a barba por 6 meses; se o bispo amish vivesse em Portugal no final do Séc. XIX, poderia estar preso, mas seria obrigado a cortar a barba, no tempo definido por lei; se o velho moleiro pertencesse à comunidade religiosa do pastor John Weaver, poderia continuar a ser temente da sua Augusta, mas não seria considerado temente de Deus, por não ter barba visível; se o caso do meu bigode – que face ao regulamento militar português ultrapassava o limite previsto em 3 mm – viesse a ocorrer nos EUA, poderia continuar a usar “bigode à chinês”, mas seria a minha “vingança de chinês” quando processasse judicialmente o general, por humilhação pública, que o poderia levar a uma pena de prisão efetiva; se Jesus de Nazaré voltasse novamente, agora com a missão de pacificar os paroquianos de Canelas, poderia sentir-se a sua enorme aura e ver-se os seus cabelos longos, mas adivinha-se a dificuldade que teria em cumprir a sua missão entre aqueles católicos; se os legisladores não estivessem quietos com a pata e ousassem continuar a legislar sobre o pelo, se lhes fosse aplicada, sumariamente, uma pena de prisão perpétua, pelo menos haveria, na humanidade, uma geração sem confusões, de gente feliz por poder usar barba, ou por rapá-la, consoante a sua própria vontade. Mas nem tudo seriam rosas!… Pois mesmo que não houvesse legislação sobre pelo, nem legisladores no ativo, até a ti Ricarda – que viveu feliz, no tempo e local certo – se tivesse vivido 50 anos mais tarde, precisamente agora e no mesmo local, teria que gastar, por mês, o valor de uma canastra de cavalas, chicharros, ruivos e chaputas, só para ir à depilação a laser à Clínica do Pelo, devido à pressão social e ao slogan “Não mais pelo”, até retirar, definitivamente, o seu bigode farfalhudo, o que a faria perder a sua identidade e imagem de marca!

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