terça-feira, 12 de maio de 2015

LUCIDEZ

REGINA SARDOEIRA
Muitas vezes gostava de não ser lúcida. Gostava de passar pela vida com a leveza de uma ave, de um golfinho, de uma criança e não ser trucidada pelo vigor humano da consciência vívida e vigilante que tenho e com a qual me habituei a antecipar. Sem me arvorar em clarividente, mas crendo que possuo um dom inquestionável para saber o que vai passar-se a seguir – seja no decurso de uma conversa, no transcorrer de uma aula ou na análise de acontecimentos sociais e políticos – sinto-me presa de uma angústia peculiar: gostava de ser surpreendida pelas pessoas, enquanto agem, comentam, falam, sussurram ou se quedam, simplesmente, em silêncio. Gostava de captar o inesperado, a surpresa, a revelação e dar um salto qualitativo na minha compreensão do mundo e dos homens.

Porém, a lucidez acutilante que me caracteriza e venho desenvolvendo desde que me reconheço como pessoa, atinge patamares cada vez mais elevados, a um ponto tal que antes de me dizerem isto ou aquilo eu já o sei, mesmo que não me tivesse vindo ainda à consciência em pleno.

Tal qualidade (se o é) deveria transportar-me a elevados patamares criativos, deveria guindar-me à categoria de cientista ou de profeta e o mundo já poderia estar rendido aos meus dotes excepcionais. Percebo, contudo, que sucede exactamente o contrário, que, saber de antemão o que vai suceder-se a um acto meu, a um gesto, a uma frase, me bloqueia os movimentos, me trava o pensamento, me impede de soltar as rédeas de mim mesma e partir para muitas ribaltas. E o problema é ainda esse: não tenho um domínio exclusivo onde proceder à especialização e tornar-me técnica disto ou daquilo e ignorante em tudo o resto. Não faço separação de saberes e de competências, tudo me interessa, quase em igual medida, e de tudo gostaria de ir até ao cerne.

Se eu disser: “Sou professora”, esta é uma afirmação que pode ser comprovada na prática já que é essa a parte mais visível das minhas actuações no mundo. Mas sê-lo-ei, mesmo e apenas? 

De vez em quando, estou a dar aulas e percebo que os alunos estão ali, parcialmente, que os meus ensinamentos (se o são) não os atingem e que pouco lhes importa descodificar segredos da existência e do mundo dos quais é feita a filosofia. Que interessa perceber o pensamento de Descartes, por exemplo, dar um salto intelectual para as linhas metódicas do seu pensamento lúcido, quando ele já morreu há quatro séculos e o seu método lhes parece um intrincado xadrez, um labirinto de conceitos inabituais nos trâmites da vida comum?

Desce sobre mim um profundo e inenarrável tédio, já sei que quando falo, por exemplo, em ideias inatas, e lhes digo que elas são as sementes da verdade, que estão em nós, como parte constitutiva do nosso eu de humanos, que só por elas conseguimos aceder a dois ou três pensamentos verdadeiros…leio-lhes nos gestos uma enorme perplexidade, uma incrível dose de suspeita e nenhum interesse por esse fenómeno humano que nos faz perceber, tomar consciência, pensar, construir argumentos! E já sei que, se amanhã ou depois lhes disser que, afinal, há quem negue as ideias inatas e argumente que somos tábuas rasas ou folhas em branco e só a experiência sensível garante alguma informação…quererão (se quiserem) saber quem tem, afinal, razão, quem está certo ou errado ou o que interessa afinal se temos ideias inatas ou se nascemos absolutamente vazios!

O pior é que eu sei também que esses alunos, que mediocremente me ouvem, se acaso se empenhassem seriamente nos caminhos que procuro arduamente abrir para eles, sairiam das aulas acrescentados e as lições de Descartes e dos outros todos repercutiriam nas suas vidas dando-lhes sentido.

Digo que sou escritora porque, desde que me conheço, cultivo a arte de descodificar a língua, a um ponto tal, que, quando começo a escrever seja o que for, as palavras afluem a grande velocidade, os pensamentos organizam-se, de um modo célere e coeso, e quando dou conta escrevi um texto, um comentário, um ensaio, um poema e até um livro, sem conseguir explicar de onde brotou semelhante manancial.

Produzo textos, quotidianamente. Se decidisse reuni-los em volume, por temas, teria sem dúvida um considerável conjunto de obras plenamente escritas, uma série de livros de poesia, de contos, de romances… E contudo, não há qualquer possibilidade de dar vazão a tal avalanche, não há nenhuma espécie de editora que aceda a publicar, de uma só vez, tantas produções e eu sei que as minhas obras permanecerão arrumadas em pastas, já que a lucidez de que falava no início me faz antever a impossibilidade de ser escritora em pleno.

Tenho portanto um grande problema: sou lúcida. Entendo à saciedade o mundo em que vivo e conheço que nesse mundo não há qualquer lugar para pessoas da minha espécie. Entendo à saciedade que apesar disso tenho que viver aqui, atrás das grades, cingida ao isolamento que para mim mesma criei. E não há nenhuma solução à vista.

Fernando Pessoa (e tantos outros cujos nomes não citarei) afirmou-se lúcido e eu percebo que ele foi, no seu tempo, um foragido da vida, um solitário: e tudo isso apenas por ser lúcido! Entendo-o nessa lucidez que ele não desejava e lhe enchia o pensamento de imagens torturadas. Leio-lhe os poemas, nos diferentes heterónimos, e a infelicidade perpassa nas palavras exactas que (tenho a certeza) lhe saíram espontaneamente do pensamento para a ponta dos dedos, quer fosse Alberto Caeiro, ou Álvaro de Campos ou Ricardo Reis ou Bernardo Soares (ou sei lá quem mais) e até ele mesmo, Fernando Pessoa. Mas, Fernando Pessoa fugiu de si mesmo e desta avalanche de personagens que o habitavam, bebendo continuamente, esquecendo, pela bebedeira, o excesso de lucidez com que a natureza o dotou, morrendo, enfim, por causa da bebedeira com a qual foi escapando sempre à terrível acutilância do seu modo de ver e de sentir.

Para mim, porém, não há bebedeira de nenhuma espécie, não há droga que me retire a consciência aguda do que sou, não há soporífero que me adormeça. Vivo, em pleno, a lucidez que me coube em sorte, cultivo-a mesmo sem querer, julgo que até quando durmo (a crer nos sonhos de que me lembro) a consciência permanece, vigilante. E muitas vezes não durmo porque o pensamento, inquieto, vagueia em muitas direcções, aproveita-se do silêncio da noite e do negrume, para brilhar, qual sol de meio dia, e fazer de mim uma noctívaga.

Percebo que escrevi uma crónica inesperada – principalmente para mim. Percebo que hoje não escreverei outra e que, por essa razão, os presumíveis leitores que amanhã terei não saberão o que pensar da minha declaração de lucidez. Paciência.



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