domingo, 31 de maio de 2015

HAVER

MIGUEL GOMES
Volto à folha de papel, de onde nunca deveria ter saído, confesso, para me ver sentir novamente o áspero e sensual deslizar do papel numa folha em branco.

Não há barulho, apenas o silêncio se faz ouvir, entrecortado com a minha respiração e a rouquidão do lápis triangular, negro, como a noite que se levanta para me fazer companhia.

Ao fim de poucas linhas o pigarrear do grafite traz a comparação com o inequívoco do arrastar dos meus passos numa estrada com dois sentidos, mas sem sentido algum.

O desafio da escrita rasga-me o tecido com que cubro o local onde estou, tenho-o, o lençol, amarrado a uns galhos destes arbustos onde penduro a roupa a secar e os grossos troncos dos pinheiros onde vejo a palma das minhas mãos em cada golpe que a corda ali laçada vai escavando. 

Há um certo pudor que me acompanha e que, também ele, se deixa anestesiar pelo bailado do lápis, a sombra que acompanha cada letra e o salto improvisado quando termino cada palavra escrita para a próxima palavra. 

Começo a duvidar da minha senilidade, estarei a ficar são? Mas não, felizmente ainda me alcança a loucura (e a timidez muda) de seguir as vontades loucas (e quem sou eu para as ajuizar?) deste companheiro de jornada, meu lápis. Dirão que é impossível, o lápis gasta-se, usa-se, apara-se e morre um pouco a cada lasca de madeira, de grafite granulado, elevado a pó ou a cada apara arrancada à força pelo ferro afiado de um formão ou navalha, mas, retomando o caminho roufenho desta folha arrancada a uma árvore e agora de celulose para que morra em paz, tomada de vocabulário, um pouco como nós, coisas humanas, que sucumbimos nus e crus, sem frases rendilhadas no corpo onde nascerão as raízes das folhas que escreverão a história da própria história, nossa e vossa, humanos e árvores.

Pergunto-me, invariavelmente não encontro a resposta, porque teima o céu reflectir-se nas águas calmas do Douro, que vem espreitando a costa a galope de pequenas ondas. Quererá o leito ser mais que a margem?

Acaba-se-me o papel e na revolvida terra que me verá virar costas e caminhar com a mesma esperança de amanhã, sim, terá outro dia e no percorrer deste caminho sem peregrinação perguntarei ao próprio caminho, quem és tu, que me vagueias por mim sozinho?

Pode a vida sobrar num cabo ventoso enquanto o horizonte teima em se fazer mar?

Vou deitar-me na certeza destas palavras, desatentas, subirem fragas acima e esperarem lá, onde o Sol aquece basalto e granito, que eu me decida a ser também pedaço de vento e deixar, por breves momentos, de ser.

Um cão vagueia na estrada, desatento, arfando como quem sorri ao patear o asfalto, de costas para o trânsito. Negro como a noite, dia não fosse, diria que me sorriu, o bicho.

O Sol espreguiça-se de encontro a um muro, como que se lembrando que é quase Outono e as pedras do muro são quentes ao final da tarde. Sol, de sol em sol, até se aninhar rendido no olhar de quem se acriança.

Um sorriso de uma criança, que recorda com satisfação, de olhos fechados, o primeiro almoço na cantina da escola.

Um atirar para o restolho dos restos dos dias que vivo.

Quatro vidas se vivem, em quadras que jamais escreverei. Quatro, quatro mil, quatro milhões que fossem, que ao me atirar para esta vida, ficou de mim no lado de lá aquilo que jamais emergirá.

E a vida que se atiça aos dedos, saltando, tecla em tecla, letra em letra, sem que se dissipe o nevoeiro que trouxe ao cais dos meus olhos uma palavra.

Há.

E isso basta-me.

sábado, 30 de maio de 2015

CIRROSE NÃO É SINONIMO DE ALCOOLISMO

ANTONIETA DIAS 
A cirrose é uma patologia que afeta o fígado e transforma a célula hepática normal num tecido fibrótico, com estrutura nodular destruindo-o completamente e comprometendo ou anulando a sua função.

A prevalência mundial da cirrose é desconhecida.

Nos Estados Unidos da América (USA), esta doença causa 25.000 óbitos por ano.

No Reino Unido nos últimos trinta anos a mortalidade por cirrose na mulher jovem aumentou 1000%.

Os últimos dados estatísticos apontam para uma percentagem de 11% de mortes nos homens na Europa Ocidental, por cirrose, calculando-se que em Portugal a estimativa anda por volta dos 5.000 portugueses.

Em Portugal representa a 10.ª causa de morte, sendo que a principal causa (cerca de 70 a 85%) dos casos é de etiologia alcoólica.

No nosso País o consumo de álcool é elevadíssimo, e nós estamos nos dez primeiros países do Mundo com maior consumo de álcool, acresce ainda, o fato de termos um número muito grande de acidentes de viação associados ao excesso de álcool.

O flagelo do consumo de álcool no nosso país representa um grave problema para a saúde pública, verificando-se que a idade de inicio de ingestão de bebidas alcoólicas é cada vez mais precoce, preconizando-se que seja por volta dos 13 anos de idade, não havendo grandes diferenças entre os dois sexos (feminino e masculino com bebedeira de fim-de-semana de grandes quantidades – shots) cujas repercussões socias estão associadas a fenómenos altamente desestabilizadores tanto para a pessoa, família ou até para a economia social (absentismo escolar e laboral, disfunções familiares, abandono familiar, desemprego, incumprimento adequado das tarefas escolares e profissionais, degradação e distúrbios da personalidade), enfim uma série de fenómenos desencadeados por este distúrbio social.

A cirrose é uma doença altamente incapacitante (ascite com paracenteses frequentes, encefalopatia crónica, hemorragias frequentes por roturas de varizes com uma mortalidade de cerca de 30) com custos elevados no que se refere ao número de consultas, internamentos e tratamento.

A idade média da morte por cirrose hepática em internamento é de 12%, correspondendo ao triplo da média nacional que é de 4%.

Portugal carece de unidades próprias (hepatologia, cuidados continuados, cuidados paliativos) para o internamento destes doentes e de canais eletivos para o tratamento dos doentes, não só no que se refere às consultas, como nos internamentos.

Importa ainda referir que existem outras causas responsáveis pela etiologia desta doença para além do alcoolismo cronico, apesar de que o consumo exagerado de bebidas alcoólicas (cirrose hepática de etiologia alcoólica) ser a principal fonte para o desenvolvimento desta patologia, porém outras causas não menos importantes são responsáveis pelo aparecimento da mesma como por exemplo, as hepatites autoimunes, as hepatites virais, mais frequentes a B e C, as lesões hepáticas provocadas por drogas ou toxinas, doenças metabólicas das quais salientamos a deficiência de alfa -1-antitripsina, hemocromatose, doença de Wilson, e ainda uma série de outras patologias que originam esta doença tão frequente na população em geral como sejam os distúrbios vasculares (insuficiência cardíaca direita cronica, Síndrome de Budd-Chiari) , cirrose bilar primaria, cirrose biliar secundária a obstrução crónica, colangite esclerosante primária, cirrose criptogenica (etiologia desconhecida), atresia biliar, insuficiência congénita de ductos intra-hepáticos (Síndrome de Alagille).

O diagnóstico de cirrose na fase inicial é difícil de fazer porque a doença desenvolve-se de forma praticamente assintomática, sendo muito frustes os sintomas referidos pelos doentes, o que dificulta a sua deteção precoce.

Na maior parte dos casos esta doença é diagnosticada através da realização de exames complementares de diagnóstico (análises de rotina), que revelam alterações dos marcadores hepáticos (transaminases).

Em fases mais avançadas já surgem sinais importantes como o aparecimento de desnutrição, icterícia da pele e mucosas (olhos amarelos), sangramento das mucosas (especialmente gengivas), ascite (edemas localizados no abdómen), edemas generalizados e o aparecimento de encefalopatia hepática, que resulta da acumulação de toxinas, com instalação de um quadro neurológico grave que pode terminar em coma.

Todavia, é importante ainda alertar para a hepatotoxidade associada ao uso de substâncias denominadas de “produtos naturais”, que se encontram comercializados e dos quais destacamos os mais usuais: “chá verde”, “bioactive”,”noni”, “herbalife”, que estão a ser promovidas como elementos saudáveis para o consumo, e que são altamente prejudiciais, não havendo controlo na sua essência quer a nível nacional, quer internacional, sendo muito preocupante esta publicidade enganosa.



Em suma, deveriam ser incentivados os procedimentos e as recomendações com alertas e programas destinados e dirigidos a toda a população em que a educação para a saúde focalizasse de forma assertiva para os efeitos deletérios do consumo exagerado de álcool e para as suas graves consequências.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O PODER CORROMPE, O PODER ABSOLUTO CORROMPE ABSOLUTAMENTE

GABRIEL VILAS BOAS
Finalmente alguém achou que já bastava e decidiu agir: O FBI fez várias detenções na Suíça de altos membros da FIFA, acusando-os de corrupção. 

Apesar de não poder sair de solo Suíço e de ser ele o responsável máximo da organização que superintende o futebol mundial, Joseph Blatter acha que não deve demitir-se e não encontra razões, sequer, para adiar a votação que o elegerá novamente a figura mais poderosa do futebol mundial. 

Na última década avolumaram-se as suspeitas de corrupção na FIFA, tendo sempre o seu opaco presidente como figura central, mas Blatter conseguiu sempre esquivar-se às suspeitas. Agora as suspeitas transformaram-se em detenções, contudo Blatter acha que não é responsável. 

A corrupção causa várias doenças ao mesmo tempo. Uma delas é a cegueira e o estado de negação da realidade em que os corruptos mergulham. Deixam de ter a noção da realidade, até daquela que melhoram dominaram: a realidade da imagem e da aparência.

Blatter referiu, hoje, à imprensa, que se trata de um momento triste e difícil para o futebol. Não acho! Triste foram estes anos todos de corrupção e subornos que compraram decisões absurdas como um Mundial na África do Sul, no Brasil ou Rússia, quando estes países não estavam organizados nem preparados parra receber um evento dessa natureza. Difícil foi “engolir” que a FIFA do Blatter tenha escolhido o Catar para organizar o Mundial de futebol em 2022, contra a vontade de todos os agentes desportivos, devido às altíssimas temperaturas que o país tem, mesmo durante o inverno.

Hoje foi um dia de alguma luz e esperança para todos aqueles que gostam de desporto, de futebol e da verdade e transparência. Finalmente, alguém abriu a porta e deixa sair o cheiro a podridão que asfixiava os corredores do poder do futebol mundial. 

As grandes marcas que patrocinam a FIFA, como a Visa ou a MacDonald´s, estão preocupadas! Não com a corrupção, pois sempre dela tiveram conhecimento, mas com a bendita imagem que lhes assegura o lucro e a posição de privilégio no mundo dos negócios. 

Eles sabem, melhor que ninguém, que essencial é parecer-se sério. Blatter deixou de um senhor bondoso e simpático, além de enigmático, para passar a sugerir algo de obscuro, mafioso e odioso.

Todo o negócio atual precisa da credulidade dos consumidores. Todo o desporto carece da paixão dos adeptos, toda a sociedade necessita acreditar que aquilo que a faz correr e sonhar não é impuro. 

No dia em que a corrupção nos roubar definitivamente os sonhos e as paixões, teremos dado um passo decisivo para o fim!

AUTORIDADE FATAL

Estado da perna de Regina Sardoeira
 Não gosto de publicar fotografias, gratuitamente, sem uma razão de fundo, seja ela óbvia ou não, para quem vê. Mas penso que hoje fará algum sentido mostrar esta que tirei agora mesmo e da qual fiz um propositado zoom. Trata-se da minha perna direita, desde o joelho até ao meio, esfolada, arranhada, ferida, pisada. Caí, é verdade, caí na rua, no degrau de um passeio de pedra...e isso acontece. Mas a questão não esteve propriamente na queda e nos momentos de forte indisposição que me acometeram, pois eram pouco mais de 2 e meia da tarde, estava um calor intenso e acabara há pouco de almoçar. A questão é que eu dirigia-me para o carro, apressada, pois estava mal estacionado e um agente da GNR preparava-se para me multar. Com razão -digo. Mas eu caí à frente dele, ele viu o estado em que ficou a minha perna, eu disse-lhe que me sentia mal... E a prioridade dele foi, depois de uma displicente pergunta - A senhora está bem? - e de poder verificar que não estava, foi pedir-me os documentos, escrutiná-los e ao carro, escrever o documento da multa, fazer-me esta e mais aquela pergunta, ignorando as minhas idas para o carro, sentar-me para não cair, inconsciente, ou refugiar-me numa sombra, para minorar o mal estar. Disse-lhe: É por causa destas actuações que as pessoas não gostam da polícia ou da guarda... Imperturbável, levou a tarefa até ao fim, fez-me assinar papéis e pagar a multa! Refugiei-me num estabelecimento. E, de imediato, o agente diz-me: Tem que tirar o carro daqui! E eu, a cair para o lado, disse: Não posso, tire-o o senhor! E ele: Julga que sou seu filho (sim, era um agente jovem) para me dar ordens? Acuso-a de desrespeito à autoridade! Saí, aos tropeções, não havia sitio para estacionar e segui para o hospital. Fui examinada, tratada, etc., não aconteceu nada de grave (a não ser os ferimentos e a queda de tensão)... Mas desde então até agora, questiono-me: O agente cumpriu o dever? É assim que devem proceder os homens que foram formados para servir os cidadãos?

Muito bem: eu e mais dois ou três condutores estávamos em transgressão, não discuto a multa. Mas não deveria o agente assegurar-se das minhas condições físicas, ajudar-me no que fosse preciso e depois passar a multa? Pois, nem ele, nem ninguém que por ali passava, deu o menor auxílio... Sozinha me ergui do chão, sozinha lidei com dores e mal estar, sozinha fui, depois, ao hospital...

Esta história verídica é, sem dúvida, pouco relevante, num mundo de misérias maiores: mas demonstra, só por si, o estado de degradação a que chegou o mundo dos homens. Tanto mais abominável quanto os protagonistas eram agentes da GNR e tinham obrigação de saber a ordem certa dos seus deveres e dos seus actos num caso destes. (E dizer que, ontem mesmo, vi num documentário sobre a vida animal, um orangotango gigantesco a tirar da água, cuidadosamente, usando uma folha, uma ave minúscula, que agarrou com extrema delicadeza e entregou à mãe!)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

ERNESTO, O RETORNADO

HÉLDER BARROS
Era Agosto de 1975, estávamos em Amarante Fregim e eis que chega de África uma figura que me marcou de forma profunda. O Sr. Ernesto, mais conhecido por “Ernesto Retornado”, homem de estatura mediana, trigueiro e bem disposto, estava nos degraus das escadas da Casa da Cidreira, em amena cavaqueira com os meus pais e tios. Tratava-se de um comunicador nato, homem que tinha feito apenas a quarta classe, mas que tinha muito mundo, mundividência, aquele saber que as vida nos dá, expressando-se muito bem e com o sotaque e os termos africanos, o que lhe conferia uma graça, ironia e uma musicalidade, muito próprias.

O Sr. Ernesto, foi assim que sempre o tratei, era mais um comummente denominado de retornado e, no caso dele, este epíteto até tinha alguma razão de ser. Sim, porque o Senhor Ernesto nasceu e viveu na Metrópole, e, se em novo foi para África trabalhar e depois retornou por força das circunstâncias geopolíticas, tratou-se de um regresso. Tinha sido criado em várias casas de Fregim, até que foi levado para África por um maltês - (habitante de Fregim que foi da ordem de Malta) - que precisava de um capataz numa fazenda de África. Como era oriundo de uma família pobre, ainda mais sem pai que, faleceu muito novo, o convite para trabalhar em África era irrecusável e uma oportunidade privilegiada, que ele não poderia deixar escapar.

Como se tratava de um capataz, isso conferia-lhe um certo estatuto social, pelo menos entre os empregados negros, que recebiam as suas ordens. Estávamos na presença de um homem que já sabia muito dos ofícios agrícolas, antes de rumar a África que, naturalmente, desenvolveu e ampliou os seus conhecimentos e técnicas agrícolas, numa terra em que tudo tinha uma dimensão superior. Os campos planos apresentavam uma dimensão que parecia ser infinita, estendiam-se quase até à linha do horizonte, o seu tamanho era até perder de vista, como referia ufanoso o Sr. Ernesto. 

Eu era muito novo, com apenas sete anos de idade e ficava quase que, hipnotizado, a ouvir as estórias do Sr. Ernesto. Ele passou a ser o jornaleiro do meu pai, já antes tinha sido, na altura, criado do meu avô. Então, quando ele estava no quintal, eu ia ouvir aquela figura simpática e com um certo ar de super-herói, a narrar de forma entusiástica, as suas aventuras por terras de África. Desde que chegou, pediu ao meu tio uma loja da sua casa, para lá viver. Como muitos dos retornados, o Sr. Ernesto veio com o que vestia, as suas afeiçoadas recordações e pouco mais.
As suas histórias tinham sempre algo de cativante, porque ocorriam num palco diferente, pelo menos para o nosso imaginário. Claro que o questionava acerca das feras africanas e ele ria-se e dizia-me: “Olhe menino que pior que os bichos, são os homens! Os animais, se não invadirmos o seu espaço e os atacarmos, não querem nada connosco”. Contudo, pacientemente, lá me explicava os tipos de cobras que viu, os macacos e as suas brincadeiras, os leões que se ouviam de noite, o calor húmido, as chuvas diluvianas, o cheiro profundo a terra, as comidas e as expressões bem Africanas. A sua marca distintiva no trabalho e ferramenta de estimação era a sua catana que, conseguiu trazer de África e muitas vezes dizia que abriu muita mata com ela, nas savanas de Angola, chamava-lhe a sua muximba, pelo menos eu percebia assim.

O Sr. Ernesto não tinha dois dedos na mão esquerda, pois numa noite em que dormiu sem rede havia sido mordido por mosquitos altamente venenos e, como não foi tratado a tempo, deixou infecionar os dedos que, mais tarde, já num hospital situado a trezentos quilómetros da sua residência e com um estado de infeção muito avançado, foi obrigado a amputa-los, embora fizesse toda a sua lida diária e trabalhasse de uma forma perfeitamente normal.

Em África, segundo o Sr. Ernesto, vivia-se numa luta constante com os elementos naturais. As chuvadas repentinas poderiam destruir casas e plantações, pois embora quente, era uma chuva pesada e intensa durante várias horas. O calor, em conjunto com os altos índices de humidade, tornavam-se, muitas vezes, insuportáveis, pesados. Mas como dizia o Sr. Ernesto, uma terra que permite que, pelo menos duas vezes no ano seja feita a mesma sementeira, é um local abençoado pelos Deuses. Só é pena que os pretos não gostem de trabalhar, nem se saibam governar, dizia o Sr. Ernesto, para rematar as conversas.

O meu pai e os meus tios puxavam muito pelo Sr. Ernesto, no sentido, de saberem se ele deixou descendência em África, dado que ele tinha ares e fama de mulherengo. Parece que houve uma estória com uma africana, que resultou no nascimento de dois mulatinhos; mas ele era esperto, e sempre desviava a conversa. Com a declaração de independência, o Sr. Ernesto enquanto capataz começou a ser “aconselhado” a regressar à antiga metrópole. Parece que a mulata tinha homem que aceitou os filhos como seus e tudo ficou em paz. Mas o Sr. Ernesto, por vezes, estava nostálgico e contemplativo, quem sabe, a pensar na sua mulata e nos seus presumíveis filhos… mas guardava para ele, nunca falava sobre a sua vida mais privada, desviava sempre o rumo dessas conversas; no fundo tratava-se de um passado, que enterrou, nas suas longínquas e profundas reminiscências privadas; resquícios de uma guerra estúpida. 

Cá, em Amarante, o Sr. Ernesto apenas tinha uns sobrinhos em Vila Caiz, com quem ia consoar no período de Natal e almoçar na Páscoa, ou em nossa casa, pois os meus pais nunca o deixavam sozinho, mormente, nessas datas. Homem de jornadas diárias de trabalho, dedicado e perfecionista, tanto tratava das hortas, como dos jardins, sempre com a mesma perfeição, sabedoria e toque muito pessoal. Aos Domingos aperaltava-se todo e lá ia ele, sempre a pé, almoçar em Amarante. Muitas vezes apanhava boleia com os meus pais e lá evitava, mais uma caminhada. Adorava festas, ranchos e cantares ao desafio, talvez, porque esteve muito tempo longe e assim, desse mais valor à nossa etnografia e costumes, que tanto nos identificam enquanto gente de entre Douro e Minho ao nível da nossa memória coletiva.

Um dia, estando eu já na Faculdade, telefona-me a minha Mãe a chorar a dizer-me que tinha morrido o Sr. Ernesto. Foi atropelado mortalmente no lugar da Pousada, em Fregim, por um ex-colega meu de escola, ironia das ironias. Uma parte de mim ficou muito mais pobre, pela falta de uma pessoa que fazia parte dos meus, como se da minha família se tratasse. E assim se pode constatar que, um homem que corre mundo e enfrenta perigos diversos, fome e miséria, inclusivé; pode morrer à porta de casa, numa tarde tranquila de um domingo soalheiro e primaveril… atropelado brutalmente por um carro que, seguia em excesso de velocidade e que se despistou levando na sua frente aquele ser humano fantástico, de uma forma, verdadeiramente, brutal.

terça-feira, 26 de maio de 2015

A INEFÁVEL REALIDADE DOS SONHOS

REGINA SARDOEIRA
Escrever pode constituir-se em acto de prazer, quando aquele que escreve sente o impulso inadiável de transformar pensamentos, ecos do âmago, impressões que palpitam na ponta dos dedos na metamorfose do texto. Mas escrever pode transformar-se em tortura, sempre que a página em branco nos agride na sua plana vacuidade e os sentidos tardam a serenar para que a palavra, perra e fugidia, encontre o caminho no deslizar das linhas. Contudo, basta um ligeiro toque, uma ligeira brisa; e eis que os cenários abrem para o alto levando-nos, feitos meteoros, para muito além de nós próprios. Exactamente, eis o que acima de tudo desejo: superar-me. 

Basta de caminhar rente ao chão, sorvendo poeira, basta de arrastar passadas em caminhos sempre iguais, basta de esbarrar pelas paredes do tempo e não saber no fim por onde nos perdemos. O encontro maior é sempre vivido no limiar da surpresa e, não raro, somos nós que estamos lá, apenas nós, enovelados em ilusões centríptas, sempre nós na inalterável solidão do eu - e apenas nesse momento ímpar seremos capazes de nos abrir ao outro. 

Falo de quê, afinal? Que poderá dizer a quem lê este encadeado de rumores mentais, feito palavras, feito discurso? 

Mais do que tudo, importa ao homem preservar de si a abertura para o alto, seja noite escura, ou dia pleno, abertura para o alto e para o longe, onde se perfilam nuvens e depois os sonhos. Sim, os sonhos, esses que nos acontecem no seio da escuridão e trazem estonteantes brilhos diamantinos pendurados em cálices de prata, que o oiro cega e pode matar o que não se preparou devidamente para os fulgores do dia. Os sonhos, nossa garantia única de aceder a todos os futuros possíveis, nosso pacto misterioso com divindades inefáveis, achadas num vislumbre de arco-íris e logo perdidas em ventos outonais, os sonhos, essa ordem vinda dos hemisférios turbulentos ou das suaves regiões intocáveis prontos para nos deslumbrarem o pensamento e nos atirarem mais para além. 

Percebo que de tudo o que conquistamos, enquanto racionalidade, é a memória difusa das visões nocturnas que deve guiar-nos os passos da vigília: porque há um esclarecimento a brotar na hora do descanso, uma direcção tornada certeira se soubermos ler todos os sinais. Se assim ousarmos proceder, nenhum erro advirá, excepto naqueles hiatos obscuros que necessitamos de preencher com doses consideráveis de realidade. Eis aí a razão de todos os nossos logros, esse esquecimento, decerto constitucional, como tragédia de nascença, à semelhança da amnésia cognitiva das almas quando encarnadas em corpos espúrios. 

Pouco importa a realidade: mais do que os sonhos, ela traz em si todos os gérmenes de uma insolente loucura com a qual nos ludibria, enquanto sentimos estar a viver em sensata e lúcida caminhada; e, se não fosse o exílio do sonho, acontecido em horas que jamais dominaremos, em consciência, difícil e árdua seria toda e qualquer das jornadas humanas. 

segunda-feira, 25 de maio de 2015

MAIO


ANTÓNIO PATRÍCIO e ANABELA BORGES
Os caminhos da minha aldeia, nos tempos da minha infância, eram debruados a amoras e flores silvestres. Estreitos, em terra batida, choravam quando, derreados sob o peso do trabalho diário e rude, se deixavam marcar pelas rodas dos carros e pelos cascos dos sofridos e silenciosos bois maroneses. Aqui e ali, como que a medo, lá aparecia um pé de morangos, uma erva-de-São Roberto que, com suas veias vermelhas, estendia os braços finos apontando, mais além, um hipericão que, de sorriso canário, chamava a atenção das obreiras abelhas. A natureza rebentava de cor e, um pouco por todo o lado, as melodias e danças nupciais levadas a cabo por um sem número de passarinhos, amenizavam a dureza e a rudeza do trabalho rural. Assim entrava Maio, explodindo de vida e cor, ao som das badaladas no velho sino, chamando para a reza do terço em honra da Virgem. No seu altar, rodeada de flores brancas, de olhar doce e ternurento, a Mãe de Cristo, no seu silêncio de pedra, ouvia as preces e deixava transparecer no sorriso dos seus lábios a paz e a alegria. O eco dos cânticos descia pelo vale e, lá bem no fundo, onde o Tâmega corre em vau entre salgueiros e freixos, fazia silêncio não fosse perturbar a inspiração ao Poeta. Maio, mês de rogações e promessas à Mulher que, um dia, disse SIM. 

Tardes de Maio

Tardes de Maio, Sol-posto,
Tardes de novena, às trindades,
Onde o beijo sabe a mosto
E a Lua leva as saudades.

Tardes de Maio, orações,
Tardes de novena, cantigas,
Sorrisos quentes, palpitações
E as gargalhadas das raparigas.

Tardes de Maio, trovoadas,
Tardes de novena, campainhas,
Filhas solteiras, enamoradas,
Ontem princesas hoje rainhas.

Tardes de Maio, choupos esguios,
Tardes de novena, passarinhos,
Chuvas fortes enchem os rios,
Caem das árvores os ninhos.

Tardes de Maio, incerteza,
Tardes de novena, cheia Lua,
Vem a menina fazer uma reza
Calcando sozinha as pedras da rua.

Tardes de Maio, de Maio,
Tardes de novena, novena,
“Uvas nascidas leva-as o gaio”
Chover no molhado, não vale a pena.

COMO SE ESCREVE FUTURO?

CATARINA DINIS
Nos longos e frios bancos apenas ela está sentada, desprovida de tudo o que é lembrança. A frente dela écrans com números e letras significavam o que resta para partir. Em sua mente já só resta uma pergunta para responder. Há futuro sem futuro? Ou, será o futuro na verdade o que carrego em mim, no total segredo? E eis que hoje o futuro entra em minhas palavras… um tema tão subjetivo. Futuro, futuro, futuro sobre o qual nos interrogamos mas afinal quem é ou o que é o futuro? E como se escreve? Ele é feito de sonhos e aventuras, é o horizonte azul, a pequena luz de um farol que ilumina uma ilha chamada coração. O futuro é o que está por vir, por descobrir, por desembrulhar. É também uma palavra temida, o seu prefixo “ in”, traz-nos o incerto, o incógnito, o imprevisível. É angustia, o receio de enfrentar a bruma e o que lá se esconde ( a vida e a morte). O futuro são instantes que nos esperam com o desejo de construir a felicidade e a tranquilidade que tanto ambicionamos. O futuro são as conquistas, as medalhes da nossa coragem, a nossa vontade de evoluir enquanto ser e enquanto emoção e sentimento. E há que hoje, no presente construir os pilares do nosso futuro… Sejam felizes e boa semana! 

domingo, 24 de maio de 2015

DOI, DO

Existe uma tangência que espreita nestes dias redondos, semi quentes… Entre a frase anterior e o momento
MIGUEL GOMES
actual, mesmo em desacordo ortográfico, creio ter escrito, digitado, dezenas de frases e uns bons centos de palavras. Apaguei tudo, excepto a tangência, pela musicalidade e por ser a forma como tudo nos toca, tangencialmente, sem nunca transpor o limite que nos separa da miscência. Tento não escrever na crueza do que me seca as noites, perpetuar um pouco a areia molhada e as pegadas que apago para que ninguém, incauto, me siga. Hoje, tal como amanhã, quero-me incógnito. Hoje, tal como ontem, quero olhar o céu e ver um tufo de nuvens arrolhar com o vento, serpenteando na inocência de um Deus que se deleita com a mesma inocência com que uma criatura, selvagem, se deita. Haveria de ter dito isto antes, mas nunca o fiz, talvez porque saiba que estas, e as outras, ao contrário das pegadas de hoje, ficaram para serem li… Não, não lidas, ficaram para serem, olha, pegadas de locais onde nem sequer me atrevo a pensar, quanto mais caminhar. Caminhar é para quem se ajoelha no lodo lamacento, uma espécie de lodaçal de maré vaza sem água, um perpétuo repetir de repetições, remexendo o solo em busca de algo que cai, ainda vivo, creio, num saco de plástico, tal como as nossas vidas. As vidas serão como todos os sábados virados para dentro, um pouco sem histórias e personagens. É do calor, repito, que se me secam as fontes por onde costumo entrar sem frio para ver quem por de trás da água vem corrente, fogem, como os faróis fugiriam se os agrilhoassem a montes de dor. Surge um dia em que tudo cansa, até o respirar. Um dia em que todas as ruas parecem imensas rotundas que nos levam a passar vezes sem conta no mesmo local, mais depressa, mais devagar. Entramos por uma vereda, seguimos em frente, o semáforo está verde, não o colhas, terás oportunidade de petiscar quando o ar rarear e sentires entrar em ti, correcção, pelo teu corpo, o alimento do qual sobrevivem as estrelas, o infinito. Teremos que ter esta conversa, um dia, talvez no embalo de uns desconfortáveis bancos de um comboio que balança ao ritmo do metálico claquear das rodas nos carris, parecem ir contando quantos percorreram, mas eles, tal como eu, perderão a conta às contas que somaram para se multiplicarem em pensamentos que se dividem nas categorias a que chamamos dias e estes, dias, são sempre de menos, subtraídos, traídos e atraídos pelo toldo da feira, quente como o inferno, que se abana e faz pensar que o céu, esse, um dia se irá caiar. É do calor, birrepito-me, que se me urdem urzes e por entre elas as pegadas que nunca permiti calcar. A cacofonia de sons, de vozes, de pensamentos que cheiram a maldade, pessoas que se acometem ao pregão e de lá, do fundo, da dificuldade em viver da vida, arrematam tudo por um punhado de moedas, ou euros, e repetem algo, primeiro, para que ela própria a ouça e, depois, baixinho, para que o cansaço o saiba, “fodasse, eu queria era dormir”. Passo incólume pelo mercado, trago carradas de coisas para as quais não preciso embalagem, vai tudo colado ao corpo mesmo senhor, sou poupado e sim, um pouco parvo também, mas não o diga, que quererão saber-me e se eu nem de mim sei, quanto mais para contar a alguém? O ar fica rarefeito, a rede é péssima, o momento religioso chega e todos se convertem à idolatria de um estranho humano quase sem bateria. A armadilha foi lançada, o animal enjaulado ainda que não o saiba eum cego pede, encarecidamente, que o deixem continuar a não ver. Dê-mos-lhes as nossas vidas, aos poucos, primeiro a comida, depois o ar, siga-se a água, aos poucos, não vão eles acordar no desconforto, terão fome um dia e saberão que isso é bom porque todos terão e os, coitados, que ousem apalavrar o final de tarde em que se sentam e riem, descalços, quase nus, de braços dados ao entardecer diremos que são doidos. Vi um ali, sentado na praia húmida, pés enterrados na areia, a traçar uma tangente ao sol com o próprio olhar. Coitado, é doido.

sábado, 23 de maio de 2015

JÁ NÃO SE PODE DORMIR?

JORGE NUNO
A seguir ao almoço, sento-me em frente ao meu PC para iniciar a crónica para a BIRD, e dou uma olhada pelo correio eletrónico, pelas notícias online e pela minha página do Facebook. Nesta, deparo-me, imediatamente, com uma foto na comunidade em que sou membro e com a qual me deliciei: uma imagem recente da Serra da Estrela, com um pastor deitado no chão, a dormir, enquanto as suas cabras se mantêm em vigília, junto às fragas e a pastar, dando a ideia, pela pose e pelo porte, de que os ares da serra dão um apetite devorador. 

Há aqueles que não dormem em serviço – nem podem – acreditava eu, para bem de todos nós. Mas compreendo e entendo que este pastor fez mesmo bem em tirar uma soneca, e admito que sempre terá o seu cão de pastoreio (que não vi na foto) que, com determinação, vigia e pode pôr as cabras em ordem, se começarem a tresmalhar-se.

Não sei se por influência deste quadro bucólico, se pelo efeito do estômago composto, se pela temperatura exterior de 38º C, a verdade é que começo a sentir-me, rapidamente, no estágio 1 do sono NREM (Non Rapid Eye Movement), que é como quem diz: com uma sonolência! Sem desligar o computador, atirei-me para cima da cama ao lado, sem querer saber que esta fase costuma ter a duração aproximada de 5 minutos. Apenas sei que adormeci e devo ter chegado ao estágio 4 – o do sono profundo – como um Porsche Boxster GTS chega dos 0 aos 100 kms/h, ou seja, em 5 segundos!

Acordei cinquenta minutos depois, com o correr e gargalhar das pequenas vizinhas de cima, não sendo eu tão veloz quanto o Porsche a chegar aos 100 km/h… na minha tentativa de identificar e assimilar qual a proveniência do ruído. Poderia ficar rabugento e, na melhor das hipóteses, refilar coisas simples e educadas como: “Já não se pode dormir?”, ou “Ninguém põe as crianças a dormir?”, ou “Ninguém leva as crianças ao até ao jardim?” – sim, porque não sou dado a praguejar impropérios, embora por vezes dê mesmo vontade de perder a cabeça e começar a desatinar –. Em vez disso, lembrei-me do ator e escritor Peter Ustinov que terá dito que “o som de uma gargalhada sempre lhe pareceu a mais civilizada música do universo”. E aqui, não era uma gargalhada, mas muitas e repetidas gargalhadas, logo uma grande sinfonia enviada… quem sabe, pelo universo, para eu acordar. Em surdina, agradeço às miúdas e ao universo, pois a tão apregoada sesta, com efeitos benéficos para a saúde, estava razoavelmente cumprida e eu sentia uma vontade reforçada de escrever a crónica.

Talvez tenha dado para ver que eu não sou daqueles que sofre de perturbação comportamental do sono, e muito menos das “agruras da privação do sono e desacertos com os ritmos do bebé”, quando este teima em não querer dormir, já que passei por isso há mais de três décadas, lembrando-me que tinha que contar, milhentas vezes, a “história da menina muito chata”, história que era suposto ter o efeito contrário ao verificado. 

Li algures que “vidas interessantes dão sonos tranquilos” e li, também, no livro “Dormir Tranquilo”, da autoria do pediatra Mário Cordeiro, que “o registo de vida stressante desregula a hormona do sono – a melatonina –. A ser assim, então a minha vida e a do pastor estavam a ser interessantes e sem stresse, com a diferença que ele sempre podia prolongar a sesta, sem ser acordado pelas miúdas a correr e a rir, nem pelo som das sinetas das cabras, a que já deveria estar imune. 

A propósito da sesta, Sara Medrick, professora do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia, no seu livro “Durma a Sesta, Mude a sua Vida”, naturalmente, faz aquela apologia e alega que o desempenho é melhor quando se dorme mais. Uma pesquisa da NASA – a agência espacial norte-americana – aconselha que se durma no local de trabalho, pois terá chegado à conclusão que “os pilotos que fizeram uma sesta de 25 minutos estavam 35% mais atentos e duas vezes mais focados do que aqueles que não tinham dormido”. Outros estudos mostram que “as sestas dinamizam a aprendizagem, fazem com que aumente o sentimento de felicidade e ainda contribua para um aumento da atenção, memória, aprendizagem e criatividade”. 

Temos que reconhecer que o sono – como estado normal de repouso para o corpo e mente – complementa o estado de vigília e que a sua privação pode afetar a regulação e regeneração das células e afetar, igualmente, o sistema imunológico. A ser assim, depois do que já tinha lido e do que agora escrevi, tenho duas dúvidas, por haver um difícil entendimento: 

1.ª – Custa a admitir que nas longas e animadas sessões na Assembleia da República haja deputados que adormeçam, cumprindo o ritual da sesta sempre que lhes apetece e, face aos resultados comprovados dos estudos, não se veja um melhor desempenho com esse “passar pelas brasas”;

2.ª – Custa a admitir a veracidade da notícia veiculada pala BBC, com base em informações dos serviços secretos sul-coreanos enviados ao parlamento do seu país, que o líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-un, tenha mandado executar o general Hyon Yong-Chol, ministro da defesa (tal como já fizera com o próprio tio), com tiro(s) de bateria antiaérea – método destinado à execução de altos funcionários e à frente de centenas de pessoas –, pelo ato “desrespeitoso” do general adormecer num evento público onde o líder supremo se encontrava.

Abençoado pastor que, em contacto com a natureza, aparentava o sono dos justos!

Abençoada sonolência que senti quando iniciei esta crónica, ainda sem tema, e sem ter que responder perante ninguém.

E se os factos são verdadeiros, estranho mundo… em que um general que ousou “passar pelas brasas” numa cerimónia oficial nem deva ter podido questionar educadamente: “Já não se pode dormir?”

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A BANALIDADE DO MAL

GABRIEL VILAS BOAS
Passo os olhos pela memória dos últimos dias, que não são assim tão poucos, e tropeço em pedras, cassetetes, agressões, roubos, vandalismo, cargas policiais, humilhações, mortes. 

A violência tomou conta da vida coletiva e já nem nos admiramos que não haja razões que expliquem tudo isto. Muito dificilmente a violência encontra justificação, mas, por vezes, pode explicar-se. Nos últimos dias, nem isso. 

Um clube de futebol conquistava algo inédito em três décadas e no meio do júbilo de centenas de milhares de portugueses, irrompe uma onda de violência tão absurda quanto inquietante. 

Qual a razão para gente feliz e satisfeita vandalizar, roubar, destruir, enquanto esperava que a polícia garantisse condições de segurança para que abandonassem um estádio de futebol? Como entender que algumas centenas entre muitos milhares resolvam estragar a festa de gente sua atirando pedras, garrafas, petardos, cocktails molotov à polícia? Como explicar a fúria encolerizada de um polícia perante um cidadão que a ele se dirige, na presença dos filhos menores e dum velho pai, que desata à cacetada para efetivar a mais simples das detenções? 

A violência já não precisa de justificações sociais nem psicológicas. Existe porque tudo o resto parece aborrecido. Nem as vitórias, os momentos de exaltação, as alegrias desejadas durante meses, conseguem suster esta animalidade grotesca e maligna que se apossa de algumas pessoas. 

Cinco dias passados sobre os acontecimentos, os jornais, as televisões, as rádios conseguiram ouvir quase toda a gente sobre os acontecimentos de domingo passado em Guimarães e Lisboa, mas não conseguiram ouvir os protagonistas. E foram tantos! Sobram os comentários, as análises, os lamentos, os clássicos pedidos de medidas e castigos, as desculpas tardias daqueles que tacitamente concordaram com o esquema da festa no Marquês do Pombal. Já eu gostava de ouvir o que têm para dizer os vândalos que saquearam os bares do estádio do Guimarães, os operacionais da intifada do marquês e, claro, o polícia mais famoso do país, pelos piores motivos. Gostava de perceber PORQUÊ?, mas, talvez, nem eles saibam. Receio que me continuassem a chocar, temo que nenhum arrependimento lhes tenha passado pela consciência. 

Durante algum tempo, pensei que aquele agente graduado da PSP encontraria um meio de pedir desculpa ao avô que esmurrou e à criança que aterrorizou, no final da tarde de domingo, mas o máximo que consegui ler foi um pífio recado mandado aos jornais por um colega: talvez se tenha excedido. 

Não acho, como o professor Marcelo, que estejamos mais sensíveis à violência. O problema é que a violência entra no corpo e na alma de cada vez mais gente e não encontra sensibilidade nenhuma.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

FALEMOS EM DESACORDÊS

ANABELA BORGES
“A língua é um organismo vivo”, a professora explicava. E os alunos, naquele ponto, ficavam logo muito atentos.

E perguntavam, “Como assim, ‘vivo’? Como um animal?”.
“Sim”, respondeu a professora, “como qualquer ser vivo”.
“Uma língua nasce, cresce, modifica-se, envelhece”, continuava a professora, logo interrompida pelo aluno incrédulo sentado ao fundo da sala (aquele que punha sempre tudo em causa, mesmo quando se tratava do mais logicamente entendido por todos), “E morre?”.
“Morre.”, respondeu outro, sentado na fila lateral.
“Como o Latim!”, disseram alguns quantos em coro.

A professora sorriu, orgulhosa. Não raro, recorria ao Latim para explicar a origem de muitas das palavras. Os alunos sabiam que o Latim era uma língua morta. Mas ali falava-se da língua viva. A língua em movimento, praticada por mais de 240 milhões de falantes em todo o mundo; a quarta língua mais falada e segunda em reuniões de negócios, logo depois do Inglês. Estes dados relativos à Língua Portuguesa, todos recentes, eram apresentados pela professora com recurso a fontes, para que os alunos vissem da sua veracidade. E perguntava, “É, ou não, de termos orgulho na nossa língua e de a tratarmos bem?”, os alunos respondiam “Sim!”, ainda um tanto estonteados pela força dos números.

Daí para a frente, não foi difícil explicar os ‘processos de formação de palavras’, nem foi nada difícil para a professora dizer que era contra ‘acordos ortográficos’. Porque não há forma de uniformizar uma língua falada por cerca de 240 milhões de pessoas. O Português, nas suas variantes – europeia, africana e brasileira –, possui inúmeras pronúncias, sotaques, variedades linguísticas e um vocabulário riquíssimo, de uma riqueza impossível de quantificar. Cada país de Língua Portuguesa tem as suas especificidades. 

Vejamos:
Se não fosse a riqueza de vocabulário do mundo da lusofonia, a professora nunca poderia dizer “Estou cá com uma (a)zoeira na cabeça”, e nem poderia sequer queixar-se que tudo se devia ao banzé feito pelos alunos. Não poderia dizer que a sua mãe estava a ver a xepa, que era como lá por casa designavam a telenovela. E em vez da mochila que os jovens tanto prezam, talvez continuássemos a chamar alforge ao saco de levar os livros para a escola (um exagero certamente aqui, mas “mochila” não diríamos, que a palavra não é originariamente nossa). Nem poderíamos utilizar a palavra canoa para designar a curiosa embarcação que habitualmente se vê a sulcar o rio Tâmega. Ou dizer que comemos pipocas quando fritamos o milho.

Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação”, escreveu Vergílio Ferreira. A língua portuguesa conjuga, em muitos aspectos, o sabor salgado e o cheiro da maresia. O caminho essencial, esse desconhecido que foi traçado com vigor e convicção: o mar. E o mar trouxe-nos muitas palavras.

Além das palavras do mundo lusófono, outras palavras estrangeiras, faladas um pouco por todo o mundo, vão entrando na nossa língua e fazendo parte do nosso vocabulário oficial. São os empréstimos. Os alunos não tiveram qualquer dificuldade em dar exemplos à professora: “croissant”; “paparazzi”; “boom”; “shopping”; e uma parafernália de expressões ligada ao mundo das tecnologias – “motherboard”; “backup”; memória RAM; “e-mail”. Ah, sem dúvida, os alunos são barra nisto! É como se tivessem nascido com um “chip” instalado, com todo um roteiro de palavras orientadas para o mundo das TIC (acrónimo para Tecnologias da Informação e Comunicação). E para explicar que eles, os jovens, têm bué de influência nas transformações da língua, a professora explicou também os processos de truncação. E explicou-lhes assim, “Vocês gostam de poupar nas palavras: cortam uma palavra a meio, ficam com metade e deitam a outra metade fora”. Mais uma vez, os alunos foram rápidos a dar exemplos, “Prof’; Net’; Face’; Insta’…”. E depois ficaram muito admirados quando a professora lembrou que “foto” é uma truncação de “fotografia” e “metro” de “metropolitano”. E quando acrescentou que ‘s’tor’ era uma espécie de truncação da gíria estudantil que significava “senhor doutor”, foi o pasmo geral, uma surpresa total, pois os alunos desconheciam tal significado do vocábulo que usam de forma tão recorrente. Habituam-se de tal modo à linguagem corrente, que acabam por esquecer o vocábulo original. Mas isso é o preço a pagar pela evolução natural da língua. E esse foi o pretexto para a professora explicar algumas palavras amalgamadas, que, por força do uso, por pragmatismo, por rapidez de comunicação (por vezes, por pura preguiça), se transformaram em vocábulos cuja origem se vai perdendo, como “telefone móvel” para telemóvel, ou “informação automática” para informática.   

Tudo isto faz parte de um processo lento, estranhado e saboreado pelos falantes. É a evolução da língua. A língua perde e ganha novos vocábulos, e nós afeiçoamo-nos mais a uns do que a outros. E procuramos selecionar os que mais nos aprazem na prática da comunicação.

Lá mais para o final da aula, um aluno perguntou à professora, “E a palavra ‘s’tor’ como se escreve?”.
Boa pergunta! Isso foi logo o que a professora pensou, “Boa pergunta!”. E respondeu: essa palavra ainda não entrou oficialmente no vocabulário. E, desde já, vos digo: se entrar, será um problema para os linguístas conjugarem esta palavra com o Acordo Ortográfico (1990), pois iremos nós retirar um ‘c’ a sector e o professor passará a ser um ‘setor’?


Porque isto são mais de 800 anos de língua portuguesa, organismo vivo, sempre   em evolução. E a evolução faz-se caminhando, não é com golpes de espada de desacordês.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

INTELIGÊNCIA EMOCIONAL

SARA MAGALHÃES
Ouvi estas palavras pela primeira vez em 2003. A partir dessa altura continuei, até hoje, a querer saber mais sobre esta forma de Inteligência. 

As regras de trabalho encontram-se em mutação e somos hoje avaliados por uma nova bitola. Não somos apenas avaliados pela nossa inteligência ou pelas nossas habilitações literárias, mas também pela forma como gerimos a nós próprios e aos outros. Acredito que devo ensinar as crianças e os jovens para esta realidade: habilitações centradas nas qualidades pessoais tais como, autoconfiança; autodomínio; integridade; capacidade de comunicar; a iniciativa e a empatia, a adaptabilidade; influenciar e aceitar a mudança, são cada vez mais importantes para as novas regras de trabalho.

Numa época em que não existem garantias de segurança no emprego, em que o próprio conceito de “emprego” está a ser substituído pelo de “perícias portáteis”, estas são qualidades fundamentais que nos tornam e nos conservam empregáveis. 

Foram mencionadas ao longo de décadas com vários nomes vagos, desde “caracter” e “personalidade”, até “qualidades pessoais” e “competências”, há finalmente uma compreensão mais precisa destes talentos humanos e segundo os especialistas, um novo nome para eles: INTELIGÊNCIA EMOCIONAL (QE).

Tudo tem a ver com a forma como nos comportamos, nos damos com as pessoas, trabalhamos em equipa, lideramos. Aqui importa uma nova forma de ser inteligente.

Inteligência emocional não significa meramente “ser simpático”. Em certos momentos estratégicos pode exigir “não ser simpático”, mas antes, por exemplo, confrontar alguém abertamente com uma verdade desagradável plena de consequências, até então evitada.

Inteligência emocional significa gerir os sentimentos de tal modo que se exprima apropriada e eficazmente, permitindo que as pessoas trabalham juntas sem problemas, em sintonia com os seus objetivos comuns.

O nosso nível de inteligência emocional não é geneticamente fixo nem se desenvolve apenas nos primeiros anos de vida. Ao contrário do QI, que pouco muda após a adolescência, a inteligência emocional é em grande medida assimilada e continua a desenvolver-se ao longo da vida, à medida que aprendemos com as nossas experiências. Existe uma palavra antiga para este crescimento da inteligência emocional: maturidade.

Apreende-se capacidades emocionais baseadas na inteligência emocional, que resulta num desempenho extraordinário no trabalho. 

A nossa inteligência emocional determina o nosso potencial para aprender aptidões práticas que se baseiam em cinco elementos: autoconsciência; motivação; autodomínio; empatia e talento nas relações. A nossa competência emocional mostra até que ponto traduzimos esse potencial nas capacidades profissionais. Mas a posse de uma elevada inteligência emocional não garante por si só que uma pessoa adquirirá as competências emocionais que importam para o seu trabalho; significa apenas que possui um excelente potencial para as aprender.

Trabalhar as competências emocionais, principalmente nos adolescentes, é abrir janelas de oportunidades para o autoconhecimento emocional, para que no futuro, possam ser reconhecidos e recompensados no mercado de trabalho, uma vez que estas competências emocionais já o são.

Tenho a certeza que é necessário e urgente educar as emoções.

terça-feira, 19 de maio de 2015

METÁFORAS

REGINA SARDOEIRA 
Eu soube que o mundo não seria salvo pela lava daquele vulcão, e dos outros todos. Logo que o soube, pensei que tinha sido acometida por um pensamento estranho, pois a lava de qualquer vulcão não existe, aí, para salvar o mundo dos homens, ou seja de quem for, a lava dos vulcões é um produto natural com consequências que apenas dizem respeito aos vulcões e à natureza mas que nós, homens, desarreigados da natureza, fazemos incidir sobre a humanidade, para dar-lhe um sentido que nunca teve. Sei bem que o pensamento expresso é metafórico e é o mesmo que dizer que não há salvação, nem salvador, nem nada, porque essa ideia é tão utópica quanto inútil. O mundo dos homens está desgovernado, e parece que desgovernado continuará, construído que tem sido nas espirais da ganância e nas linhas condutoras do egoísmo e da insanidade. Enquanto não for possível reconquistar a velha racionalidade – ou a nova, se nova existir – nada será salvo e o homem perder-se-á.

Ninguém se salvará, por fim: nós, porque deveríamos ter gritado e calámo-nos; eles, porque deveriam ter-nos impelido a gritar e viraram insolentemente as costas. Esta absurda passividade desbragada em que esperamos uma salvação vinda pelo meio das nuvens, em céus, porventura tenebrosos e violáceos, ousando querer que o todo-poderoso desça num vórtice de luz e nos estenda a mão, sem que demos um passo para derretermos a nossa miséria, é, sem dúvida, o maior perigo da humanidade.

Eu nem sei se precisamos de ser salvos ou, no mínimo, de que precisaremos, afinal, de ser salvos. Quem está perdido e reconhece a sua perdição e quer encontrar um porto de abrigo, mais vale começar o caminho, desde logo, em vez de implorar misericórdia: e os caminhos fazem-se, caminhando. Lugar-comum, dir-me-eis, mas nunca receei um preceito vulgar se afinal ele for profícuo e vêde: os carreiros das montanhas existem porque um e depois outro e a seguir dezenas e centenas os foram, aos poucos, esculpindo. 

Bem sei que escrevi gritar e calar e agora falo de caminhos e passadas. Mas o grito pode ser de Avante! E o silêncio pode ser de Desisto! Ora, o incitamento para a frente será a salvação a que quis aludir, embora a minha sentença seja céptica, pois afirmo que ninguém se salvará, por fim.

Vejo, quotidianamente, multidões acéfalas em ordeiros rebanhos para nenhures ou então digladiando-se do alto das tribunas ou nos campos de batalha. Não creio na eficácia dos condutores de rebanhos, castradores das consciências dos que consideram reses, e o modo como empunham o gládio dos discursos conduz ao sofisma, e portanto ao logro, enquanto o sangue que espirra das baionetas espetadas não lava a miséria de estarmos todos vivos.

Tive todos os privilégios, mesmo quando me pareceram castigos, mesmo quando outrora rangi os dentes e arranquei os cabelos na perplexidade de me sentir numa prisão: mesmo então poderia ter usado, a meu favor, o lume da inteligência, o poder da razão. Ora o que em mim se agigantou nas horas indeléveis em que me travaram os passos, rumo a mim própria, foi apenas a emoção violenta, o desejo de fuga e talvez o propósito de vingança. Foi por essa razão, ou talvez para escapar às decisões cruéis, aos pactos incompletos, que me pus a sentenciar.

Soube que todos passaremos, depois, como sombras ou centelhas – a escolha será nossa – e aqueles que encontrarmos nas sendas da alvorada saudar-nos-ão com gritos de euforia, porque ficarão a saber que já não estão sós. E no entanto esse “depois” tardava em revelar-se e talvez nem me conviesse. Sombras ou centelhas? Que dizer de uma sombra que é sempre o rasto de outra realidade e não a própria realidade? Que dizer de uma centelha que é sempre um fogacho transitório, mesmo que de luz, mesmo que violento?

Por isso, os castigos que a vida pôs entre mim e o que quero de mim devem ter sido a sentença de vida a procurar a indicação para mudar de caminho, a seta apontada no sentido inverso àquele que usei seguir. Foram, pois, privilégios e ainda bem que o percebi, pois não é tarde demais quando a luz do dia, mesmo ensombrecida pelas nuvens de Maio e turvada pela chuva persistente, se vai rasgando após a noite e compelindo-me a, finalmente, viver.

Não existem impossíveis, pois a palavra impossível, contém a palavra possível, basta tirar o prefixo que nega…Para negar seja o que for é necessário que esse “seja o que for” tenha uma qualquer substância que possa ser negada e logo, tendo em si substância, deverá existir. Assim, qualquer impossível marca o advento do possível ou a sua anterioridade no tempo: foi possível, deixou de ser, é impossível, mas foi possível antes. Questão metafísica ou filosófica ou de qualquer âmbito, até do senso comum: qualquer um pode exclamar uma bela manhã, Não há impossíveis, e partir para as montanhas e ali viver de gafanhotos e mel. Principalmente, não esperes que te venha salvar seja quem for: tu és o teu único e legítimo salvador…ainda não reparaste que a vida vivemo-la, inevitavelmente, a sós? Nunca percebeste a solidão intrínseca do teu pensamento, a impossibilidade absoluta de comunicar uma ideia apenas, só uma, e obter de alguém a perfeita compreensão? E os salvadores!... Esses, de preferência te atiram ao abismo, se a escolha tiver que dar-se entre ti e eles: logo preferem ser os salvadores de si próprios… e porque haveríamos de criticá-los? Vê bem: podes ter um pequeno presente de dádiva pura no oceano dos dias…mas é sozinho que terás que prosseguir…não esqueças! Só tomando esta consciência extrema que parece um paradoxo na vivência do humano, mas afinal o resume, enquanto lucidez, estaremos na existência em serenidade suprema.

Comprei a bugiganga porque me apeteceu e logo que a tirei da bolsa, ansiosa, percebi que não a desejava e envergonhei-me. São assim os impulsos ou as frustrações ou a exposição acertada das coisas nos mostruários: de repente, um brilho salta, que até pode ser o reflexo do sol, que até pode ser uma ilusão óptica: e a insignificância ganha uma espécie de sumptuosidade e eis-nos a não poder resistir ao seu poderoso halo de sedução. Depois, há outra coisa. É que as bugigangas, como lhes chamei, nem sempre são fúteis ou inúteis, e pensamos honestamente que vamos ser capazes de lhes dar uso e até ansiamos por chegar a casa, desdobrar o embrulho e desatar a procurar a finalidade do utensílio. E contudo a vergonha pode instalar-se, se repararmos que nada de extraordinário pode vir-nos desse pequeno nada adquirido em hora repentina. É certo que, tal como o bolor que fez vicejar a flor miudinha, também a minha triste bugiganga da montra modesta poderá enfeitar de luz o espaço de um outro: e então ganhará sentido a oferenda, se após a súbita descoberta da inutilidade da coisa, para mim, puder fazer dela prémio, para outro. Percebemos deste modo que nem sempre as bugigangas são verdadeiramente futilidades e que, mesmo que nos envergonhemos do acto repentino, da fúria cega do impulso acéfalo e depois suspirarmos porque o prazer e a ansiedade se converteram em culpa, logo se dará a catarse e provaremos a nós próprios, sem equívocos, que houve um sentido não revelado, de imediato, no momento deflector, mas, apesar de tudo, lá, mesmo que indistinto.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

A LOUCURA DA NORMALIDADE

CLARA CORREIA
“ Estamos em pleno século vinte e um! … ”, diz-se a propósito de tudo e de nada, com o propósito de exaltar a nossa própria contemporaneidade face à sua presumível falta no outro … ou ainda como que celebrando valores cujos progressos na respectiva conquista não foram menos do que seculares. E, no entanto, como ilude a aparência da crença na globalidade desses valores! … como mente em cada mente individual o universal cinismo a fingir que nos julgamos todos iguais, iguaizinhos, sem tirar nem pôr! E não, não estamos a falar do desrespeito absoluto pela Humanidade absolutamente assumido por boa parte da Humanidade do Médio Oriente. A Ocidente, a apregoada liberdade pela individualidade torna-se presa individual de demasiados indivíduos que, (des)confortáveis no seu frágil pedaço de sociedade, apontam outros que, no seu parecer, no parecer do “rebanho social” a que talvez temam deixar de pertencer, não satisfazem os cânones detidos pela suposta maioria. Grita-se aos quatro ventos a Tolerância pelas opções individuais que não lesem a Pátria nem ninguém, e o direito à Diferença, com a intolerância da hipocrisia e a indiferença pelos direitos alheios … não importa se o alvo é a menina, filha do casal mais mediático do “showbiz”, que, consta, insiste em aparecer publicamente vestida como um rapaz, ou se é o vizinho que passou a viver com o namorado, ou ainda se é a prima que, em consciência, optou por mandar às urtigas os planos de casamento para fazer voluntariado em África. Nem tão pouco importa se determinado canal televisivo faz uma reportagem acerca de “bullying” e depois, no âmbito da emissão em diferido de um “casting” de talentos musicais, apresenta um jovem candidato como “objecto” de intencionada zombaria nacional. E será importante a reacção adversa feminina, nomeadamente de bloggers/”opinion makers”, perante o corpo (francamente esbelto), em fato-de-banho, de uma jovem actriz, depreciando-a por, alegadamente, estar “gorda”? … quando deveriam ser, precisamente, as mulheres a estar na primeira linha de combate à rigidez dos estereótipos femininos e padrões respeitantes ao peso e idade?

Por entre a chuva, por vezes ainda moderada, de Intolerâncias com nomes como Racismo. Homofobia ou outros pretextos para discriminações, caem pingos de uma absurda “loucura da normalidade” que bem pode denunciar quem pode bem juntar-se à fila dos infelizes que sofrem de “Normose”, a designar o temor de “sair do baralho” e o horror a quem dele se “desbaralha”!

domingo, 17 de maio de 2015

RENOVAR... DE NOVO

MIGUEL GOMES
Encosto a cabeça à porta, baixo um pouco o vidro, entra-me o fresco da noite e ainda ecos de claves que luziram de lua e não de sol. De sol em sol a falta do volante não se sente, embalo-me pelas irregularidades do piso e deixo-me ser transportado pelo pequeno emaranhado de ruas que viram, em tempos, desacordos românicos sobre qual a letra a visitar quando o amor se quer fazer entre um dó e um ré. Ré, inocente, entre o vento e a noite, a luz que passa por mim como riscos leves de pinceladas de um sem abrigo no quase breu dos candeeiros que iluminam, mas não aquecem ao longe, do lado de lá da retina, as pequenas estrelas que me fazem chegar a saudade de milhões de anos luz onde vivi como sendo apenas éter. É ter e não ser que me prevalece no untado corpo quando chovem risos de conversas que nunca soube ter. Hoje e ontem. Amanhã e no futuro, distante, onde me sentarei na pedra fria, a contar nuvens de mosquitos que conspiram sobre a pluviosidade que lá vem. Lavem as ruas, as calçadas, desnudem as pessoas e as casas, hoje quer-se um momento de sonolência, passe por nós sua excelência, nua e crua, enquanto eu dormito e emudecido o céu fito, tenho saudades de ver o brilhar com olhos de criança dormente. A dor mente, tenta trazer para si o barulho de uma semana onde encontro a vida e a morte, se me é permitida tal sorte, quando umas mãos frágeis e pálidas, onde corre sangue que quer ser respirar me seguram o braço, os lábios sedosos de um idoso que envelhece para ser criança de novo me beijam a tremer a face e um sussurro que me bate alto na cavidade auricular, tanto quanto na alma, soltando um “gostava tanto de morrer agora”, mas a vida tem outros propósitos, um pouco como as mãos que me vêm debruçar sobre o vidro semi embaciado, ortografiar enregelado o pensamento enquanto me esforço por repescar as letras que afloraram à tona do lago onde me reflicto. Baixaram a tampa do caixão. Cai chão e terra, o céu aguarda-se azul por enquanto, os corpos contorcem-se na ignorância de não se saberem eternos, em húmus e cinza, a claridade ausente que apenas o louco sente quando a consciência mundana o deixa divagar rapidamente entre as várias camadas que nos separam do reflexo e refluxo da vida. Vi da janela, pela janela, corrijo, a tua cara já rechonchuda, pele lisa e braços firmes onde pende a tua pulseira dourada. As paredes parecem ceder à transparência do que o olhar desatento fita, enquanto te beijam a testa fria, dás um ar de riso e colocas a mão invisível no rosto e limpas umas lágrimas de comoção que nunca chegaram a luzir. Os abraços e o choro, a tinta da caneta por onde escorreito corro, tudo se converte no chamado da atenção para a inevitabilidade da vida, morto estamos todos quando nos permitimos ser vividos pelos dias, sem que nunca os enfrentemos sem medos, agarrados a nós os segredos e a eles o dia a seguir ao outro. Apertado ao pulso o barulho ritmado do relógio sobrepõe-se ao bater do coração. Cura, são segue o horário e a manhã fria e ventosa, a perniciosidade do mal vigorará agora que todos se sabem mortais, sem a protecção dos capitéis, de que nos valerão nas mãos gastas os luxuriantes anéis? De novo, mas ainda gasto, dou-me ao pensamento e continuo no remexer de uma semana, a procurar sobre e debaixo de papéis, a maior parte não são meus, episódios que me possam trazer a serenidade de acalmar a pacatez do que me sobra. Não possuo qualquer legitimidade na defesa ou acusação de nada além de mim. Falta-me, faltas-me, a opinião sobre outras veleidades que não o que me dita o coração. Por mim continuo na sombra, onde sempre me soube proporcionar a queda das folhas, o mergulhar das mesmas no mar de ar e partículas que me separa da próxima respiração, ver sorrir um rosto que se volta e, por momentos, pedir em segredo a que divindade possa interessar que me tenha o tempo com placidez, afinal, o reflexo de mim no espelho sorri-me velho e diz-me, piscando conspiratoriamente o olho, sou eu quem me fez. Sabes, leitor, penso em ti, enquanto continuo com a cabeça encostada ao vidro e o ruído abafado do motor se harmoniza na minha imaginação num contínuo ronronar de um universo a dormir. O quanto te tenho para dizer, esta ânsia de tudo espairecer e deixar que se soltem as palavras, ainda que não as gostes, porque, sei-as, por vezes, amargas. Olho para as letras e palavras, as do papel e as que passam por mim na mesma rapidez das luzes do crepúsculo contínuo que é a duração da noite, o que me separa de ti é a respiração que gostava que sentisses, sobres os teus ombros, e visses que além desta cacofonia de escombros estão as estrelas. E eu, garoto, espero que sonhes com elas.

sábado, 16 de maio de 2015

O DESMORONAR DO SNS/TENTATIVA DA BANALIZAÇÃO DO ATO DE PRESCRIÇÃO MÉDICA

ANTONIETA DIAS
Nestes dois últimos anos temos assistido a mudanças significativas na área da saúde que irão com certeza destruir completamente um serviço de saúde que nos orgulhava e que era invejado por muitos Países a nível mundial.

O diagnóstico atual, quando avaliamos os procedimentos e analisamos os objetivos de quem legisla e os pareceres dos teoricamente conhecedores de uma área tão complexa como a da medicina, em que opinam sobre atos que colocam em risco a vida dos nossos doentes, gera uma angústia terrível, não só pela ignorância demonstrada sobre o verdadeiro papel e conteúdo funcional da profissão do médico que é constrangedor e gera violência, no utilizador(doente).

Pensar que qualquer pessoa que tenha uma intervenção na saúde pode ser candidato a um eventual prescritor clinico é de fato um pensamento terrivelmente desumano e desrespeita completamente o ato medico e a assistência ao doente.

Sem prejuízo, da mais valia e da preciosa colaboração que cada um dos técnicos das várias áreas da equipe de saúde têm (enfermeiros, técnicos de cardiopneumologia, técnicos de radiologia, técnicos de fisioterapia, ortodontésicos, podologistas, etc, etc…), que vieram enriqueceram de forma digna o SNS e contribuíram para melhoram a prestação dos serviços saúde, é um fato inquestionável e demonstrável.

Porém, não podemos de forma nenhuma desrespeitar e desqualificar o conteúdo profissional de cada um dos técnicos e muito menos tentar transferir competências de uns para os outros, sejam quais forem os interesses e objetivos pretendidos de quem decide.

Estando em curso o estudo das condições necessárias ao desenvolvimento da rede de serviços de saúde, é conveniente estruturar mas não destruir.

Respeitar os princípios, os níveis de cuidados, os atributos, as formas de coordenação e os objetivos da atividade assistencial, respeitando o doente e cuidando-o no seu todo, não é possível que alguém com responsabilidade possa propor que outros profissionais que não sejam os médicos, façam prescrições terapêuticas aos doentes.

Se neste momento, com tanta mudança estrutural, com tanta poupança, com tanto desinvestimento, com tanta privação de recursos humanos, de meios técnicos, de dificuldade de acesso dos doentes que residem mais no interior e distantes dos urbanos, já por si é uma perda da qualidade nos cuidados de saúde, não é possível que ainda se pretenda propor, que outros profissionais que não os médicos sejam prescritores de qualquer medicamento seja ele qual for e em que circunstâncias ou contexto clinico se enquadre.

Não podemos aceitar se tente encontrar soluções que coloquem em risco a vida dos doentes e se destrua o acesso aos cuidados de acordo com a “legis artis”.

Antes de prescrever qualquer medicamento é preciso conhecer o doente, é necessário diagnosticar a doença, saber farmacologia e ser um “expert” do conhecimento na indicação do efeito e das contraindicações dos fármacos que estamos a prescrever aos doentes.

Se alguém imagina que a prescrição terapêutica é um mero mencionar de um fármaco que o vizinho, o amigo, o colega, a publicidade é suficiente para ter legitimidade para o fazer é destruir completamente a ciência e a investigação médica.

Salvar a vida do doente é um ato nobre que não pode ser desrespeitado e muito menos violado.

É preciso sim, mudar muitas diretrizes no âmbito da prestação dos cuidados de saúde, mas isso implica mudanças estruturais, e neste momento a mais importante é entregar a responsabilidade da decisão a quem tem competência para o exercício dessa atividade, e os decisores políticos deverão procurar outros meios para poupar na saúde que sejam compatíveis com o que de mais sagrado existe que é a vida e a dignidade da prestação dos cuidados de saúde a quem precisa e tem direito a ser assistido com sapiência e com todos os recursos existentes, pelos vários intervenientes envolvidos na área da saúde.

Deixemos o ato de prescrever para quem tem competência para o fazer sendo que este ato é da exclusiva competência dos médicos e aproveitemos os recursos técnicos de cada um dos outros profissionais cuja função é imprescindível para cuidar bem e melhorar a qualidade em saúde.



Não tentemos confundir e muito menos transferir competências para quem não as tem.