ANABELA BORGES |
Ainda agora aqui
cheguei.
Deixem que me
acomode melhor. Ver melhor. Observar melhor. Pensar. Reflectir sobre.
Ainda agora aqui
cheguei.
Já falaram bem e
mal do Herberto Helder, bem e mal do Manoel de Oliveira, bem e mal do Günter
Grass. Já se digladiaram, porque todos eram Charlie mas uns eram mais do que
outros. Já disputaram posições, porque uns acharam bem a prisão preventiva do
ex-primeiro ministro e outros classificaram o acto como o maior erro judicial
de todos os tempos. Já consideraram o partido de Tsipras o melhor partido do
mundo, a salvação da Grécia e da Europa. Já falaram mal de todo o autor
português que tenha menos de 60 anos. Falam mal de todo o artista que ganha
fama: falam mal do Peixoto, do Mãe, da Vasconcelos. Falam mal de qualquer um. É
assim que fazem cultura. Misturam tudo, tudo no mesmo saco. Eu digo,
“ingratos”. Já se reuniram num círculo fechado de aço para, entre si, se
elogiarem e auto-elogiarem, muitas das vezes com as invejas uns dos outros,
como ratas velhas, escondendo trapaças por detrás das orelhas. E como aquilo é
um círculo fechado, um bicho auto-sustentável há que continuar o caminho da
fingida devoção. Todos são muito bons em decidir o melhor e o pior das coisas.
E eu deliro com tudo o que diga respeito a génios (que não acredito na sua
existência) e aos rótulos “o melhor”, “o maior”, “o mais belo”, “o pior”. “Ingratos”,
eu digo. Eu digo, “Esperem. Não se precipitem”. Mas não, não me adianta pedir
calma a ninguém. Ninguém tem calma. É tudo desenfreado. Tudo fala de enfiada. Não
pelos meios-termos, as meias-medidas, que talvez trouxessem o mundo mais
acomodado de igualdades, sem tanta assimetria.
Ali ao lado, a
mulher, na máquina da verdade, assegura que nunca roubou o cordão de ouro da
sua mãe. A máquina diz que é verdade. Está safa. Já não será apelidada de
ladra. A máquina é que sabe. As máquinas têm sempre razão.
E eu penso,
“Muitos de nós vós deveríeis ir à máquina da verdade”.
Lembro-me, por exemplo – lembro-me muitas vezes – que a Agustina Bessa-Luís ainda está viva e não divulgam a obra dela, não fazem programas sobre ela, não falam nela, no que é e no que foi. Fazem-na esquecida de existir ainda. As jovens gerações não lhe conhecem nem nome nem obra. E eu penso, “O que dirão da Agustina quando ela morrer?”.
Esse bicho
pavoroso que se auto-alimenta é um dos escafandros que contribui para o estado
em que a cultura se encontra-Não-se-encontra. Não aceitam nada de novo. Não
acreditam em nada, só para serem conta tudo. Esses Velhos do Restelo, a dizerem
«[…] Ó glória de mandar! / Ó vã cobiça
[…] // Chamam-te ilustre, chamam-te subida, / Sendo dina de infames vitupérios;
/ Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana![…]»*.
Esse mesmos: «[…] um velho d'aspeito
venerando, / Que ficava nas praias, entre a gente, / Postos em nós os olhos,
meneando / Três vezes a cabeça, descontente, / A voz pesada um pouco
alevantando […]».* Esse mesmos. Muitos velhos do restelo.
Aqui ao lado,
alguém com os dizeres “Je suis Charlie” escritos na testa, diz, com indignação,
que somos todos Charlie, mas ninguém olha aos Quenianos assassinados na
universidade. Que ninguém faz nada pela situação catastrófica na Síria. Ninguém
pelos raptos de tantas meninas. Diz, “Pois, porque o Charlie é já aqui ao lado
e o Quénia fica muito longe”.
Logo de seguida,
todos vemos, mesmo aqui ao lado, no Mediterrâneo, ao largo da Líbia, de
Lampedusa, de Rodes, os gritos inaudíveis de centenas de náufragos, imigrantes
clandestinos fugidos dos horrores das suas áfricas, das suas ásias. O grito
desesperado dos afogados aqui tão perto.
É certo, temos
de ir às causas para resolver o problema. Mas não percamos mais tempo.
Só se fala. Este
é um problema à escala mundial. No imediato, é europeu, de cada país que
constitui a Europa, velha, gasta, rabugenta.
A juntar aos do
mar, milhares de outros que fogem a pé, na África subsariana, para os campos de
refugiados, caminhos de sangue, gritos vermelhos, de horror, a pedir ao mundo
um pedaço de pão, um lume de esperança, um pouco de dignidade. Paz.
Que humanidade é
esta?
Somos todos
responsáveis. Todos inflamamos o mundo. Deixamo-lo à beira de se incendiar.
Nada fazemos para que as coisas avancem, para que melhorem. Não somos amigos uns
dos outros, nem unidos. Estamos cheios de uma mesquinha embriaguez de
individualismo e de inércia. E de poeira. Somos pouco empreendedores. Só com a
língua, a botar faladura de tudo e de nada, é que não.
A evolução das
espécies segue, na sua mutação. O processo é lento, levando, normalmente,
milhares de anos. Mas a cada centenas de milénios, a evolução dá um salto
qualitativo. Esperemos que seja uma evolução mentalmente mais limpa, mais
tolerante, mais harmoniosa, menos desprendida.
Eu não sei.
Vou andando.
*Os Lusíadas
(IV: 95, 104, 94, citados por esta ordem), Luiz de Camões.
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