quinta-feira, 23 de abril de 2015

VOU ANDANDO

ANABELA BORGES
Ainda agora aqui cheguei.
Deixem que me acomode melhor. Ver melhor. Observar melhor. Pensar. Reflectir sobre.
Ainda agora aqui cheguei.

Já falaram bem e mal do Herberto Helder, bem e mal do Manoel de Oliveira, bem e mal do Günter Grass. Já se digladiaram, porque todos eram Charlie mas uns eram mais do que outros. Já disputaram posições, porque uns acharam bem a prisão preventiva do ex-primeiro ministro e outros classificaram o acto como o maior erro judicial de todos os tempos. Já consideraram o partido de Tsipras o melhor partido do mundo, a salvação da Grécia e da Europa. Já falaram mal de todo o autor português que tenha menos de 60 anos. Falam mal de todo o artista que ganha fama: falam mal do Peixoto, do Mãe, da Vasconcelos. Falam mal de qualquer um. É assim que fazem cultura. Misturam tudo, tudo no mesmo saco. Eu digo, “ingratos”. Já se reuniram num círculo fechado de aço para, entre si, se elogiarem e auto-elogiarem, muitas das vezes com as invejas uns dos outros, como ratas velhas, escondendo trapaças por detrás das orelhas. E como aquilo é um círculo fechado, um bicho auto-sustentável há que continuar o caminho da fingida devoção. Todos são muito bons em decidir o melhor e o pior das coisas. E eu deliro com tudo o que diga respeito a génios (que não acredito na sua existência) e aos rótulos “o melhor”, “o maior”, “o mais belo”, “o pior”. “Ingratos”, eu digo. Eu digo, “Esperem. Não se precipitem”. Mas não, não me adianta pedir calma a ninguém. Ninguém tem calma. É tudo desenfreado. Tudo fala de enfiada. Não pelos meios-termos, as meias-medidas, que talvez trouxessem o mundo mais acomodado de igualdades, sem tanta assimetria.

Ali ao lado, a mulher, na máquina da verdade, assegura que nunca roubou o cordão de ouro da sua mãe. A máquina diz que é verdade. Está safa. Já não será apelidada de ladra. A máquina é que sabe. As máquinas têm sempre razão.
E eu penso, “Muitos de nós vós deveríeis ir à máquina da verdade”. 

Lembro-me, por exemplo – lembro-me muitas vezes – que a Agustina Bessa-Luís ainda está viva e não divulgam a obra dela, não fazem programas sobre ela, não falam nela, no que é e no que foi. Fazem-na esquecida de existir ainda. As jovens gerações não lhe conhecem nem nome nem obra. E eu penso, “O que dirão da Agustina quando ela morrer?”.
 
Esse bicho pavoroso que se auto-alimenta é um dos escafandros que contribui para o estado em que a cultura se encontra-Não-se-encontra. Não aceitam nada de novo. Não acreditam em nada, só para serem conta tudo. Esses Velhos do Restelo, a dizerem «[…] Ó glória de mandar! / Ó vã cobiça […] // Chamam-te ilustre, chamam-te subida, / Sendo dina de infames vitupérios; / Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana![…]»*. Esse mesmos: «[…] um velho d'aspeito venerando, / Que ficava nas praias, entre a gente, / Postos em nós os olhos, meneando / Três vezes a cabeça, descontente, / A voz pesada um pouco alevantando […]».* Esse mesmos. Muitos velhos do restelo.

Aqui ao lado, alguém com os dizeres “Je suis Charlie” escritos na testa, diz, com indignação, que somos todos Charlie, mas ninguém olha aos Quenianos assassinados na universidade. Que ninguém faz nada pela situação catastrófica na Síria. Ninguém pelos raptos de tantas meninas. Diz, “Pois, porque o Charlie é já aqui ao lado e o Quénia fica muito longe”. 
Logo de seguida, todos vemos, mesmo aqui ao lado, no Mediterrâneo, ao largo da Líbia, de Lampedusa, de Rodes, os gritos inaudíveis de centenas de náufragos, imigrantes clandestinos fugidos dos horrores das suas áfricas, das suas ásias. O grito desesperado dos afogados aqui tão perto.
É certo, temos de ir às causas para resolver o problema. Mas não percamos mais tempo.
Só se fala. Este é um problema à escala mundial. No imediato, é europeu, de cada país que constitui a Europa, velha, gasta, rabugenta.
A juntar aos do mar, milhares de outros que fogem a pé, na África subsariana, para os campos de refugiados, caminhos de sangue, gritos vermelhos, de horror, a pedir ao mundo um pedaço de pão, um lume de esperança, um pouco de dignidade. Paz.
Que humanidade é esta?

Somos todos responsáveis. Todos inflamamos o mundo. Deixamo-lo à beira de se incendiar. Nada fazemos para que as coisas avancem, para que melhorem. Não somos amigos uns dos outros, nem unidos. Estamos cheios de uma mesquinha embriaguez de individualismo e de inércia. E de poeira. Somos pouco empreendedores. Só com a língua, a botar faladura de tudo e de nada, é que não.

A evolução das espécies segue, na sua mutação. O processo é lento, levando, normalmente, milhares de anos. Mas a cada centenas de milénios, a evolução dá um salto qualitativo. Esperemos que seja uma evolução mentalmente mais limpa, mais tolerante, mais harmoniosa, menos desprendida. 

Eu não sei.
Vou andando.


*Os Lusíadas (IV: 95, 104, 94, citados por esta ordem), Luiz de Camões.

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