ANABELA BORGES |
Já tenho dito, neste espaço de reflexão,
que poucas actividades me dão tanta satisfação como ir a escolas enquanto
autora de histórias. Como também tenho dito, neste espaço de reflexão, que escrever
para crianças é uma aventura sem fim. Nessa linha de ideias, poder estar com
crianças é uma circunstância que me é oferecida, como um presente que mo
oferece a própria vida, apenas comparável a coisas boas.
As crianças
conseguem trazer a uma só conversa um mundo inteiro. À sua maneira, partilham,
de forma desprendida e pura, as poucas vivências e experiências que, positiva
ou negativamente, as marcam e, sobretudo, inventam significações para qualquer
situação: fazem-nos lembrar o mundo infantil que trazemos esquecido e outros
mundos que a nossa mente não quer lembrar, e fazem-nos esquecer outro tanto –
como num equilíbrio elementar que fosse da inteira responsabilidade da
Natureza. No seu mundo, uma criança permite-se encontrar soluções para tudo.
Ela alcança o que nos parece longínquo, vê o que não nos é transparente aos
olhos.
Conversar com
crianças, responder às suas perguntas, ouvir as suas ideias e sugestões é um
diálogo incessante, o que, também já o disse neste espaço, daria para escrever uma
história interminável.
Quando as
deixamos, depois de um encontro, levamos, a um tempo, a alma aquecida de afagos
e um embaraçoso desassossego, inevitáveis luzes e sombras da nossa frágil
condição humana.
Não me posso queixar no que toca a
encontros com crianças, tanto na alma, na parte afectiva, como na parte do
calendário. Tenho a agenda preenchida até ao final do ano lectivo.
Costumo dizer que enriqueço a cada
encontro. E o mês de Março foi, por
isso, muito enriquecedor.
Percorro caminhos envoltos por uma
natureza que acorda de um longo e rigorosos Inverno. Já despontam pontas
(muitas!) do que será a Primavera, já se abeiram dedos e afagos, verdes de
musgo, das estradas estreitas que percorro – esses prenúncios vivos.
Os caminhos que me conduzem não me
decepcionam:
- Como naquela bela manhã do dia 3, bem
passada, na E.B. 2/3 D. Manuel de Faria e Sousa, em Felgueiras, com duas
sessões com turmas de alunos do 5.º ano e alunos da Educação Especial. No fim
das sessões, como sempre de conversas interessantíssimas, houve um momento que
me marcou especialmente: uma menina, encorpada, já crescida, portadora de
paralisia cerebral, veio ter comigo no final, veio falar-me, beijar-me e
abraçar-me, dizer, “Gosto ‘as tuas histórias’. Beijinho”. Não pude deixar de
sentir uma enorme comoção, um aperto no peito e uma alegria imensa. Sempre tive
propensão para estas pessoas especiais, fazem-me lembrar a minha querida irmã,
que partiu já do mundo terreno, inocência pura. E creio que onde houver uma
dessas especiais pessoas, quero acreditar – pois é o que vejo – sempre, por
qualquer motivo, se dirigem a mim.
- 9:00 do dia 4, Centro
Escolar de Gandarela, Celorico de Basto. O caminho serpenteava estreito e a
descer, caminho húmido, cheio ainda de lembranças hibernais, musgos e árvores bastante
despidas de braços erguidos. Muito e muito caminho, tanto que tive de parar
para perguntar se ia bem. Que sim, disseram-me com um sorriso afável, que ainda
deveriam faltar cerca de 8 quilómetros. Encontrada a escola nos confins de um
lugar muito acolhedor, recôndito lugar, foi maravilhoso o encontro com alunos
do 1.º e 2.º anos. Houve histórias, conversas e cantigas. E como eles, tão
pequeninos, lêem tão bem! Cantaram-me as cantigas da minha infância, todas as
que envolviam animais, desde o lagarto na saia da Carolina às pombinhas da
Cat’rina. Professores fantásticos, mestres em conjugar feitios de gerações! No
final, mesmo na hora da despedida, uma pergunta tinha ficado para me ser
soprada ao ouvido, por uma aluna do 2.º ano, como um segredo só nosso,
perguntou-me ela: “Anabela, tencionas escrever até quando fores muito
velhinha?”. E eu, deliciada e atónita com o alcance da questão, “Sim”. O
sorriso veio-me rasgado nos lábios até me perder, literalmente, no caminho que
havia de me levar a Celorico e ter de pedir orientações outra vez. Fiquei a
pensar naquilo: a escritora Luísa Dacosta tinha morrido havia poucos dias, com
87 anos, e talvez, quem sabe, a menina tenha visto a notícia e tenha ficado
curiosa – se os escritores muito velhinhos também escrevem realmente.
- Dia 10, todo o dia
está reservado para o Centro Escolar de Idães, Felgueiras: alunos do
Pré-escolar, do 1.º Ciclo e um grupo da Educação Especial. Eu, no meu diálogo
incessante com os meus pequenos leitores, a fantasiar. Eles claramente a
entrarem na fantasia. Dou por mim a dizer que alguns dos bichos das fábulas que
escrevi teimam em entrar no meu saco e em acompanhar-me nas idas às escolas.
Mostro-lhes os bichos: por vezes, a ‘Girafa Giraflor’, por vezes, ‘A Avó Coruja’,
por vezes, ‘O Porquinho Corajoso’, por vezes, o ‘Grilo Pianista’. O encontro
correu lindamente, como era de esperar. No final, imbuído do espírito do
imaginário ali criado, um pequenito do Jardim Infantil eis que, seriamente, me
questiona: “Ó, Anabela, porque é que os bichos querem vir contigo?”. A minha vontade
interior, ao inesperado da questão, era não segurar um sorriso rasgado, mas
mantive a compostura, e arranjei resposta: “Porque eu acho que, tal como eu, os
bichos adoram encontros com meninos tão lindos como vocês.” Não obstante a
minha compostura, outra resposta se fez ouvir, vinda da plateia, de um outro
pequenito: “Ou foi porque o porquinho sabia que a coruja vinha e quis vir
também”. Aplauso geral para tanta imaginação! No final dessa sessão, todos os
alunos da Educação Especial, por sua iniciativa, vieram, um a um, dar-me um
beijinho, incluindo um rapaz, dos seus quinze anos, autista, que,
sussurraram-me as professoras, não estabelece contacto físico com ninguém. Como
poderão imaginar, trouxe o coração cheio!
Esse dia foi dos mais engraçados que
trago na memória, pois quando lemos a história do Porquinho Corajoso, e
fazíamos a voz da Cabra Cabrete, três vezes repetida, “Mée-mée-mée!”, havia um pequenino do Pré-escolar, que não teria mais
de três aninhos, adormecido de cansaço no colo da educadora, e quando ouvia
aqueles berros da Cabrete, entre o sono e o sonho, naquele mundo que ultrapassa
as linhas entre o real e o imaginário, acordava e dizia sozinho, depois de nós,
“Méee!”. Risota geral. E um
privilégio passar um dia assim!
- “Em Março, tanto durmo como faço”,
mas eu fiz mais, muito mais, do que dormir. Passei, ainda pelo Centro Escolar
da Mota, em Celorico de Basto; passei na escolinha de Torreira e na escolinha
de Freixo de Cima , ambas em
Amarante; passei na Biblioteca do Centro Escolar de Celorico de Basto. Aqui,
nesta última escola, também uma menina muito especial, aluna do 1.º Ciclo, me
namorou durante toda a sessão: ela olhava-me de uma forma especial. No final,
naquele momento em que eu estou rodeada de tantos meninos e meninas, lá veio
ela, menina especial, destacando-se como um anjo, uma aura lindíssima sobre
ela, dar-me aquele abraço tão forte e sentido.
Como, acima, referi, isto daria uma
história sem fim, porque isto é apenas o começo de tudo, isto faz parte do
ânimo que me preenche esses dias, essas viagens ao centro da imaginação – que
mais não é do que uma viagem ao âmago de mim – ao que sou, ao que não me sei
ser e ao que fui. E, houvesse mais tempo, tanto mais eu poderia fazer com essas
crianças! Nem vos conto. Mas deixo-vos a imaginar.
Como sempre, levei comigo palavras, histórias,
livros, aventuras, referências, experiências; partilhas, leituras. Mas nada
disto se compara aos afectos que recebi.
Eu não vos disse que vinha mais rica?
Entrámos no mês de Abril e só vos digo
que não menos actividades teremos pela frente. Venham as viagens às escolas, ao
imaginário da nossa razão. Em Abril, serão encontros mil.
A minha gratidão, meus leitores
pequeninos!
*Na fotografia: REGRESSAR A CASA DEPOIS
DE UMA DESSAS VIAGENS AO IMAGINÁRIO, COMO QUEM DIZ ÀS ESCOLAS.
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