segunda-feira, 20 de abril de 2015

A ESCRITA PARA QUEM CRIA

CLARA CORREIA
A meu ver, ou melhor dizendo (ou, ainda melhor, escrevendo), no meu sentir, a Escrita não existe ou, pelo menos, não tem razão de existir, sem o acto criativo, ou seja, dissociada da ficção, do universo pessoal (íntimo de quem escreve) ou, num maior número de textos do que autor e leitor suspeitaram, da mistura resultante de ambos: criação (de algo ficcionado) e recriação (da pessoa que é o autor).

As ideias, sendo a matéria prima de quem escreve, possibilitam infinitas formas de concepção, de “acabamentos” e de oferta do produto final que é o texto, ao leitor, seu consumidor; sim... um texto, um livro, que mais não é do que um grande texto (ainda que com certas especificidades), é um produto do trabalho do seu criador que, após semanas, meses, ou até mesmo uns poucos de anos, o dará por concluído... fruto da sua persistência, porque esse vulgarmente disseminado conceito de “inspiração”, cujas raízes advêm, provavelmente, da sobrevivência da mística poética de tempos idos, cai por terra logo nas primeiras linhas! Se o leitor souber responder à pergunta “sobre o que é que gostaria de escrever?”, então, esteja certo de que está inspirado; o resto, bem, o resto... é mero “suor mental”!

Quem escreve, quem cria, tudo pode! Decide o que acontece às suas personagens (cujos perfis também definiu) e tudo pode determinar acerca do rumo das suas vidas, enquanto “pessoas que agem” nos cenários das suas histórias. Das inesgotáveis emoções, perenes no papel, cada leitor “toma as que quer”!

Se se quiser definir o ser humano numa palavra (ou duas) dir-se-à, porventura, que é um ser “de emoções”... está na sua natureza, pelo que as histórias, ficcionadas ou não, com o seu poder evocativo de sentimentos, desde sempre fizeram, fazem e, ao que tudo indica, hão-de continuar a fazer parte da Humanidade e da sua História, seja na arte do teatro, da música, da dança, do cinema... da literatura! São inúmeras as interligações artísticas, como variadas são as adaptações da literatura ao grande écran, a partir de obras concebidas sem actores de carne e osso, sem operadores de câmara, sem equipas de realização e produção... mas apenas com um autor, ou autora. Se é verdade que, aos olhos do espectador, uma imagem vale por mil palavras, também é verdade que é graças às palavras que uma imagem nasce e vive na mente e imaginação do leitor!

Não é só o leitor que cumpre mais um pouco da “viagem”, que é a leitura, cada vez que pega no livro que anda a ler... penso que o autor também vive essa “viagem”, e julgo até que, como acontece com os actores, encarna cada personagem mas, ao contrário daqueles (num mesmo filme ou peça de teatro), precisa de estar constantemente a mudar de registo de personalidade, uma vez que todas as personagens, todos os perfis humanos intervenientes, dependem da versatilidade com que os manipula... e tanto mais vida, força e credibilidade eles têm quanto mais autonomamente existirem para lá do seu criador!... É que as personagens actuam, elas próprias, na trama/enredos que o autor para elas preparou.

Sendo que, até mesmo na mais delirante fantasia, é imperioso existir, no mínimo, um q.b. de credibilidade, a escrita/criação não pode deixar de lado a lucidez... sem, no entanto, prescindir de uma espécie de “estado alterado de consciência”, para se concretizar eficazmente.

Como autora (ou “escrevinhadora” de histórias), reconheço que, enquanto escrevo, vivencio frequentemente experiências impossíveis, ou muito pouco prováveis, de viver na vida real (quase visualizando-as numa tela imaginária), e que isso me facilita bastante a percepção do mundo sob diversas perspectivas e formas, sendo, também essa, uma razão pela qual a Escrita é, para mim, uma actividade tão sedutora... sempre diferente, enfim...


                                                                                  Escrever
                                                                
                                                                  É expulsar o pensamento
                                                                  Num parto ermo, silente,
                                                                  Libertar o sentimento,
                                                                  Fazer crescer a semente.

                                                                  É a alma derramar,
                                                                  Soltar o espírito alado,
                                                                  Com a palavra comungar
                                                                  Num compromisso sagrado.

                                                                  É espelhar o coração,
                                                                  Reflectir o próprio ser,
                                                                  É sublimar a razão,
                                                                  Tomar o verbo e tecer...                                

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