terça-feira, 21 de abril de 2015

A NECESSIDADE DE DECIDIR

REGINA SARDOEIRA
Há duas visões, acerca da humanidade e dos homens, que conflituam em mim. Por um lado, sou profundamente céptica e tenho um enorme desgosto quando observo os caminhos que, individual e socialmente, vamos seguindo, nós todos. Por outro, apraz-me descobrir reservas humanas, no sentido preciso de pequenos redutos, que ainda merecem o estatuto superior que costuma ser atribuído à nossa raça, em detrimento de todas as outras que consideramos inferiores.

Entre a pluralidade dos programas de televisão, há um pequeno grupo que me serve de referência, uma mínima e exclusiva percentagem das múltiplas ofertas dos múltiplos canais que merece, com bastante frequência, a minha atenção.

Gosto de ver documentários sobre a vida selvagem (bem sei que é um gosto extremamente partilhado) e não só admiro cada vez mais o mundo animal e a sua engenhosa racionalidade (sim, exactamente, racionalidade!) mas também todos aqueles humanos que, sensíveis e activos, lançam mãos a tarefas prodigiosas para os salvar da selvajaria e da perfídia…dos outros homens. 

Perceber que existem pessoas, por exemplo, capazes de libertarem tigres presos em armadilhas (cuja finalidade é matá-los ou amputá-los e realizar dinheiro com esses despojos, tornados troféus), levando-os consigo para locais criados para o efeito e ali proporcionar-lhes a vida, mesmo com deficiências físicas ou lesões que lhes retirarão para sempre o direito ao seu habitat, parece-me um forte indício de que o homem ainda tem dignidade. Servir de mãe e de pai a crias de leão, órfãos, porque lhes caçaram os naturais progenitores, tratá-los e dar-lhes afecto humano, sendo retribuídos com afecto leonino e, na altura própria, devolvê-los à selva, faz-me crer que a solidariedade, despojada de interesse, ainda habita entre os homens. Observar o modo cuidadoso e intenso com que uma equipa trata um pequeno pinguim ferido encontrado na praia, lhe analisa os danos físicos e psicológicos para, no fim, o reconduzir às origens e vê-lo, no seu andar característico, a dirigir-se, confiante, para o mar, deu-me a convicção de que os homens ainda não embotaram de vez, nem na totalidade, e que mesmo um minúsculo pinguim chama a si as atenções de especialistas e amadores, todos empenhados na reabilitação de uma vida. Saber que cães e gatos, mutilados em acidentes na estrada, sem as patas traseiras, por exemplo, não são meramente abatidos porque (argumenta-se) já não são, verdadeiramente, cães e gatos, e engendrar para eles próteses inverosímeis, com as quais, logo que recuperados, logo que sujeitos a um treino intensivo podem correr saltar e brincar como os outros da sua espécie, conduz a minha emoção a patamares superiores e faz-me ter fé ainda nos homens.

No entanto, vejo bem que se trata de uma faca de dois gumes: para que estes benfeitores se organizem e viabilizem vidas simples, atiradas para a doença ou para a extinção, é necessário perceber que, do outro lado, uma turba de malfeitores persegue e maltrata, de todos os modos possíveis, estes seres animados, presentes no ecossistema por razões que talvez não conheçam, conscientemente, mas que servem com denodo. E nenhum deles, por mais insignificante, é inútil, desprezível e dispensável, como talvez pensem os que os caçam ou torturam ou escravizam.

Que dizer de todos aqueles que possuem cães e os têm sempre amarrados no quintal? Porque têm eles um cão, que é um animal confiável e capaz de estabelecer uma relação com o dono, e depois o sujeitam a uma prisão perpétua ao ar livre e numa casota à sua medida? Vejo-os, diariamente, a esses cães, e olho-os nos olhos quando posso: e o que deles se desprende é uma enorme tristeza ou uma raiva ou um querer morder, esfarrapar quem deles se aproxima, querendo acarinhá-los. E os outros, abandonados pelas ruas, prontos a seguir quem lhes faz um aceno e, ao mesmo tempo, recuando quando nos aproximamos pois não sabem se os iremos afagar ou espancar!

A narração é longa, todos o sabemos, e nem é exactamente este o assunto que aqui me traz. Eu penso no homem, que a si mesmo atribuiu dons soberanos sobre toda a natureza (da qual depende), para a seguir a inviabilizar por completo com a sua inteligência mal orientada, com o seu génio mal aproveitado, com a sua razão, estulta até à irracionalidade. Olho a natureza e confrange-me, invariavelmente, o modo feio como se foram construindo vilas e cidades, à custa das florestas e dos campos, o modo torpe com que afogamos árvores, arbustos e flores, numa selva de cimento. E mesmo as casas que construímos são, no seu conjunto, um amontoado absurdo de mostrengos onde plantamos jardins e hortas, sujeitando as plantas à domesticação. 

Estava crente de que escreveria hoje um texto optimista, porque havia guardado imagens de homens e mulheres capazes de salvar o mundo; mas cedo percebi que um mundo que precisa de ser salvo tem, como inimigos ferozes, os outros homens e que, decerto, o número daqueles que salvam é bem menor do que o daqueles que destroem.

Dizem que a solidariedade é um valor. Mas se ela se enuncia, enquanto valor, é na justa medida em que as condições selváticas de uma sociedade que se diz racional criaram os horrores para os quais é necessário, depois, conceber paliativos. Logo, a solidariedade passa a ser um contra-valor, pois nasce do opróbrio humano e traveste-se de caridade, em que uns (os mais fortes) dão, de si, o que lhes sobra, a outros (os mais fracos).

Estas antíteses (também o sei) fazem parte da dinâmica da vida: igualmente vejo, nos tais documentários, a leoa que espreita a zebra, lhe faz o cerco e a caça, a chita que usa a sua velocidade para perseguir o veado que soçobra e lhe cai nas garras, a águia que, das alturas e no silêncio do seu voo planado, surpreende crias incautas de outros animais e as transporta nas garras para os seus ninhos nas alturas. Porém, não posso deixar de pensar que essa antítese da natureza é movida pela necessidade e que uma leoa ou uma chita ou uma águia não teriam razões para matar a zebra, o veado ou o cordeiro, se acaso eles não fossem a única condição do seu desenvolvimento. Presos ao determinismo da sua circunstância, as feras não têm outro recurso senão esta chacina (que nos incomoda, quando a vemos documentada); mas ela nunca é causa de extinção de espécies, porque o animal não caça por desporto, não mata para se divertir e, se precisa de lutar com os da sua espécie é ainda na necessidade de garantir a própria sobrevivência, marcando um território ou disputando uma fêmea.

Mas nós, que somos humanos e compreendemos a dinâmica antitética da vida, tínhamos obrigação de criar alternativas para a competição, para o combate, para o extermínio a que vamos sujeitando a natureza, para a consumpção a que subordinamos os que, de entre nós são mais fracos, para a guerra, sempre gratuita, dispensável e injusta, com a qual arruinamos gerações sucessivas. Queremos ser diferentes dos outros animais, afirmamos essa diferença quotidianamente, escrevemos livros e compomos sinfonias, erguemos, ufanos, a cabeça, únicos de entre os animais que somos capazes de manter a coluna erecta e marchar, pomposamente, apenas sobre os pés. E no entanto, estamos muito longe de alcançar a harmonia fecunda de um pássaro, ciente do que precisa de fazer no tempo certo, seja migrar ou reproduzir-se, de um enxame de abelhas, absolutamente coeso na diversidade consonante e complementar das suas funções, de um esquilo que sabe quando deve aprovisionar alimento, de uma sociedade de formigas absolutamente coesas, quais sinapses neuronais, no cumprimento do plano da sua existência.

E então, nesta nossa civilização superabundante de utensílios, mecanismos, máquinas e toda uma plêiade instrumental, criada depois do surto de arrebatamentos geniais, continuamos a debater-nos com a pobreza e a carência, com o ódio e a violência, com a desigualdade e a miséria, a todos os níveis que possamos imaginar.

A minha questão é a seguinte: será que, do baixio humano a que chegamos hoje e da selva perniciosa dos usurpadores, dos assassinos, das massas acéfalas que destroem o mundo, no qual, apesar de tudo, precisam de viver, esses grupos perdidos e quantas vezes ignorados que praticam a solidariedade ou vigiam os desprotegidos e violentados para os restituírem à vida, serão suficientes para se constituírem em promessa de uma natureza redimida? De uma humanidade verdadeiramente consciente do que significa a racionalidade com que se auto-apelida? 

Duas respostas acedem neste momento à minha consciência: não, não são suficientes, porque os predadores agigantam-se; e sim, são suficientes porque, de tanto insistirem, acabarão moldando as consciências. Da predominância de uma das respostas sobre a outra advirão ou o fim dos tempos ou a redenção.

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