Aprendi a nadar com o meu pai, na Praia Aurora, mais
conhecida popularmente, como Praia dos
Poços, pois era um local de captação de águas da então Vila de Amarante, onde foram feitos vários poços no Rio Tâmega e colocada a casa dos motores, para permitir o processo. Pertenço, talvez, à última geração de amarantinos que teve oportunidade de fruir o nosso rio, com uma qualidade das águas minimamente aceitável. Todos os da minha geração que, tal como eu, conheceram o Rio Tâmega nas mesmas circunstâncias, jamais poderão esquecer as memórias daquele tempo maravilhoso.
HÉLDER BARROS |
Nessa altura, não existiam ainda piscinas em Amarante e o rio era o ponto de encontro, concomitantemente, interageracional e interclassista, nas tardes quentes de verão. Amarante foi sempre uma cidade de Invernos húmidos e frios, contrastando com Verões quentes e abafados. E havia zonas belíssimas de afluência de gente às águas do Tâmega: Morleiros, Açudes, Paul, Azenhas, Florestal, Rossio, Arquinho, Campismo, Frariz; mas, o ponto central, era a Praia Aurora ou Praia dos Poços, até porque estava estrategicamente situada ao lado do antigo Parque de Campismo, da então Vila, o que permitia o convívio dos amarantinos com os campistas nacionais e estrangeiros.
Quando nos anos 80 construíram a Barragem do Torrão, a jusante de Amarante, começou o princípio do fim das fabulosas praias fluviais de Amarante, com a eutrofização das águas a acabar com a possibilidade de aproveitamento das praias da parte inferior de cidade e com um impacto ambiental brutal. No inverno, com o adensar dos nevoeiros matinais e no verão com a alteração da cor das águas, de um castanho-escuro para um verde-claro, passando por matizes intermédias de verdes artificiais, conferindo ao Rio Tâmega um aspeto pantanoso e pouco natural.
Em Amarante, apesar da tão propalada rede de esgotos com uma cobertura quase total a nível concelhio, a ETAR de então, não dava uma resposta cabal, nem de longe, nem de perto, fazendo com que uma parte significativa dos esgotos nem sequer fosse tratada, ou, no geral, não fossem corretamente tratados. Prova disso está na recente inauguração da ETAR de Passinhos, em Vila Caiz, Amarante; algo faltava... Os concelhos a montante também continuavam a verter de forma contínua os seus esgotos para a linha de água, diretamente, ou com tratamento deficiente, contribuindo para a intoxicação e para uma alteração artificial do ecossistema do rio.
Com a construção da Barragem de Fridão, o Rio Tâmega em Amarante ficará entre duas grandes paredes, sendo cada vez mais um lameiro de águas verdes, ou escuras, consoante a altura do ano. Muito do encanto que interpelou a mente poética de Teixeira de Pascoaes, passou pela forma como o nosso Rio Tâmega afetou a sua sensibilidade artística; as musas do rio deveriam andar por entre o arvoredo e os nevoeiros do mesmo, afetando o estro das pessoas mais sensíveis e brilhantes.
Muitos poderão considerar que, estas são questões menores, destruir um rio em nome da produção de energia, é um preço justo a pagar, pelo que o mais importante é produzir energia e capital a qualquer custo. Para esses, pouco importa a cultura, a marca indelével que o Rio Tâmega deixou em Amarante, cujo legado nesse domínio é incomensuravelmente maior, do que jamais poderemos imaginar: trata-se da matriz identitária de Amarante que está em causa!
O que interessa é o dinheiro que a produção de energia nos poderá trazer, a paisagem natural que valor tem para os burocratas que nos governam, esse património não é facilmente transacionável, não os satisfaz. Tudo o que não pode ser traduzido em euros de uma maneira fácil e rápida, com cotação positiva nos mercados de capitais, pouco valor tem na sociedade atual, que busca o lucro fácil, sem olhar a meios para atingir os seus fins materiais.
O Rio Tâmega faz parte da imagem telúrica que temos da Cidade de Amarante, trata-se do elemento do nosso património paisagístico e natural, mais importante, aglutinador, ou consensual, na sua omnipresença. Penso que, pelo menos, deveriam ser os amarantinos a decidir a sua alienação, total ou parcial. Uma imposição de morte lenta de um rio que, todo ele se traduz em vida, no seu curso natural, poderá ser considerada como que um atentado à honra, dignidade e património ecológico da população de Amarante.
Claro que aqui, o que mais conta, não são apenas, as nossas recordações daquele rio mágico, que eu e outras pessoas ainda temos marcadas, indelevelmente, na nossa memória. O que nós estamos a preparar para os nossos jovens, como herança natural e paisagistica, trata-se do maior atentado patrimonial que Amarante, em termos ambientais, jamais sofreu. Um rio que será emparedado, que nem poderá ser visto nalgumas partes da barragem de Fridão, designadamente, entre a barragem principal e a de bombagem, trata-se do pior de todos os cenários possíveis e imaginários, que nem num qualquer terrível pesadelo poderíamos prever.
As novas gerações serão dilapidadas de um património que, também lhes pertence por direito, mas que nós como permitimos tal dislate, teremos obrigatoriamente que assumir este odioso ónus, para todo o sempre. De pouco nos adiantará invocar a nossa ausência de culpa por falta de eventual acesso à tomada de decisão. Perdemos algo de forma irremediável, jamais nos poderão redimir, independentemente, do grau da nossa culpabilidade, não poderemos alijar a nossa responsabilidade, individual ou coletiva.
Amarante será amputada de uma forma cruel e permanente. O Rio Tâmega não é só de Amarante, em última análise, pertence ao património natural da humanidade. Amarante sempre teve uma ligação, quase umbilical, ao Rio Tâmega. Qualquer postal ou folheto só representa a nossa terra, com alguma verosimilhança, se incluir o nosso rio; afinal, Amarante é conhecida por ser a Princesa do Tâmega.
Quanto a mim, a construção de uma barragem mesmo em cima da cidade de Amarante, constitui-se como um crime com várias vertentes: ambiental, paisagística e humana. O Rio Tâmega tem uma componente humanizante, pois a sua relação com as pessoas foi sempre muito próxima e por isso aglutinadora de interesses e de pontos em comum. De inverno, os nevoeiros do Rio entram-nos pelas carnes até aos ossos e às vezes querem invadir-nos as casas; de verão, as suas águas e as sombras das árvores que o ladeiam, refrescam-nos o corpo e a alma. E saem gaivotas e guigas a passear ao sol, rio abaixo, rio acima… mas, as pessoas agora, querem cortar de vez, com o cordão umbilical de Amarante, abortando águas turvas e pantanosas…