quinta-feira, 30 de abril de 2015

ENTRE PAREDES DE LAMA

Aprendi a nadar com o meu pai, na Praia Aurora, mais conhecida popularmente, como Praia dos
HÉLDER BARROS
Poços, 
pois era um local de captação de águas da então Vila de Amarante, onde foram feitos vários poços no Rio Tâmega e colocada a casa dos motores, para permitir o processo. Pertenço, talvez, à última geração de amarantinos que teve oportunidade de fruir o nosso rio, com uma qualidade das águas minimamente aceitável. Todos os da minha geração que, tal como eu, conheceram o Rio Tâmega nas mesmas circunstâncias, jamais poderão esquecer as memórias daquele tempo maravilhoso. 

Nessa altura, não existiam ainda piscinas em Amarante e o rio era o ponto de encontro, concomitantemente, interageracional e interclassista, nas tardes quentes de verão. Amarante foi sempre uma cidade de Invernos húmidos e frios, contrastando com Verões quentes e abafados. E havia zonas belíssimas de afluência de gente às águas do Tâmega: Morleiros, Açudes, Paul, Azenhas, Florestal, Rossio, Arquinho, Campismo, Frariz; mas, o ponto central, era a Praia Aurora ou Praia dos Poços, até porque estava estrategicamente situada ao lado do antigo Parque de Campismo, da então Vila, o que permitia o convívio dos amarantinos com os campistas nacionais e estrangeiros.

Quando nos anos 80 construíram a Barragem do Torrão, a jusante de Amarante, começou o princípio do fim das fabulosas praias fluviais de Amarante, com a eutrofização das águas a acabar com a possibilidade de aproveitamento das praias da parte inferior de cidade e com um impacto ambiental brutal. No inverno, com o adensar dos nevoeiros matinais e no verão com a alteração da cor das águas, de um castanho-escuro para um verde-claro, passando por matizes intermédias de verdes artificiais, conferindo ao Rio Tâmega um aspeto pantanoso e pouco natural.

Em Amarante, apesar da tão propalada rede de esgotos com uma cobertura quase total a nível concelhio, a ETAR de então, não dava uma resposta cabal, nem de longe, nem de perto, fazendo com que uma parte significativa dos esgotos nem sequer fosse tratada, ou, no geral, não fossem corretamente tratados. Prova disso está na recente inauguração da ETAR de Passinhos, em Vila Caiz, Amarante; algo faltava... Os concelhos a montante também continuavam a verter de forma contínua os seus esgotos para a linha de água, diretamente, ou com tratamento deficiente, contribuindo para a intoxicação e para uma alteração artificial do ecossistema do rio. 

Com a construção da Barragem de Fridão, o Rio Tâmega em Amarante ficará entre duas grandes paredes, sendo cada vez mais um lameiro de águas verdes, ou escuras, consoante a altura do ano. Muito do encanto que interpelou a mente poética de Teixeira de Pascoaes, passou pela forma como o nosso Rio Tâmega afetou a sua sensibilidade artística; as musas do rio deveriam andar por entre o arvoredo e os nevoeiros do mesmo, afetando o estro das pessoas mais sensíveis e brilhantes.

Muitos poderão considerar que, estas são questões menores, destruir um rio em nome da produção de energia, é um preço justo a pagar, pelo que o mais importante é produzir energia e capital a qualquer custo. Para esses, pouco importa a cultura, a marca indelével que o Rio Tâmega deixou em Amarante, cujo legado nesse domínio é incomensuravelmente maior, do que jamais poderemos imaginar: trata-se da matriz identitária de Amarante que está em causa! 

O que interessa é o dinheiro que a produção de energia nos poderá trazer, a paisagem natural que valor tem para os burocratas que nos governam, esse património não é facilmente transacionável, não os satisfaz. Tudo o que não pode ser traduzido em euros de uma maneira fácil e rápida, com cotação positiva nos mercados de capitais, pouco valor tem na sociedade atual, que busca o lucro fácil, sem olhar a meios para atingir os seus fins materiais.

O Rio Tâmega faz parte da imagem telúrica que temos da Cidade de Amarante, trata-se do elemento do nosso património paisagístico e natural, mais importante, aglutinador, ou consensual, na sua omnipresença. Penso que, pelo menos, deveriam ser os amarantinos a decidir a sua alienação, total ou parcial. Uma imposição de morte lenta de um rio que, todo ele se traduz em vida, no seu curso natural, poderá ser considerada como que um atentado à honra, dignidade e património ecológico da população de Amarante.

Claro que aqui, o que mais conta, não são apenas, as nossas recordações daquele rio mágico, que eu e outras pessoas ainda temos marcadas, indelevelmente, na nossa memória. O que nós estamos a preparar para os nossos jovens, como herança natural e paisagistica, trata-se do maior atentado patrimonial que Amarante, em termos ambientais, jamais sofreu. Um rio que será emparedado, que nem poderá ser visto nalgumas partes da barragem de Fridão, designadamente, entre a barragem principal e a de bombagem, trata-se do pior de todos os cenários possíveis e imaginários, que nem num qualquer terrível pesadelo poderíamos prever.

As novas gerações serão dilapidadas de um património que, também lhes pertence por direito, mas que nós como permitimos tal dislate, teremos obrigatoriamente que assumir este odioso ónus, para todo o sempre. De pouco nos adiantará invocar a nossa ausência de culpa por falta de eventual acesso à tomada de decisão. Perdemos algo de forma irremediável, jamais nos poderão redimir, independentemente, do grau da nossa culpabilidade, não poderemos alijar a nossa responsabilidade, individual ou coletiva.

Amarante será amputada de uma forma cruel e permanente. O Rio Tâmega não é só de Amarante, em última análise, pertence ao património natural da humanidade. Amarante sempre teve uma ligação, quase umbilical, ao Rio Tâmega. Qualquer postal ou folheto só representa a nossa terra, com alguma verosimilhança, se incluir o nosso rio; afinal, Amarante é conhecida por ser a Princesa do Tâmega.

Quanto a mim, a construção de uma barragem mesmo em cima da cidade de Amarante, constitui-se como um crime com várias vertentes: ambiental, paisagística e humana. O Rio Tâmega tem uma componente humanizante, pois a sua relação com as pessoas foi sempre muito próxima e por isso aglutinadora de interesses e de pontos em comum. De inverno, os nevoeiros do Rio entram-nos pelas carnes até aos ossos e às vezes querem invadir-nos as casas; de verão, as suas águas e as sombras das árvores que o ladeiam, refrescam-nos o corpo e a alma. E saem gaivotas e guigas a passear ao sol, rio abaixo, rio acima… mas, as pessoas agora, querem cortar de vez, com o cordão umbilical de Amarante, abortando águas turvas e pantanosas…

quarta-feira, 29 de abril de 2015

SEXO COM ALUNO

PAULO SANTOS SILVA
Ponto prévio – esta crónica parte do princípio sagrado de qualquer estado de direito, a presunção de inocência de qualquer cidadão, até prova em contrário. Não pretendo com ela, nem acusar nem defender qualquer um dos intervenientes, uma vez que os factos que poderiam concorrer para qualquer uma destas posições ainda se encontram por provar. Pretendo, sim, refletir sobre alguns aspetos que considero importantes e que foram suscitados, quer pela notícia, quer pela entrevista da professora Liliana Costa à CMTV.

Comecemos, então, pelo princípio. O professor vê a sua conduta profissional regida pelo Estatuto da Carreira Docente. Este estatuto, na sua secção II – artigo 10º, define os deveres gerais do professor.
Nas alíneas c) e d) do artigo 10º - A, deveres para com os alunos, pode ler-se:

c) Promover o desenvolvimento do rendimento escolar dos alunos e a qualidade das aprendizagens, de acordo com os respetivos programas curriculares e atendendo à diversidade dos seus conhecimentos e aptidões;
d) Organizar e gerir o processo ensino-aprendizagem, adotando estratégias de diferenciação pedagógica suscetíveis de responder às necessidades individuais dos alunos;

Por outro lado, as alíneas a) e b) do artigo 10º - C, deveres para com os pais e encarregados de educação, lemos:
a) Respeitar a autoridade legal dos pais ou encarregados de educação e estabelecer com eles uma relação de diálogo e cooperação, no quadro da partilha da responsabilidade pela educação e formação integral dos alunos;
b) Promover a participação ativa dos pais ou encarregados de educação na educação escolar dos alunos, no sentido de garantir a sua efetiva colaboração no processo de aprendizagem;
Estamos, pois, perante conceitos que pela sua amplitude se tornam difíceis de concretizar uma vez que e a título de exemplo, estratégias de diferenciação pedagógica suscetíveis de responder às necessidades individuais dos alunos, é algo que permite muitas e variadas interpretações.

Atualmente, a avaliação dos alunos do ensino básico tem como suporte legislativo o Despacho Normativo nº 13/2014, de 15 de setembro. Este despacho normativo, regulamenta:
a) A avaliação e certificação dos conhecimentos adquiridos e das capacidades desenvolvidas pelos alunos do ensino básico, nos estabelecimentos de ensino público, particular e cooperativo, bem como os seus efeitos;
b) As medidas de promoção do sucesso escolar que podem ser adotadas no acompanhamento e desenvolvimento dos alunos, sem prejuízo de outras que o agrupamento de escolas ou escola não agrupada, doravante designados por escola, defina no âmbito da sua autonomia. 
No que respeita às medidas de promoção do sucesso escolar que podem ser adotadas no acompanhamento e desenvolvimento dos alunos, dizer que estas se encontram vertidas no artigo 20º da Secção VI e que se consubstanciam na elaboração de um Plano de Atividades de Acompanhamento Pedagógico. Este plano, por norma, é elaborado pelo Conselho Pedagógico e é constituído por duas partes distintas – uma primeira em que os docentes das disciplinas intervenientes no mesmo identificam as dificuldades demonstradas pelo aluno e uma segunda parte em que são definidas as medidas a implementar e que se dividem pelos três grandes intervenientes no plano, as que são da responsabilidade da escola e dos professores, as que são da responsabilidade do aluno e as que são da responsabilidade do encarregado de educação. Este plano que pode ser de turma ou individual, “é traçado, realizado e avaliado, sempre que necessário, em articulação com outros técnicos de educação e em contacto regular com os encarregados de educação”, ao mesmo tempo garante “aos alunos que revelem em qualquer momento do seu percurso dificuldades de aprendizagem em qualquer disciplina é aplicado um plano de acompanhamento pedagógico, elaborado pelo professor titular de turma em articulação com os restantes professores da turma, quando existam, no 1.º ciclo, ou pelo conselho de turma, nos 2.º e 3.º ciclos, contendo estratégias de recuperação que contribuam para colmatar as insuficiências detetadas”.

Aqui chegados, importa refletir sobre alguns dos aspeto do caso em concreto.

Sendo eu um adepto confesso da utilização das novas tecnologias da informação em contexto escolar, posso compreender a utilização da comunicação via mail ou através de plataformas como a Moodle, para troca de mensagens, envio de trabalhos, resolução de fichas e tarefas online e/ou esclarecimento de dúvidas. Já me custa, no entanto, a entender a disponibilização do número de telemóvel pessoal. Tanto mais que, como afirma na entrevista, o fazia a “alguns alunos de confiança”. Pergunta-se, com base em que critérios é que se define um aluno de confiança? Não estaremos, potencialmente, perante um caso de descriminação de alunos em favor de outros? Igualmente questionável, é o facto de os jantares de turma que promovem o espírito de solidariedade e união, terem efeito direto na melhoria das aprendizagens e dos resultados dos alunos. Nomeadamente quando terminam com os docentes a levar os alunos a casa na sua viatura. Não esquecer que estamos a falar de alunos de 14/15 anos e lembrar, também, que qualquer atividade realizada fora da escola carece de uma tomada de conhecimento e autorização prévias, por parte do encarregado de educação. Pergunta-se, também, se todas estas estratégias que a professora enumera, foram presentes e validadas pelos órgãos pedagógicos competentes, ou seja, grupo disciplinar, departamento curricular, conselho pedagógico,… Outra questão que foi levantada ao longo da entrevista, tem a ver com a disponibilização de tempo de almoço para dar explicações. Quem é (ou foi) professor, sabe perfeitamente que é bastante habitual esta situação acontecer, caso contrário muitas atividades que se realizam nas escolas não teriam condições para acontecer. É um facto, e isso também é referido na entrevista, que o fim de áreas curriculares não disciplinares como o Estudo Acompanhado, não veio trazer benefícios aos alunos. Bem pelo contrário. Uma das maiores dificuldades que os alunos têm e que era resolvida nesta área, tem a ver com o “saber como estudar”, para as diferentes disciplinas.

Claro que o paradigma social e educacional mudou de uma forma radical nos últimos anos, nomeadamente com a introdução das novas tecnologias. Esta mudança, veio tornar as pessoas mais próximas, deixando-as à distância de um clique. Também a linha que separa o que é público do que é privado se tornou mais ténue, sendo cada vez mais difícil de definir onde é que se encontra. Torna-se por demais evidente, que o fator motivacional dos alunos é um aliado precioso do professor que terá de ter a sabedoria e competência necessárias para lidar com as expectativas dos alunos, bem como com as suas alegrias, frustrações, emoções, etc.

Muitas outras questões se levantaram ao longo da entrevista, sendo algumas na minha opinião, bastante sensíveis. Uma vez que a prosa já vai longa, termino com mais um esclarecimento e um voto. O esclarecimento é de que “a suspensão preventiva é proposta pelo órgão de administração e gestão da escola ou pelo instrutor do processo e decidida pelo director regional de educação ou pelo Ministro da Educação, conforme o arguido seja docente ou membro do órgão de administração e gestão do estabelecimento de educação ou de ensino”, conforme consta do nº 7 do artigo 115º do Estatuto da Carreira Docente. Desconheço se foi essa a fundamentação, mas posso até entendê-la como uma forma de proteger os intervenientes no processo e acalmar o alarme social (penso que será esta a tradução mais correta para o termo sururu, tantas vezes utilizado na entrevista) que estas situações sempre provocam. O voto que pretendo formular, é que se proceda da forma mais célere possível ao apuramento cabal dos factos e, assim, possa ser concluído no mais curto espaço de tempo, o processo disciplinar que terá sido instaurado. A bem da verdade.

PS – A escolha do título da crónica decorre do rodapé que esteve presente no ecrã, ao longo de grande parte da entrevista. Deixo aos meus leitores a avaliação da qualidade jornalística da escolha do mesmo, por referência ao teor daquilo que foi dito na entrevista e que poderá ver aqui.

terça-feira, 28 de abril de 2015

NÃO FESTEJO O 25 DE ABRIL

REGINA SARDOEIRA
Estamos numa época de festejos, de comemorações, de ouvir discursos e assistir a debates, porque passou o dia 25 de Abril e aproxima-se o 1° de Maio. Sentimo-nos compelidos a evocar estas datas; e, aqueles de nós que ainda levam estas efemérides a sério, tomam as mais diversas atitudes, implícitas ou explícitas, calam-se, pensam e sentem, de si para si mesmos, ou falam pelas mesmas razões. 

Para muitos, as datas não passam de feriados e logo oportunidades para descontrair. Qual 25 de Abril, qual 1° de Maio? No meio ou no fim da semana de trabalho, em qualquer dia do mês ou do ano, um feriado vem sempre a propósito, não importa o motivo que o determina.

Quanto a mim, concordo plenamente. Não festejo o 25 de Abril, fico indiferente ao 1° de Maio, porque não é na festa que reconheço, hoje, os valores que, em 1974, criaram estes feriados em Portugal e congratulo-me por ainda serem dias livres, em que posso fazer o que me apetecer, porque me libertaram do trabalho. 

Escrevo estas palavras e sinto-me um pouco perplexa, pois até há pouco tempo rejubilava com os cravos vermelhos, com as canções emblemáticas destas duas datas tão próximas, no tempo e no significado e, mesmo quando não participava em qualquer acção pública, tinha os meus rituais privados de evocação. Este ano vivi o 25 de Abril com indiferença, não comprei cravos vermelhos, não ouvi as músicas de Abril e o 1° de Maio, que vem aí, agrada-me porque vai prolongar-me o fim de semana. E não venham dizer-me que, por esta ou por aquela razão, esta atitude é uma excepção relativamente ao modo de sentir dos portugueses. 

Estarei a proferir uma enorme heresia, eu, que sempre me coloquei bem à esquerda do espectro politico nacional, eu, que há alguns anos fui candidata a Presidente da Câmara de Amarante, eu, que desde sempre pautei a minha acção por iniciativas revolucionárias?

Sim, declaro-me herege, não vejo nenhuma razão para festejos, não acredito na maior parte das palavras dos que fazem ou escrevem discursos ou comentários, detestei ver, num relance, tanto desperdício de cravos vermelhos na Assembleia da República e, ainda mais, de os ver pendurados em certas lapelas. 

Por mim, se pudesse, varria tudo aquilo, mandava homens e mulheres para casa: almoçar ou fazer outra coisa qualquer. E ordenava o silêncio fúnebre e o luto nacional, pelo menos durante uma semana - esta, que medeia entre as duas datas. Aliás, destituía governo e assembleia, acabava com partidos, sindicatos e quejandos, permitia que o caos se instalasse e que cada um ficasse entregue a si mesmo: em suma, creio que, de uma hora para a outra, percebi que este circo lamentável, a que ainda ousam chamar democracia, não é absolutamente nada que valha a pena festejar e prolongar. 

Claro que não tenho poder para tanto; e já sinto os meus hipotéticos leitores a suspirarem de alivio ou a encolherem os ombros, por considerarem estes meus pensamentos um mero devaneio inconsequente. Sim, claro, eu compreendo. 

Há 41 anos foi instituída a democracia, começamos a poder votar, etc., elegemos muitos deputados, autarcas, etc., demos vivas, batemos palmas, manifestámo-nos, fizemos greves, etc., e, daqui a pouco tempo, vamos permitir que se monte de novo o espectáculo ridículo das assembleias de voto, das urnas em cima de mesas, às quais estarão sentados os representantes partidários e, muitos ou poucos, lá estaremos a fazer a cruz num boletim e a sentir que estamos a cumprir o nosso dever! Antes disso - muito antes, porque já começou esse outro espectáculo deprimente - permitimos a montagem do circo da propaganda eleitoral, vamos deixá-los falar, discutir e fingir que debatem; e a tal ponto vai ser bem orquestrado o empreendimento - a prática, a demagogia, a lábia e tudo o mais que foi sendo engendrado durante estas 4 décadas foi passando de geração em geração, cada vez mais apurada - que, no dia aprazado lá estaremos todos, muito compenetrados de que afinal, este ou aquele merece o nosso voto. Todos, não direi: mas os suficientes para que se sagre um vencedor e a farsa continue. 

É a antevisão deste cenário a curto prazo, esta espécie de quase adivinhação que me faz ter a certeza de que os portugueses vão entregar os seus destinos a incompetentes, a ladrões, a corruptos, a gente hipócrita e cínica que quer continuar a servir-se de nós para, de um modo ou de outro, prosperar, que me impede de festejar. Não se trata de saber se estamos melhor ou pior do que antes: penso, honestamente, que não podemos comparar os dois tempos, para aferir e tirar uma conclusão. A bem dizer, é estúpido e fútil aludir a semelhante comparação, porque a verdade é que estamos melhor e pior ao mesmo tempo, ou permanecemos tão ignorantes e ingénuos como aquele homem rústico que, ao ser entrevistado, à saída da mesa de voto nas eleições de 1975, quando lhe perguntaram como votou, respondeu que o fez à sorte, que não viu lá nenhum partido, porque o papel estava inteiro e que tão pouco sabia para o que estava a votar! A diferença é que ele, dos abismos da sua ignorância, quis sair de casa - juntamente com 92℅ da população portuguesa - e, sem saber muito bem como, ajudou a eleger os deputados que elaboraram e aprovaram a constituição que ainda hoje é a nossa lei fundamental; e nós, descontentes, indiferentes ou preguiçosos não vamos lá, sequer, ou, se vamos, também não compreendemos o que estamos a fazer, o que são dois actos inúteis, dado que nem são suficientes, em número, os que ficam, não chegando a inviabilizar, de facto, a farsa eleitoral, nem são representativos do todo os que vão lá e, tal como o ignorante de 1975, votam num papel inteiro, fazendo a cruz no local errado. Porque será, necessariamente, errado. Porque tem sido, obviamente, errado. E nenhum sinal tem sido dado de que o erro, cometido e repetido, vai desta vez ser finalmente corrigido. 

Não consigo compreender esta teimosia, esta absurda obstinação no perpetuar de um embuste. 

Nestes últimos dias ocorreu -me uma comparação (que nem sequer é original ou extraordinária). 

O povo gosta de futebol e o país, há muitos anos, dividiu-se na preferência por dois clubes. Pouco importa que um ou outro sejam ineptos, sofram derrotas ou percam campeonatos: o clube, eleito pelo adepto, é, em qualquer circunstância, sempre o preferido, o melhor. 

Como se trata de uma diversão, de um jogo, costumo encolher os ombros perante a devoção e a seriedade atribuídas a discussões, debates ou autênticas guerras clubistas. Mas, percebendo que o povo se comporta na política, exactamente como o faz quando está em causa o futebol e que, à semelhança deste, as escolhas e os fanatismos se centram apenas em dois blocos partidários, por mais ineptos que se revelem no acto de governar e por mais eleições que percam, numa alternância monótona, não posso deixar de preocupar-me. É que, sendo assim, jamais nos livraremos desses, que, sozinhos ou emparelhados, têm corrompido a democracia. 

E é por causa destas, e de muitas outras verificações que vou fazendo, que tenho hoje um desejo profundo de me isolar num canto qualquer, utópico, bem sei - e é por isso que, frequentemente me sinto muito melancólica -, um sítio, no meio do mar, da floresta ou no pico de uma montanha, onde nenhuma regra estulta me insulte a inteligência, nenhum dever absurdo me obrigue a tarefas inúteis, nenhum homem ou mulher perverso finja, perante mim, que deseja promover a minha qualidade de vida. 

Nessa ordem de ideias, e embora saiba que o 25 de Abril será sempre uma efeméride que recordará aos portugueses um acontecimento importante, capaz de lhes abrir uma nova era, não o festejarei como usei fazê -lo, enquanto tinha fé. Percebo que essa Revolução, cujo símbolo é uma canção e um cravo, foi arquivada nos anais da História e será narrada às crianças, como um feito do passado, sem qualquer relação com o presente, e que, por tão alienada no tempo, elas não compreenderão porque havia presos políticos e censura, porque eram homens e mulheres obrigados a viver clandestinamente ou a exilar-se no estrangeiro e porque se levantaram, um dia, os militares e depois o povo todo, para expulsar os opressores e começar a construir a liberdade. Ou compreendê-lo-ão bem demais porque o ciclo ter-se-á repetido, mesmo que com novos contornos. 

É uma crónica eivada de cepticismo, sei-o bem; mas a coerência obriga-me a tal, porque sei que só levando ao extremo o cepticismo, expandindo-o, universalizando-o, tornando-o a verdade absoluta de um tempo (este) poderemos recomeçar a crer. 

Uma vez na vida, questionem a fundo as vossas consciências e digam-me, depois, se não vêem nesta lucidez céptica, o único modo de retirar, enfim, as vendas.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

QUANDO AS MULHERES MATAM EM SÉRIE

CATARINA DINIS
É verdade, o tema que escolhi trazer aqui, está relacionado com as mulheres que cometeram assassinatos em série ao longo do último século. Sobre este plano, a frágil mulher, dá lugar a um ser cruel e desconhecido. Os assassinatos são cometidos mais frequentemente pelo sexo masculino mas existem algumas mulheres que não pensaram duas vezes antes de atacar as suas vítimas. A verdade é que existe uma série de assassinatos que comoveram a opinião pública independentemente da época em que sucederam. Comecemos por Joanne Dennehy, psicopata que matou 3 homens e foi sentenciada a cadeia perpétua em 2013. Chegou a confessar a um dos seus psiquiatras que sentia prazer em cada crime cometido. De seguida Jeanne Weber, que em 1908, foi declarada culpada de assassinato e foi declarada demente, no entanto estrangulou pelo menos 10 meninos, dos quais 2 eram seus filhos. Deixou a França em choque. Aileen Wuornos, cuja história foi levada ao cinema pelo filme “ Monster”, em que Charlize Theron interpretou esta mulher. Em 1988 Aileen matou pelo menos 7 dos seus clientes, torturando previamente um deles. Foi declarada culpada e condenada a morte. Tendo sido executada a 9 de outubro de 2002. Estonia, em 1912, Ivanova e Olga Tamarin, mataram mais de 40 pessoas. Atraíram as vítimas para a sua casa e prendiam-nas no sótão, e nunca mais de lá saiam. A polícia encontrou todo o tipo de instrumentos para levar a cabo os seus massacres.

Belle Gunness, uma norueguesa que em 1883 emigrou para os estados unidos, e se tornou conhecida como a viúva negra. Ela matou 2 dos maridos e várias dezenas de homens com quem se relacionou sentimentalmente e eram atraídos por um anúncio pessoal num jornal.

Beverly Allitt, a enfermeira pediatra que matou 4 meninos e tentou assassinar pelo menos 9 meninos no hospital de Lincolshire, Inglaterra, durante 59 dias em 1991. Foi condenada a 13 cadeias perpétuas.

Dana Sue Gray conhecida como a assassina em série de idosos e adita de compras. Usava os cartões de crédito das suas vítimas. Declarou-se culpada e foi condenada a prisão perpétua na California.

Maie Delfine LaLaurie, foi uma dama da sociedade que semeou o terror na cidade de Nova Orleans. Imensos testemunhos afirmaram que ela torturava os seus escravos, um desses exemplos é o de Delfine quando furiosa ter mandado atar o cadáver de uma menina escrava num poste e o ter chicoteado por repetidas vezes. Teve que fugir para Paris e acabou por morrer num acidente de caça.

Por fim Maria Catherina Swanenburg, a assassina com maior número de vítimas. Esta assassina em série holandesa matou pelo menos 27 pessoas mas crê-se que o número de vítimas seja 100 e tudo pelo dinheiro, em forma de seguros ou heranças. Conhecida por Goeie, matou 27 meninos doentes na sua aldeia natal. Estes foram as suas primeiras vítimas de ingestão de arsénico, supõe-se que as suas duas irmãs mais pequenas também foram mortas por ela. Foi declarada culpada e condenada a cadeia perpétua morrendo em 1915.
Pesquisa Wikipedia

Boas leituras… e uma boa semana

domingo, 26 de abril de 2015

DA LIBERDADE DE ESCREVER

MIGUEL GOMES
É comigo que o silêncio fala,
escuto
ainda que não o ouçam
os pobres olhares que dizem nada terem a ver.
Vidradas
as luzes bruxuleiam-se ao tecto
para se derramarem sem cuidado
nas noites que tentam iluminar.
Enquanto na caverna temem a vida vivendo
cá fora acautela-se e emoldura-se o vento
e até a estupidez se cala,
porque ao longe vem o silêncio
e é comigo que ele fala…

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Ainda que me doa
o acordar
é pelo sonho que me vivo,
no momento de me ter escrito
separar o vulgar
de um sopro inaudito
cá te almejo por entre mim
fugindo
do destino que soçobra altivo,
és planeta que se expande
num botão de Universo que plantei no meu jardim.

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Intriga-me a quietude do silêncio
o amadurecer do êxtase
a órbita orbitada
inefável
pela noite (sempre, sempre a noite)
que se desliga do mundo para se ligar
à vida (sempre, sempre a vida)
enquanto as perolazitas a que chamam estrelas
rebolam e se enfiam olhos adentro
como se os dias chorassem para dentro de nós.

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Que me lembre, sempre, eu, de ser pobre,
adormecer desnudado de mim,
de não distinguir ouro de cobre,
mundano
contra o vil, espartano,
cair por olhar as estrelas
e seguir adiante, ainda que ignorante
do brilho soçobrante das velas,

no meu destino pelo infinito, errante.

sábado, 25 de abril de 2015

MEMÓRIAS DE ABRIL


Decorridos 41 anos, para uns parece um sonho longínquo, envolto em belos ideais destroçados e, para
JORGE NUNO
outros, um pesadelo que lhes destruiu as suas vidas e que os fez passar por privações, mantendo o azedume contra quem fez a descolonização e a mudança de políticas e de regime, partilhando igualmente da preocupação e vontade daqueles que, externamente, não pretendiam que a “Revolução dos Cravos” vingasse em Portugal e que tudo fizeram para que assim acontecesse. Hoje, são evidentes os sinais de desagrado e de que algo não terá correspondido ao esperado. Pelo quarto ano consecutivo, os militares da Associação 25 de Abril recusaram estar presentes na cerimónia oficial e protocolar na Assembleia da República, com o argumento dos “crescentes e continuados desvios às esperanças e valores de abril”.

Como estudante em Coimbra, de 1968 a 1971, vivi a ambiência das lutas estudantis, largamente influenciadas pelo movimento francês e pelos ideais de liberdade e igualdade. Tinha plena consciência do regime ditatorial em que vivia, e que se opunha, por razões óbvias, à democracia. Cedo me apercebi que havia canções proibidas e que a canção era uma arma – e se andasse de barbas e com uma viola, seria um alvo facilmente identificável… e a “silenciar”, pois tinha a experiência do desligar forçado da corrente elétrica quando ousava tocar, em público, a “Trova do Vento que Passa”… sem letra e em ritmo de valsa-jazz, para disfarçar –. Sabia que havia exilados políticos, crimes [de sangue] políticos sem castigo, bufos da PIDE/DGS e uma guerra nas “províncias ultramarinas”, que parecia infinita, que absorvia muitos recursos financeiros ao país e que custava a vida a muitos homens portugueses, que iam cumprir uma missão em defesa da “Pátria” – dizia-se.

Ingressei no exército para cumprir o serviço militar obrigatório, ainda em plena ditadura, com Marcello Caetano na presidência do Conselho [de Ministros] a tentar fazer umas tímidas reformas, que depressa foram rotuladas de “primavera marcelista”, mas que não eram do agrado dos defensores do Estado Novo. Apesar das tentativas de Marcello Caetano em explicar as suas políticas e ideias para o país, através do programa semanal na RTP, intitulado “Conversas em Família”, a verdade é que se via impotente, face a quem se opunha a essas reformas, como também não correspondiam às expetativas de quem esperava uma maior abertura política, com eleições livres, e uma maior liberalização da economia.

Encontrava-me em funções no Gabinete de Estudos do quartel do CICA 2, na Figueira da Foz, quando em finais de setembro de 1973 tomei conhecimento que se estaria a preparar um movimento de militares do exército, que se alargaria a outros ramos das Forças Armadas, e que poderia derrubar o governo de Marcello Caetano. Em outubro desse ano – mês em que fui transferido para o BC3 em Bragança, a meu pedido –, ouvi rumores que estaria eminente um golpe de estado de extrema-direita, encabeçada por alguns generais, onde se destacava Kaúlza de Arriaga. Soube do fracasso da missão de uma coluna militar do RI5 das Caldas da Rainha, que chegou às portas de Lisboa, em 16 de março de 1974, sendo enviados alguns desses militares, de castigo, para o BC3 onde me encontrava e com quem falei sobre esta operação falhada. Durante a madrugada do dia 25 de abril, ainda não tinha raiado o dia, havia ordem de recolher urgente à unidade, ordem dirigida a todos os militares que pernoitavam fora do BC3, encarregando-se disso, diretamente, o capitão responsável pela segurança. Tive conhecimento que tinha vingado o início da operação militar e que o nosso comandante estava temporariamente afastado de funções. Perguntei, por diversas vezes, se estávamos com as “tropas rebeldes” ou com as “tropas fieis ao regime” e não obtive respostas. Certezas? Apenas a de abrirmos trincheiras no interior do quartel, numa posição defensiva, e de enviarmos um carro de transmissões para espiar o quartel de Chaves (BC 10). Sempre agarrado ao pequeno transístor, vou sentindo que ao fim da manhã já se começava a respirar de alívio, pois o comunicado do MFA anunciava que a situação estava a ficar dominada e que a libertação estava para breve. Demoraram várias horas até à confirmação. Por volta das 18h00, o general António de Spínola, na companhia do capitão Salgueiro Maia, apresentaram-se no Quartel do Carmo, em Lisboa, para negociar a rendição de Marcello Caetano, a pedido deste – pois só se renderia perante um militar de alta patente –, o que veio a acontecer. Apenas nas primeiras horas do dia 26 de abril é que foi dada a conhecer a Junta de Salvação Nacional, que proclamou António de Spínola como o seu presidente. Nesse dia, fui com um grupo de militares ao edifício onde estava instalada a Legião Portuguesa, na zona histórica da cidade de Bragança, e carregámos caixas com armas e munições, livros, documentos, mobiliário e diverso equipamento pertencente àquela organização, que transportámos para o quartel. Nesse mesmo dia ouço o comandante, já em pleno exercício de funções, dizer que “sempre, desde o primeiro instante, estivemos com o Movimento das Forças Armadas”. Logo a seguir, fui incumbido de uma missão: partir com um grupo de militares para a zona do Douro Internacional e montar a segurança à barragem do Picote, impedindo qualquer operação de sabotagem a esta central hidroelétrica.

Fui-me apercebendo de anteriores movimentações de militares noutras zonas do país, com especial atenção à Figueira da Foz, de onde tinha saído há poucos meses, e que teve um papel importante na madrugada de 25 de abril de 1974, mais concretamente por volta das 03h00. Foi aí que se deu a concentração de tropas, no chamado “agrupamento norte”, e que envolveu as tropas aquarteladas no RAP 3 e CICA 2 da Figueira da Foz, a que se juntaram as do RI 10 de Aveiro e, um pouco mais tarde, as do RI 14 de Viseu, que se movimentaram em direção a Leiria e a Peniche, tendo em vista ocupar a prisão política. Tinha sido aconselhado, por um militar de carreira, para que eu [na tropa] fizesse por “passar despercebido e não ter castigos nem louvores”. Mas não tenho dúvidas, caso estivesse no CICA 2, sairia com as tropas em direção a Peniche, que sabia ter presos políticos e uma PIDE/DGS armada, pelo que arriscaria um castigo ou até a própria vida.

No 1.º de maio de 1974, num calmo e dia lindo, assisti, embevecido, à gigantesca manifestação popular em Lisboa, através do meu pequeno transístor, enquanto me encontrava ainda na barragem do Picote e a ser muito bem tratado pelo pessoal em serviço na hidroelétrica. Poucos dias depois, foi a impaciência de repetidos telefonemas para o quartel, que não estavam a resultar. Finalmente, a autorização para ser substituído e a dos restantes militares sob o meu comando. Depois, a licença militar que me permitia ir casar a Coimbra, no dia 11 de maio, numa altura em que a viagem de comboio era de sol a sol, ou melhor, saía-se cedo, ainda de noite, e chegava-se já de noite.

Já casado e ainda militar, assisti, num pavilhão coberto em Bragança, ao boicote da Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA, que pretendia esclarecer e conquistar as populações, particularmente as do interior rural, para um projeto revolucionário para o país e, assisti, pouco depois, ao assalto e à destruição, através de fogo na via pública, da biblioteca e mobiliário do Partido Comunista – que se tinha instalado na avenida João da Cruz –. Assisti, no início do período revolucionário, ao emergir de alguns “heróis” improváveis. Nove meses depois estava na condição de civil e envolvido numa campanha de alfabetização, junto de colegas da reparação naval.

Decorridos 41 anos, olho e vejo um país bem mais moderno, sendo pioneiro mundial, ou na linha da frente, em várias áreas. Se sentimos retrocessos em determinadas conquistas de abril, particularmente na área social, com o aumento dos índices de pobreza, de nada resulta ficarmos à espera que alguém resolva. Os militares fizeram o que tinha a fazer em 1974, numa determinada conjuntura e com a Guerra do Ultramar no horizonte. Agora, resta a sociedade civil. Já há muitos anos que acredito mais na democracia participativa do que na democracia representativa. Se temos ideais, se não estamos satisfeitos com o que temos, com o que somos e com quem nos representa, só temos que nos mexer, organizar e coletivamente promover as transformações que sentimos necessárias à nossa volta. 


Gostei de rever estas Memórias de Abril, ficou a experiência, mas não vivo agarrado ao passado. Escreveu o grande poeta Camões:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades”.


Para a frente é o futuro, e ele está nas nossas mãos!

PORQUE ABRIL É LIBERDADE


CATARINA DINIS
Abril traz consigo o cheiro da liberdade, da revolução portuguesa. Uma revolução florida da qual nos devemos orgulhar e acarinhar. Em especial esse grupo de homens e mulheres que lutaram afincadamente e com convicção. Abril foi construído em sonhos, arquitectado na coragem e vivido com liberdade. Apesar de eu ter nascido depois de essa data, considero – me uma filha da liberdade. Por vezes fico triste com o estado da nossa nação... Caminhos por caminhos turvos e devíamos amar mais a nossa pátria, adormecer nos seus braços… 25 de Abril é o marco da nossa história, mais forte que um feriado. É uns caminhos dos caminhos do nosso passado que escolhemos para viver sem a opressão da ditadura do Estado Novo. Neste dia o cravo é mais belo ainda, recordando os “ cravos” vermelhos” que em 1974, as armas carregavam. De pensar que o cravo nesses tempos era uma flor barata… tem ainda mais força que o cravo seja o símbolo desta liberdade. Simples e do povo.


REVOLUÇÃO

Como casa limpa 

Como chão varrido 
Como porta aberta

como puro inícío 

Como tempo novo 
Sem mancha nem vício 

Como a voz do mar 

Interior de um povo 

Como página em branco 

Onde o poema emerge 

Como arquitectura 

Do homem que ergue 
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen in O nome das coisas (I – II) 1977

sexta-feira, 24 de abril de 2015

O PORTO ESTÁ NA MODA

A vida tem destas grandes ironias: durante décadas os portuenses ironizavam com os lisboetas
GABRIEL VILAS BOAS
dizendo que Lisboa era a capital da boa vinda, por oposição ao Porto, que era a capital do trabalho; hoje o Porto funda a sua economia no turismo! E ainda bem que o faz, pois a cidade tem enormes potencialidades para o turismo, mas convém não exagerar.
O Porto é hoje uma cidade muito diferente daquelas que existia há 10/15 anos e que ainda existe nas nossas cabeças. A economia da cidade assenta no turismo. As viagens low-cost e o prazer de viajar que tomou conta das pessoas de todo o mundo, fizeram da cidade do norte de Portugal um destino de eleição para quem já conhecia as principais cidades europeias.
A cidade invicta tornou-se rapidamente numa cidade da moda, sendo visitada diariamente por milhares de turistas, que ficam pelo Porto e 48 a 72 horas e saem maravilhadas com a paisagem, o rio, a comida, o vinho, alguns monumentos e, claro, as pessoas. Gastam entre trezentos a quinhentos euros e voltam, porque ficam com a certeza de que há ainda muito que ver e sentir.
E como conseguiu o Porto esta mudança repentina de vida? Mudou de «chip» e mudou de pessoas, aproveitou as circunstâncias e fez da crise uma oportunidade. A primeira coisa que esteve na base desta grande mudança foi perceber que eram os jovens aqueles que mais viajavam e por isso a cidade devia estar preparada para lhe satisfazer os caprichos mais básicos. Existe a Ribeira e o cais de Gaia, mas havia um público diferente por satisfazer e o austero Rui Rio compreendeu isso e abriu as portas das livrarias para uns copos pela noite dentro. Como a zona estava deserta de habitantes houve poucas reclamações quanto ao ruído.
A máquina registadora do Porto retomava a sua atividade mas precisava de novos operadores. Gente habituada a viajar, a falar línguas, a não censurar quem gasta em lazer. Pessoas que trocaram a oferta do pitoresco pela oferta gourmet. Claramente renovou-se o estilo de fazer turismo. Aproveitou-se os produtos, a hospitalidade, mas a decoração mudou, os menus foram substituídos, o atendimento faz-se de maneira muito diferente.
A nível hoteleiro o Porto não estava preparado para este fast-turism, mas rapidamente se ajustou e agora corre o risco de se desajustar, mas em sentido contrário, de tal modo que antevejo que em breve entrará em cura de emagrecimento. As dormidas aumentaram de 67 euros para 114, por noite, em parcos seis meses!
Hoje abrem hotéis de charme em vários pontos da cidade, os hostels nascem como cogumelos e casas particulares voltadas para o turismo tornaram-se na mais recente e lucrativa atividade económica da cidade. A renovação do depauperado parque imobiliário vai chegar por onde menos se espera.
Tudo isto são boas notícias e devemos estar satisfeitos com elas. Dentro das nossas possibilidades devemos aperfeiçoar a promoção e a oferta, tornando a cidade cada vez mais atrativa. Contudo, é necessário olhar em perspetiva e refrear os ímpetos pueris.
O Porto é cidade da moda do turismo internacional e não uma cidade âncora do turismo internacional como é o caso de Paris, Roma, Veneza, Florença, Barcelona, Madrid, Londres, Amesterdão, Nova Iorque. E todos sabem o que acontecem às modas: passam. Haverá um momento em que os turistas escolherão outras paragens e o afluxo de turistas diminuirá. Nessa altura o Porto não pode ser naquilo em que se está a tornar: completamente dependente do turismo.
A cidade não pode abandonar outras áreas económicas. Deve reforçar os serviços e comércio, criando lojas onde os produtos nacionais e locais saibam emparceirar com produtos doutros países; deve oferecer cultura que vá além de livros, criando companhias de teatro e dança de qualidade, com uma programação capaz de atrair também os turistas. Há uns anos a companha de Ballet da Gulbenkian ficou sem trabalho, seria uma ótima medida convidá-la a instalar-se na cidade e a desenvolver projetos que se adequassem ao novo público da cidade.
Falta à cidade um grande museu e fazer aquilo que o Museu Nacional de Arte Antiga já faz: intercâmbio com coleções doutros grandes museus europeus.
            A oportunidade é única e exige o melhor de todos. Os ganhos obtidos até ao momento devem ser reinvestidos, tentando melhorar a oferta e promover outras áreas geográficas próximas, nomeadamente o Minho e o Douro.

Mais do que estar na moda, o Porto tem de não passar de moda!

quinta-feira, 23 de abril de 2015

VOU ANDANDO

ANABELA BORGES
Ainda agora aqui cheguei.
Deixem que me acomode melhor. Ver melhor. Observar melhor. Pensar. Reflectir sobre.
Ainda agora aqui cheguei.

Já falaram bem e mal do Herberto Helder, bem e mal do Manoel de Oliveira, bem e mal do Günter Grass. Já se digladiaram, porque todos eram Charlie mas uns eram mais do que outros. Já disputaram posições, porque uns acharam bem a prisão preventiva do ex-primeiro ministro e outros classificaram o acto como o maior erro judicial de todos os tempos. Já consideraram o partido de Tsipras o melhor partido do mundo, a salvação da Grécia e da Europa. Já falaram mal de todo o autor português que tenha menos de 60 anos. Falam mal de todo o artista que ganha fama: falam mal do Peixoto, do Mãe, da Vasconcelos. Falam mal de qualquer um. É assim que fazem cultura. Misturam tudo, tudo no mesmo saco. Eu digo, “ingratos”. Já se reuniram num círculo fechado de aço para, entre si, se elogiarem e auto-elogiarem, muitas das vezes com as invejas uns dos outros, como ratas velhas, escondendo trapaças por detrás das orelhas. E como aquilo é um círculo fechado, um bicho auto-sustentável há que continuar o caminho da fingida devoção. Todos são muito bons em decidir o melhor e o pior das coisas. E eu deliro com tudo o que diga respeito a génios (que não acredito na sua existência) e aos rótulos “o melhor”, “o maior”, “o mais belo”, “o pior”. “Ingratos”, eu digo. Eu digo, “Esperem. Não se precipitem”. Mas não, não me adianta pedir calma a ninguém. Ninguém tem calma. É tudo desenfreado. Tudo fala de enfiada. Não pelos meios-termos, as meias-medidas, que talvez trouxessem o mundo mais acomodado de igualdades, sem tanta assimetria.

Ali ao lado, a mulher, na máquina da verdade, assegura que nunca roubou o cordão de ouro da sua mãe. A máquina diz que é verdade. Está safa. Já não será apelidada de ladra. A máquina é que sabe. As máquinas têm sempre razão.
E eu penso, “Muitos de nós vós deveríeis ir à máquina da verdade”. 

Lembro-me, por exemplo – lembro-me muitas vezes – que a Agustina Bessa-Luís ainda está viva e não divulgam a obra dela, não fazem programas sobre ela, não falam nela, no que é e no que foi. Fazem-na esquecida de existir ainda. As jovens gerações não lhe conhecem nem nome nem obra. E eu penso, “O que dirão da Agustina quando ela morrer?”.
 
Esse bicho pavoroso que se auto-alimenta é um dos escafandros que contribui para o estado em que a cultura se encontra-Não-se-encontra. Não aceitam nada de novo. Não acreditam em nada, só para serem conta tudo. Esses Velhos do Restelo, a dizerem «[…] Ó glória de mandar! / Ó vã cobiça […] // Chamam-te ilustre, chamam-te subida, / Sendo dina de infames vitupérios; / Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana![…]»*. Esse mesmos: «[…] um velho d'aspeito venerando, / Que ficava nas praias, entre a gente, / Postos em nós os olhos, meneando / Três vezes a cabeça, descontente, / A voz pesada um pouco alevantando […]».* Esse mesmos. Muitos velhos do restelo.

Aqui ao lado, alguém com os dizeres “Je suis Charlie” escritos na testa, diz, com indignação, que somos todos Charlie, mas ninguém olha aos Quenianos assassinados na universidade. Que ninguém faz nada pela situação catastrófica na Síria. Ninguém pelos raptos de tantas meninas. Diz, “Pois, porque o Charlie é já aqui ao lado e o Quénia fica muito longe”. 
Logo de seguida, todos vemos, mesmo aqui ao lado, no Mediterrâneo, ao largo da Líbia, de Lampedusa, de Rodes, os gritos inaudíveis de centenas de náufragos, imigrantes clandestinos fugidos dos horrores das suas áfricas, das suas ásias. O grito desesperado dos afogados aqui tão perto.
É certo, temos de ir às causas para resolver o problema. Mas não percamos mais tempo.
Só se fala. Este é um problema à escala mundial. No imediato, é europeu, de cada país que constitui a Europa, velha, gasta, rabugenta.
A juntar aos do mar, milhares de outros que fogem a pé, na África subsariana, para os campos de refugiados, caminhos de sangue, gritos vermelhos, de horror, a pedir ao mundo um pedaço de pão, um lume de esperança, um pouco de dignidade. Paz.
Que humanidade é esta?

Somos todos responsáveis. Todos inflamamos o mundo. Deixamo-lo à beira de se incendiar. Nada fazemos para que as coisas avancem, para que melhorem. Não somos amigos uns dos outros, nem unidos. Estamos cheios de uma mesquinha embriaguez de individualismo e de inércia. E de poeira. Somos pouco empreendedores. Só com a língua, a botar faladura de tudo e de nada, é que não.

A evolução das espécies segue, na sua mutação. O processo é lento, levando, normalmente, milhares de anos. Mas a cada centenas de milénios, a evolução dá um salto qualitativo. Esperemos que seja uma evolução mentalmente mais limpa, mais tolerante, mais harmoniosa, menos desprendida. 

Eu não sei.
Vou andando.


*Os Lusíadas (IV: 95, 104, 94, citados por esta ordem), Luiz de Camões.

terça-feira, 21 de abril de 2015

A NECESSIDADE DE DECIDIR

REGINA SARDOEIRA
Há duas visões, acerca da humanidade e dos homens, que conflituam em mim. Por um lado, sou profundamente céptica e tenho um enorme desgosto quando observo os caminhos que, individual e socialmente, vamos seguindo, nós todos. Por outro, apraz-me descobrir reservas humanas, no sentido preciso de pequenos redutos, que ainda merecem o estatuto superior que costuma ser atribuído à nossa raça, em detrimento de todas as outras que consideramos inferiores.

Entre a pluralidade dos programas de televisão, há um pequeno grupo que me serve de referência, uma mínima e exclusiva percentagem das múltiplas ofertas dos múltiplos canais que merece, com bastante frequência, a minha atenção.

Gosto de ver documentários sobre a vida selvagem (bem sei que é um gosto extremamente partilhado) e não só admiro cada vez mais o mundo animal e a sua engenhosa racionalidade (sim, exactamente, racionalidade!) mas também todos aqueles humanos que, sensíveis e activos, lançam mãos a tarefas prodigiosas para os salvar da selvajaria e da perfídia…dos outros homens. 

Perceber que existem pessoas, por exemplo, capazes de libertarem tigres presos em armadilhas (cuja finalidade é matá-los ou amputá-los e realizar dinheiro com esses despojos, tornados troféus), levando-os consigo para locais criados para o efeito e ali proporcionar-lhes a vida, mesmo com deficiências físicas ou lesões que lhes retirarão para sempre o direito ao seu habitat, parece-me um forte indício de que o homem ainda tem dignidade. Servir de mãe e de pai a crias de leão, órfãos, porque lhes caçaram os naturais progenitores, tratá-los e dar-lhes afecto humano, sendo retribuídos com afecto leonino e, na altura própria, devolvê-los à selva, faz-me crer que a solidariedade, despojada de interesse, ainda habita entre os homens. Observar o modo cuidadoso e intenso com que uma equipa trata um pequeno pinguim ferido encontrado na praia, lhe analisa os danos físicos e psicológicos para, no fim, o reconduzir às origens e vê-lo, no seu andar característico, a dirigir-se, confiante, para o mar, deu-me a convicção de que os homens ainda não embotaram de vez, nem na totalidade, e que mesmo um minúsculo pinguim chama a si as atenções de especialistas e amadores, todos empenhados na reabilitação de uma vida. Saber que cães e gatos, mutilados em acidentes na estrada, sem as patas traseiras, por exemplo, não são meramente abatidos porque (argumenta-se) já não são, verdadeiramente, cães e gatos, e engendrar para eles próteses inverosímeis, com as quais, logo que recuperados, logo que sujeitos a um treino intensivo podem correr saltar e brincar como os outros da sua espécie, conduz a minha emoção a patamares superiores e faz-me ter fé ainda nos homens.

No entanto, vejo bem que se trata de uma faca de dois gumes: para que estes benfeitores se organizem e viabilizem vidas simples, atiradas para a doença ou para a extinção, é necessário perceber que, do outro lado, uma turba de malfeitores persegue e maltrata, de todos os modos possíveis, estes seres animados, presentes no ecossistema por razões que talvez não conheçam, conscientemente, mas que servem com denodo. E nenhum deles, por mais insignificante, é inútil, desprezível e dispensável, como talvez pensem os que os caçam ou torturam ou escravizam.

Que dizer de todos aqueles que possuem cães e os têm sempre amarrados no quintal? Porque têm eles um cão, que é um animal confiável e capaz de estabelecer uma relação com o dono, e depois o sujeitam a uma prisão perpétua ao ar livre e numa casota à sua medida? Vejo-os, diariamente, a esses cães, e olho-os nos olhos quando posso: e o que deles se desprende é uma enorme tristeza ou uma raiva ou um querer morder, esfarrapar quem deles se aproxima, querendo acarinhá-los. E os outros, abandonados pelas ruas, prontos a seguir quem lhes faz um aceno e, ao mesmo tempo, recuando quando nos aproximamos pois não sabem se os iremos afagar ou espancar!

A narração é longa, todos o sabemos, e nem é exactamente este o assunto que aqui me traz. Eu penso no homem, que a si mesmo atribuiu dons soberanos sobre toda a natureza (da qual depende), para a seguir a inviabilizar por completo com a sua inteligência mal orientada, com o seu génio mal aproveitado, com a sua razão, estulta até à irracionalidade. Olho a natureza e confrange-me, invariavelmente, o modo feio como se foram construindo vilas e cidades, à custa das florestas e dos campos, o modo torpe com que afogamos árvores, arbustos e flores, numa selva de cimento. E mesmo as casas que construímos são, no seu conjunto, um amontoado absurdo de mostrengos onde plantamos jardins e hortas, sujeitando as plantas à domesticação. 

Estava crente de que escreveria hoje um texto optimista, porque havia guardado imagens de homens e mulheres capazes de salvar o mundo; mas cedo percebi que um mundo que precisa de ser salvo tem, como inimigos ferozes, os outros homens e que, decerto, o número daqueles que salvam é bem menor do que o daqueles que destroem.

Dizem que a solidariedade é um valor. Mas se ela se enuncia, enquanto valor, é na justa medida em que as condições selváticas de uma sociedade que se diz racional criaram os horrores para os quais é necessário, depois, conceber paliativos. Logo, a solidariedade passa a ser um contra-valor, pois nasce do opróbrio humano e traveste-se de caridade, em que uns (os mais fortes) dão, de si, o que lhes sobra, a outros (os mais fracos).

Estas antíteses (também o sei) fazem parte da dinâmica da vida: igualmente vejo, nos tais documentários, a leoa que espreita a zebra, lhe faz o cerco e a caça, a chita que usa a sua velocidade para perseguir o veado que soçobra e lhe cai nas garras, a águia que, das alturas e no silêncio do seu voo planado, surpreende crias incautas de outros animais e as transporta nas garras para os seus ninhos nas alturas. Porém, não posso deixar de pensar que essa antítese da natureza é movida pela necessidade e que uma leoa ou uma chita ou uma águia não teriam razões para matar a zebra, o veado ou o cordeiro, se acaso eles não fossem a única condição do seu desenvolvimento. Presos ao determinismo da sua circunstância, as feras não têm outro recurso senão esta chacina (que nos incomoda, quando a vemos documentada); mas ela nunca é causa de extinção de espécies, porque o animal não caça por desporto, não mata para se divertir e, se precisa de lutar com os da sua espécie é ainda na necessidade de garantir a própria sobrevivência, marcando um território ou disputando uma fêmea.

Mas nós, que somos humanos e compreendemos a dinâmica antitética da vida, tínhamos obrigação de criar alternativas para a competição, para o combate, para o extermínio a que vamos sujeitando a natureza, para a consumpção a que subordinamos os que, de entre nós são mais fracos, para a guerra, sempre gratuita, dispensável e injusta, com a qual arruinamos gerações sucessivas. Queremos ser diferentes dos outros animais, afirmamos essa diferença quotidianamente, escrevemos livros e compomos sinfonias, erguemos, ufanos, a cabeça, únicos de entre os animais que somos capazes de manter a coluna erecta e marchar, pomposamente, apenas sobre os pés. E no entanto, estamos muito longe de alcançar a harmonia fecunda de um pássaro, ciente do que precisa de fazer no tempo certo, seja migrar ou reproduzir-se, de um enxame de abelhas, absolutamente coeso na diversidade consonante e complementar das suas funções, de um esquilo que sabe quando deve aprovisionar alimento, de uma sociedade de formigas absolutamente coesas, quais sinapses neuronais, no cumprimento do plano da sua existência.

E então, nesta nossa civilização superabundante de utensílios, mecanismos, máquinas e toda uma plêiade instrumental, criada depois do surto de arrebatamentos geniais, continuamos a debater-nos com a pobreza e a carência, com o ódio e a violência, com a desigualdade e a miséria, a todos os níveis que possamos imaginar.

A minha questão é a seguinte: será que, do baixio humano a que chegamos hoje e da selva perniciosa dos usurpadores, dos assassinos, das massas acéfalas que destroem o mundo, no qual, apesar de tudo, precisam de viver, esses grupos perdidos e quantas vezes ignorados que praticam a solidariedade ou vigiam os desprotegidos e violentados para os restituírem à vida, serão suficientes para se constituírem em promessa de uma natureza redimida? De uma humanidade verdadeiramente consciente do que significa a racionalidade com que se auto-apelida? 

Duas respostas acedem neste momento à minha consciência: não, não são suficientes, porque os predadores agigantam-se; e sim, são suficientes porque, de tanto insistirem, acabarão moldando as consciências. Da predominância de uma das respostas sobre a outra advirão ou o fim dos tempos ou a redenção.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A ESCRITA PARA QUEM CRIA

CLARA CORREIA
A meu ver, ou melhor dizendo (ou, ainda melhor, escrevendo), no meu sentir, a Escrita não existe ou, pelo menos, não tem razão de existir, sem o acto criativo, ou seja, dissociada da ficção, do universo pessoal (íntimo de quem escreve) ou, num maior número de textos do que autor e leitor suspeitaram, da mistura resultante de ambos: criação (de algo ficcionado) e recriação (da pessoa que é o autor).

As ideias, sendo a matéria prima de quem escreve, possibilitam infinitas formas de concepção, de “acabamentos” e de oferta do produto final que é o texto, ao leitor, seu consumidor; sim... um texto, um livro, que mais não é do que um grande texto (ainda que com certas especificidades), é um produto do trabalho do seu criador que, após semanas, meses, ou até mesmo uns poucos de anos, o dará por concluído... fruto da sua persistência, porque esse vulgarmente disseminado conceito de “inspiração”, cujas raízes advêm, provavelmente, da sobrevivência da mística poética de tempos idos, cai por terra logo nas primeiras linhas! Se o leitor souber responder à pergunta “sobre o que é que gostaria de escrever?”, então, esteja certo de que está inspirado; o resto, bem, o resto... é mero “suor mental”!

Quem escreve, quem cria, tudo pode! Decide o que acontece às suas personagens (cujos perfis também definiu) e tudo pode determinar acerca do rumo das suas vidas, enquanto “pessoas que agem” nos cenários das suas histórias. Das inesgotáveis emoções, perenes no papel, cada leitor “toma as que quer”!

Se se quiser definir o ser humano numa palavra (ou duas) dir-se-à, porventura, que é um ser “de emoções”... está na sua natureza, pelo que as histórias, ficcionadas ou não, com o seu poder evocativo de sentimentos, desde sempre fizeram, fazem e, ao que tudo indica, hão-de continuar a fazer parte da Humanidade e da sua História, seja na arte do teatro, da música, da dança, do cinema... da literatura! São inúmeras as interligações artísticas, como variadas são as adaptações da literatura ao grande écran, a partir de obras concebidas sem actores de carne e osso, sem operadores de câmara, sem equipas de realização e produção... mas apenas com um autor, ou autora. Se é verdade que, aos olhos do espectador, uma imagem vale por mil palavras, também é verdade que é graças às palavras que uma imagem nasce e vive na mente e imaginação do leitor!

Não é só o leitor que cumpre mais um pouco da “viagem”, que é a leitura, cada vez que pega no livro que anda a ler... penso que o autor também vive essa “viagem”, e julgo até que, como acontece com os actores, encarna cada personagem mas, ao contrário daqueles (num mesmo filme ou peça de teatro), precisa de estar constantemente a mudar de registo de personalidade, uma vez que todas as personagens, todos os perfis humanos intervenientes, dependem da versatilidade com que os manipula... e tanto mais vida, força e credibilidade eles têm quanto mais autonomamente existirem para lá do seu criador!... É que as personagens actuam, elas próprias, na trama/enredos que o autor para elas preparou.

Sendo que, até mesmo na mais delirante fantasia, é imperioso existir, no mínimo, um q.b. de credibilidade, a escrita/criação não pode deixar de lado a lucidez... sem, no entanto, prescindir de uma espécie de “estado alterado de consciência”, para se concretizar eficazmente.

Como autora (ou “escrevinhadora” de histórias), reconheço que, enquanto escrevo, vivencio frequentemente experiências impossíveis, ou muito pouco prováveis, de viver na vida real (quase visualizando-as numa tela imaginária), e que isso me facilita bastante a percepção do mundo sob diversas perspectivas e formas, sendo, também essa, uma razão pela qual a Escrita é, para mim, uma actividade tão sedutora... sempre diferente, enfim...


                                                                                  Escrever
                                                                
                                                                  É expulsar o pensamento
                                                                  Num parto ermo, silente,
                                                                  Libertar o sentimento,
                                                                  Fazer crescer a semente.

                                                                  É a alma derramar,
                                                                  Soltar o espírito alado,
                                                                  Com a palavra comungar
                                                                  Num compromisso sagrado.

                                                                  É espelhar o coração,
                                                                  Reflectir o próprio ser,
                                                                  É sublimar a razão,
                                                                  Tomar o verbo e tecer...