REGINA SARDOEIRA |
Pior do que viver uma história a que foi necessário apor a palavra "FIM" é perceber que não ficou, antes desse marco final, nenhuma história para contar. Pior do que olhar para trás e perceber que a promessa não chegou a concretizar-se, por via de circunstâncias alheias a quem nela se envolveu, é ter que aceitar que nem sequer houve promessa, mas um mero pacto acidental, que bem poderia ter sido outro qualquer. Pior do que dar conta da falência do amor, da supressão da intimidade, da progressiva escassez dos gestos afectivos, é compreender que nunca houve amor, ou intimidade ou afeição, mas uma soberana ilusão em trânsito de um para o outro. Pior do que absorver a ruptura, lamber as feridas e seguir em frente, é assimilar a dimensão cruel de havermos sido enganados por aquele que jamais aceitaríamos enganar ou trair. Pior do que encarar um futuro onde nunca mais seremos um par, é perceber que nunca o fomos e que as palavras "nós" e "nosso" jamais deveriam ter sido pronunciadas, por serem simulacros vazios de coisa nenhuma. Pior do que aceitar a ausência, é saber que nunca houve presença e que durante anos sustentamos um fátuo balão colorido, cada vez mais desvanecido nas suas luzes cromáticas, até só restar um quase invisível arcaboiço cinzento. Pior do que sermos confrontados com a partida de um ser excepcional, nosso irmão gémeo na essência, nosso aliado nas diferenças acidentais, é conviver com o facto consumado de que não havia ali nenhuma excepcionalidade, que fomos enganados, que nos enganámos ou nos deixamos enganar, que não tínhamos qualquer afinidade essencial com aquele que vimos partir (crentes ainda, nesse dia, que ele era uma excepção). Pior do que sofrer, em conjunto, a dor da separação, é saber que o sofrimento de um nasce de razões externas, de um vazio material e quotidiano que urge preencher com subterfúgios materiais e quotidianos e que em nada se aproxima do sofrimento intrínseco do outro.
Valem muito ou pouco as relações humanas? Devemos entregar-nos, de alma e coração a um outro eu ou tu, um outro, do eu, um tu, face ao eu, ou é bem melhor deixarmo-nos estar no reduto da nossa solidão, em absoluto recato, ignorando os que batem às portas de nós?
Existirão, aqui e ali, soberanos exemplos de sintonia, histórias ímpares de verdade, entre pares, amizades ou amores eternos e incorruptíveis. Acredito nessas ilhas humanas de afecto genuíno, nessas cumeadas brilhantes de absoluta transparência, nesses lagos cristalinos por onde deslizam suaves gargalhadas cúmplices. Mas vejo essas pequenas e remotas aventuras como o horizonte onde o sol cintila, em réstias de abandono iminente. Vejo essas excepcionais marcas de encontros humanos, feitos na verdade e na limpidez das palavras e dos actos, apenas como uma quase extinta celebração de seres isolados, qualquer dia, eles mesmos tragados, num vórtice de desespero.
Sendo já céptica conceptual, arribei agora a outra forma de cepticismo: tornei-me céptica na vida, céptica da vida. E escuto Chopin, de repente.
Instantaneamente percebo que apenas a solidão pode criar o halo circunscrito do eu individual, a caverna pétrea do ser em solilóquio absoluto, para que o infinito se desvele e o indivíduo aceda à sublimidade transcendência.
Parecerá absurdo que a comunicação na sublimidade, que só a arte possibilita (afastado o amor, corroído o sentimento pelo outro e com o outro) tenha que dar-se nos côncavos intransponíveis das profundidades mais íntimas do ser e que só a partir daí possamos ter acesso à comunicação integral da subjectividade. E contudo terá que ser assim.
A não ser na arte ou no amor, não há para os homens nenhuma espécie de redenção; e nem desta afirmação posso ter uma certeza cabal e absoluta.
Os outros animais, principalmente aqueles que escaparam à humanização pelo acto doméstico, resolvem-se a si próprios, na selva, nos rios, nos pântanos ou nos mares. O homem precisa de objectivos, de metas, de missões. O homem não cabe na terra onde nasceu, tem que conquistar, desbravar, partir em aventura. O homem não respeita o próprio habitat e constantemente transforma a terra e a paisagem, erguendo moradias absurdas e interpondo muros ao longo das veredas de que fez estradas de cimento e asfalto. O homem fundou a sociedade e logo hostilizou o outro homem em pequenas questiúnculas ou em mortíferas batalhas. O homem não sabe quem é ou o que é.
Perdido num torvelinho insano de lutas, perseguições e invejas, pouco existe de são naquilo a que chamamos condição humana. E então, sumida em isoladas regiões de excepcionalidade, abolido o amor e a concórdia, trocados pelo instinto de posse e pela competição, somente a arte nos guinda a uma categoria irmã da divindade. Aí, superamos a besta ou damos-lhe prerrogativas extraordinárias. E podemos, por essa razão, ouvir Chopin e maravilhar-nos.
Pior do que caminhar sozinho, de braço dado com a noite, é ver o dia nascer na companhia de um estranho.
Pior do que respirar a frialdade nevada de um deserto hostil, é sentir o hálito morno de uma fingida tolerância. E pior do que o ódio estreme de uma multidão que nos lança pedradas, é o beijo de Judas de quem nos vendeu para que fossemos crucificados.
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