MIGUEL GOMES |
Promete chuva, o céu, meticulosamente ordenado em nuvens escuras e menos escuras, como se a escuridão se dividisse em possibilidade de chuva e possibilidade de apenas ser possível chover.
A passo apressado, vergam-se numa espécie de vénia estrada acima, depositando no asfalto enegrecido e irregular velas circulares, que alguém, igualmente apressado, atrás, vem acendendo com um isqueiro.
O percurso fica iluminado lateralmente, o vento não consegue extinguir as pequenas chamas que vão tremeluzindo com medo que chova. E chove, pouco, é certo, mas o suficiente para alguns incautos pingos de chuva se fazerem cair, ao contrário dos relâmpagos, duas vezes no mesmo local e se, por acaso, o mesmo local calha de ser o cimo da vela, o pavio, então temos menos uma luzidia e tremeluzente chama azul e amarela para deleitar quem no caminho se fará de cabeça baixa e na luz a que reza encontre a sua rota iluminada pela encerada vela incrustada em prateado invólucro.
Fui, se tanto, uma vez na procissão de velas, em tempo de catequese e de procissão maior em menor corpo. Agora crio apenas um pequeno caminho iluminado, três pequenas velas que coloco no parapeito, para que vejam as suas irmãs, no chão, paradas, na mão, professadas, já que as luzes no interior das pessoas há muito se teimam em apagar.
O vento traz estrada acima a voz grave amplificada da oração do sacerdote, não o vi, soou quase como a ribombante voz que se diz ouvir quando Deus fala connosco. Neste caso, nem Deus, nem voz, apenas eu e tu, sós. A cada rosário um coro, vozes titubeantes, não sei se pela emoção se pelo caminhar que faz o ar nos pulmões bater cavernosamente enquanto oscila, de lado para lado, de cima para baixo.
A chuva decidiu cair, umas poucas mais velas apagam-se, os corpos aproximam-se quando partilham um guarda-chuva, um recém casal que se encosta, ele passa-lhe a vela, abre o guarda-chuva, cobre-lhe os ombros com o braço e segura o guarda-chuva enquanto ela, sorrindo timidamente, encosta a cabeça ao seu ombro e nas mãos ocupadas pelas duas velas leva o sonho e pedido para que a procissão ou a chuva demorem um pouco mais que o usual. Assisto, atrás da cortina, à traseira da procissão e, por isso, por não me verem, posso ver as pessoas pelas costas da mesma forma que as veria pela frente se não me vissem, puras e sem máscaras.
Caminham e sobem esta pequena subida que contorna o nicho onde ardem algumas velas e se concentram gentes de outros tempos que luzem noutras paragens já, sinto um beliscão na perna, quer ver a procissão. Iço-o para o colo, mas ele prefere sentar-se no parapeito, afasto a cortina e ele ri-se, esqueço-me que podes ver por ela, penso, e rio-me também. A minha respiração embacia o vidro salpicado pela parte de fora e, por brincadeira, desenho uns óculos por onde espreitas a sorrir. Encostas a cabeça ao vidro, o cabelo desfaz um pouco dos fictícios óculos que eu tinha desenhado com a minha falta de talento e tu olhas para mim como que a desculpares-te.
Vieste sozinho, pergunto-lhe, afirmando como que interrogando.
Não falas, ainda, falarias, mas o tempo quer-se como a procissão, caminhando por entre a luz, procurando-a sem sabermos que a levamos connosco, na mão e no peito.
O sermão vai longe, a procissão serpenteou solenemente contornando os resquícios de habitação onde moramos sem habitar, a voz do padre propaga-se em duas direcções, mas o vento leva a oração para o lado oposto onde estamos, subindo a estrada e pregando a uma multidão que já não o escuta. Vejo, pelo que me contas, alguém que leva a vela, braços estendidos, exibindo-a como o seu pequeno troféu, sem saber, criança, que só aquele sorriso ilumina mais que todas as velas no caminho, da procissão e da vida dela.
A cauda acabou de desaparecer na curva à direita, quando os paralelepípedos se encostam ao asfalto, ainda te tenho no parapeito enquanto te vejo olhar para as velas no chão e aparentas sentir algo por elas.
Queres ir lá, pergunto, mas dizes que não com a cabeça, pareces-te comigo, no silêncio, na mudez, nas viagens que fazes sem te dirigires ao destino, até por isto, por te sentares no escuro, comigo, sozinho.
Continuamos até ver algumas pessoas surgirem na estrada, a procissão terminou, dispersou e vem agora estrada acima, porque não vejo estrada abaixo, de velas e corações apagados e tu tens pena, dizes-me, das velas que continuam a luzir sem terem que as ilumine.
Por saber ao que tristeza chove, afasto-me da janela e deixo-te a olhar para o caminho e para as três velas que persistem no parapeito. Embora cogite, não tenho certeza do que és feito. A porta faz o usual barulho ao ser penetrada na fechadura pela fria chave, viras a cabeça de repente, sorris, mas creio que ela não te viu.
Vem até mim, Estás fria, digo-lhe ao tocar os braços nus depois de tirar o casaco.
Perguntas-me se quero ir contigo ao nicho, colocar uma vela.
Assim, pergunto e admiro-me, ainda de pijama ou lá o que queiram chamar ao calção e t-shirt e tu, como sempre, sacodes os ombros e lanças o típico, e quê?
Nada mais faço que sorrir, deve ser a minha resposta sem voz, enquanto sais da cozinha com o sorriso aberto e a vela que levaste na procissão do ano anterior, Guardo a deste ano e vamos colocar a do ano passado, para o ano repetimos.
Arrepio-me ao sair à rua em calção, o frio anda por aqui à solta e ao ver-me incauto embrulha-se imediatamente nas pernas. Vamos andando, de mão dada, numa ligeireza lenta, até conseguirmos olhar para trás e ver o efeito das velas no nosso parapeito, não as vemos, surgem apenas as chamas projectadas no alumínio lacado das janelas e na parede. Não sei se o vês, não o mencionas, eu também não, mas ele catraio desce como descem as luzes sem pavio e vai connosco, no nosso meio, por entre os nossos passos.
Sem procissão sem aflição, o nicho está vazio, iluminado por umas gambiarras que dançam com o vento e com seis ou sete velas, de tamanhos diferentes, que, protegidas por uma cortina de ferro, vão ardendo indiferentes a outra luz que não a delas.
Colocas a vela no círculo vazio, ela afunda-se e fica bem mais pequena que as outras, murmuras algo sobre luz para todos que precisam, confesso que não escutei, estava distraído a olhar para eles, afinal o outro estava à nossa espera ali, sentado nos degraus do nicho, como se soubesse que íamos lá ou, na verdade, talvez tenha sido ele, o mais novo, a dizer-te para passares por ali, para me fazeres vencer a preguiça e o teimoso hábito de me recatar. Viramos costas, agora sim, vamos sozinhos, a vela ficou lá, a arder timidamente por entre as outras e eles, petizes, ficam ali na entrada do nicho, de mão dada a sorrir, espero que orgulhosos de nós, ou de ti, principalmente, que de mim só se vêm bafejados sonhos nos vidros das janelas por onde passo.
Vejo-os passarem por ti, fazem-te cócegas na cara com os lábios e soprando fazem o teu cabelo ondular. Sorris, coças a cara, dizes que está vento enquanto passas a mão pelo cabelo e eu vejo-os ascendendo no adro até se tornarem, também eles, pequenas velas bruxuleantes no céu nocturno, ainda que nublado. A vida tem velas que o pavio desconhece.
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