|
ANTONIETA DIAS |
Neste momento os portugueses já podem lavrar um documento das suas intenções de forma a clarificar os tratamentos que desejam, ou que rejeitam, em caso de doença que os impossibilite de manifestar a sua vontade, através do chamado “testamento vital”, porém, esta orientação antecipada de vontade, só pode ser assumida perante um notário.
Desde a publicação da Lei n.º 25/2012 de 16 de julho, que se pode escolher antecipadamente que cuidados de saúde se quer receber caso “fique incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”.
Numa análise mais precisa da Lei, nomeadamente o artigo n.º 1.º da Lei n.º 25/2012, estabelece o regime das diretivas antecipadas de vontade (DAV) em matéria de cuidados de saúde, designadamente sob a forma de testamento vital (TV), regula a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional de Testamento Vital (RENTEV).
No artigo n.º2.º da Lei n.º 25/2012 de 16 de julho, consta que de acordo com as diretivas este documento é unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade, consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.
Por sua vez a alínea b) do Capítulo II, Artigo 2.º admite uma situação irreal na prática clínica médica diária, desenvolvida à luz da leges artis, uma vez que refere que o doente poderá orientar a sua vontade para que não lhe sejam aplicadas medidas terapêuticas fúteis, inúteis ou desproporcionadas ao seu quadro clínico, ora, esta diretiva da Lei é que é inútil, tendo em conta que de acordo com as boas práticas médicas este procedimento nunca poderá ser realizado.
A admitir este cenário, era considerar os profissionais médicos como irresponsáveis, pois, em nenhuma circunstância se submete um doente a um tratamento fútil, inútil ou desproporcionado ao quadro clínico em causa.
Aceitar e generalizar que as medidas de suporte básico de vida, visam retardar o processo natural de morte, demonstra um falso conhecimento sobre a enorme vantagem que estas medidas têm na ressuscitação do doente e contraria claramente as boas práticas médicas.
Muitas vidas se salvam com a aplicação destas medidas, sendo determinante e obrigatória a sua utilização.
Importa, ainda referir que no que concerne à alínea b) do mesmo artigo, o doente tem direito a morrer com dignidade e para que isto aconteça, implica um suporte de cuidados médicos globais de forma a minimizar o sofrimento do paciente.
Um doente claramente esclarecido, não irá fazer um testamento vital que o impeça de receber cuidados paliativos e de se submeter à administração de terapêutica sintomática adequada, para libertar a sua dor.
Resta, ainda definir o perfil de competências de responsabilidade e de conhecimento científico que o funcionário ao qual lhe vai ser atribuída a devida habilitação para poder informar devidamente a pessoa que pretende fazer o documento do testamento vital, onde irão constar as diretivas antecipadas da sua vontade, e se esse mesmo funcionário reúne condições de idoneidade e capacidade para transmitir claramente a mensagem para que o consentimento seja livre e devidamente esclarecido.
Na minha opinião, a função relativa ao esclarecimento da pessoa é do âmbito estritamente médico e não é aceitável à luz das boas práticas que esta responsabilidade seja transferida para uma pessoa menos habilitada e sem formação específica, e sem condições para gerir uma situação tão delicada como a que aqui se lidera, pois, não estamos a tratar de coisas materiais, mas sim de seres humanos, que colocam a sua vida numa decisão documental, em que, mesmo admitindo a possibilidade prevista na lei de reversibilidade da decisão, carece como é óbvio de uma informação detalhada, para garantir uma decisão devidamente consciente, livre e esclarecida.
Cabe ainda definir o perfil do procurador de cuidados de saúde. O artigo n.º 11.º da Lei n.º 25/2012 de 16 de julho refere no ponto 1 que “qualquer pessoa pode nomear um procurador de cuidados de saúde.
Para que isto seja concretizável é necessária a criação de uma bolsa de profissionais que reúnam os conhecimentos teóricos, técnicos, científicos, pedagógicos e habilitação suficientemente segura para esclarecer de forma clara e inequívoca da vontade do outorgante.
Relativamente, ao previsto na Lei n.º 25/2012 de 16 de julho, no que se refere à criação de um departamento destinado a receber os documentos do Registo Nacional de Testamento Vital (RENTEV), na minha opinião, estes documentos deveriam ser remetidos para o departamento do Registo Nacional de Não Dadores (RENNDA), o qual já garante a confidencialidade prevista no Artigo 8.º da Lei, e já usufrui de uma estrutura organizada interinstitucional que possibilita o acesso da informação de imediato nas várias unidades de saúde hospitalar, não se justificando por isso a criação de um outro serviço, que obrigaria necessariamente a um acréscimo de custos e implicaria a necessidade de gerar mais um departamento, com recursos humanos, técnicos e financeiros dispensáveis.
Acresce ainda, relembrar que tendo em conta a investigação clínica permanente, onde a medicina como ciência está em constante mutação, o tratamento preconizado para uma doença que é diagnosticada hoje, pode não ser o mesmo para amanhã, não sendo possível prever se a decisão médica que é tomada hoje à luz do raciocínio clínico atual, vai ser a mesma perante uma situação clínica igual, mas com tecnologia diferente.
A Lei n.º 25/2012 de 16 de julho prevê ainda que estas orientações de vontade, possam ser formalizadas de uma outra forma, ou seja, por um funcionário do Registo Nacional do Testamento Vital (RNTV), estrutura esta que já esta criada.
Resta ainda, esclarecer o que é que o legislador entende por vontade expressa do autor.
Segundo o Prof. Daniel Serrão que define o “testamento vital”, como um documento, escrito por uma pessoa na plena posse das suas capacidades de decisão, no qual são apresentadas instruções sobre o que um médico pode ou não fazer, quando o subscritor do documento não estiver em condições de exercer a sua autonomia e o seu direito ao consentimento, após informação sobre o seu estado de saúde e sobre o que o médico lhe propõe para tratar.
Fica claro que, neste documento, a pessoa tipifica, com maior ou menor rigor, os tratamentos que supõe que o médico lhe irá aplicar em futuras situações de doença, em que ela não possa ser informada e decidir. Por exemplo por estar em coma, não podendo receber uma informação médica correcta para poder decidir, dando ou não o seu consentimento. Por faltar esta informação actual sobre a situação real, decidir sobre uma hipótese de doença e uma hipótese de tratamento, envolve os maiores riscos para a pessoa. Pode admitir-se que a pessoa, se pudesse ser informada da real situação em que de facto se encontra, a sua decisão seria diferente da que está no tal testamento.”
Em suma, defender a vida não é uma utopia, é um dever de todos os seres humanos, em que os resultados do progresso, dos conhecimentos e da tecnologia permitem cada vez mais reconhecer que nada poderá evoluir se não preservarmos a defesa da vida humana e que a protecção dos direitos humanos é uma exigência da civilização.
Neste contexto, a sociedade não pode ter sentimentos de ambivalência, de indecisão, ou de dependência de dilemas éticos de difícil resolução que possam colocar em risco a autonomia ou a inviabilidade de reconhecer uma situação definitiva e irremediável de tratamento por razões estritamente financeiras.
Todos nós assistimos diariamente a uma inversão e distorção dos valores, por isso necessitamos de sensibilizar cada vez mais os profissionais da saúde para o respeito da autonomia e dignidade dos doentes, motivando-os para a defesa da vida humana que continua a ser um bem irrecuperável, cujo investimento, não pode ser de forma nenhuma abalado, nem perder o seu valor e o direito de um instrumento ao serviço da vida, que começa na concepção cujos direitos fundamentais estão salvaguardados na Convenção dos Direitos da Criança; as Declarações de princípios internacionais (emitidos pela ONU e Conselho da Europa); a Constituição da República Portuguesa (1999) em que designadamente no artigo 24.º respeita a inviolabilidade do direito à vida.
Por fim, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Biomedicina já tem algumas referências à vida intra-uterina artigos 13º, 14.º e 18.º mas só recentemente num documento promovido pela AMADE (Associação dos Amigos da Criança) e pela Unesco se faz uma declaração em que há referência aos direitos do feto.
Os direitos inquestionáveis salvaguardados na Lei portuguesa, não podem ser violados, estão relacionados com o respeito e protecção da vida humana, desde a concepção e durante todo o ciclo de vida.
Seja qual for a faixa etária do doente, ninguém pode colocar um patamar, no limite de investimento económico para o tratamento da doença do doente.
Se o fizesse estava seguramente a cometer um homicídio (voluntário ou involuntário), sendo que, os interesses económicos, políticos ou religiosos, não poderão servir de pretexto para cometer a crueldade de transformar a vida humana numa mera redução numérica e financeira como se de coisas se tratasse e não de pessoas.
Infelizmente já vai sendo prática diária assistir à insensibilidade de muitas pessoas perante a morte de seres humanos, que sofrem nos corredores dos hospitais públicos.
Porém, o valor da vida humana é imensurável, pela sua importância exige de nós um profundo respeito, cujo ranking está acima dos dogmas, da doutrina e da lei.