terça-feira, 13 de janeiro de 2015

TUDO AQUILO QUE PERDEMOS

REGINA SARDOEIRA
O «sistema», a que inalienavelmente pertencemos, nós, os humanos, está corrompido a tal ponto que merece todo o género de ataques, merece ser «sistematicamente» criticado, até ao esfrangalhamento total.

Mas a verdade é que o sistema somos nós todos. Individual e coletivamente, nós, cidadãos de países com constituições, leis, governos, polícias, etc. fazemos o sistema e estamos absolutamente vinculados a ele, vivemos nele, pactuamos com ele. Logo, qualquer crítica, ou sátira ou julgamento que levarmos a cabo, visando o sistema, visa-nos a nós, sujeitos livres de uma sociedade a que, inquestionavelmente, pertencemos; e ostentamos documentos, cartões, registos, identificações etc., pelos quais não poderemos negar essa pertença ao todo. 

E então, aquele ou aqueles que fazem da sua vida uma batalha panfletária de crítica virulenta a tudo e a todos procedem como se estivessem acima ou fora do sistema, numa espécie de bolha ou de limbo onde nada pode atingi-los. Ocorreu-me agora mesmo a ideia de Deus: sim, todos esses que não hesitam em criticar este ou aquele sistema político, ou religioso, ou institucional ou individual ou seja lá o que for, atuam como se estivessem dispensados de levar em conta a diferença e respeitá-la, como se fossem os donos da verdade e da certeza absolutas, como se pudessem brandir armas, a torto e a direito, escapando sempre ilesos – em suma, como se fossem deuses.

Deus, a crer no Antigo Testamento, destruiu vidas, cidades, o mundo inteiro, até, aquando do dilúvio; e não cuidou de saber se entre aqueles que estava a exterminar haveria inocentes, nem se preocupou com o mandamento que ele próprio entregou a Moisés no Monte Sinai e dizia: “ Não matarás!”.

Ora, armar-se em Deus, sendo apenas um comum mortal, sujeito às leis dos mortais e vivendo com eles e como eles, não será um atentado a si mesmo e à sua própria fragilidade?

Penso que a humanidade no seu todo, e o indivíduo em particular, enquanto célula social, atingiu um profundo fosso no que diz respeito:

1º À Racionalidade. Viver em estado de guerra permanente, entre povos e indivíduos, se teve alguma justificação nos tempos que designarei como bárbaros, quando o território era disputado e a conquista, a base da existência humana, a querer constituir-se, enquanto sociedade, poderá ter feito sentido. Portugal, e a história da sua fundação, constitui a expressão perfeita dessa ânsia guerreira, dessa sede de território que, se bem que nos represente enquanto povo, não deixa de ser um exemplo acabado do mais absoluto barbarismo. Mas entretanto, parece que deixamos de ser bárbaros, arrogamo-nos o epíteto de civilizados; os territórios estão definidos, há fronteiras e línguas que nos separam, enquanto povos, costumes e tradições que nos conferem identidade, individual e coletiva. Guerras foram travadas, domínios e predomínios estabelecidos e perdidos, povos foram exterminados, escravizados, reduzidos; até que a Declaração Universal dos Direitos do Homem nasceu para garantir racionalidade às organizações sociais dos homens e às suas prerrogativas particulares. E contudo, todos os acontecimentos sangrentos que a história relata e o quotidiano atesta vão-se perpetuando, comprometendo a racionalidade.

2º À Liberdade. Nestas condições, quando a ameaça se abate sobre as pessoas, aqui e além, de forma continuada ou num ato brusco, não podemos considerar-nos livres. Quando somos literalmente vasculhados na nossa privacidade e comandados por mecanismos que, quase sem darmos conta, já permitimos que nos ultrapassassem – que ninguém se iluda acerca disto, tanto mais que vamos pactuando com essa e outras formas de auto devassa – poderemos, em sã consciência, afirmar que somos livres? 

3º Ao Direito à Diferença. Sim, somos todos iguais: mas proclamamos constantemente o respeito por aquele que é diferente. Ao mesmo tempo, vamo-nos agrupando, cada vez mais, em guetos, construímos redes incomensuráveis das mais inverosímeis partilhas, fechamo-nos em redutos e olhamos, desconfiados, para todo aquele que ousa querer entrar no nosso nicho ou que, dentro dele, pronuncia uma frase divergente das opiniões da maioria.

4º À Democracia. Formalmente, é o regime que comanda grande parte do mundo humano. E contudo, múltiplos conluios de caráter político e financeiro, foram retirando a voz e o poder ao povo, de que a democracia é, por definição, o governo. E somos nós, individual e coletivamente, que consentimos na apropriação do poder, que deveria ser nosso, delegando a gestão das nossas existências a grupos coesos e supranacionais de usurpadores.

5º À Segurança. Coabitamos com o perigo diariamente e chegamos mesmo a desejá-lo: quando conduzimos automóveis a alta velocidade (inventamos, nesta opção do mundo moderno, uma nova causa de morte), quando ingerimos produtos tóxicos, tratados e depurados em laboratórios que lhes acrescentam elementos perigosos, retirando-lhes a essência natural, quando nos afundamos em vícios anquilosantes, mesmo sabendo que o eventual prazer que daí poderá advir trará consequências letais, a médio prazo, quando nos deixamos enovelar numa existência desinteressante, rígida, insensata em prol de uma abundância material que nem sempre chega.

6º À Humanidade. Terrível, esta verificação! Sendo homens, ocupando, na escala dos seres, o patamar cimeiro, desumanizamo-nos quotidianamente, baixando à escala ínfima dos insetos que, displicentemente, calcamos aos pés. Desumanizamo-nos sempre que ofendemos o solo que nos alimenta, a terra que nos serve de habitáculo, os outros homens que connosco partilham um destino absolutamente idêntico. Desumanizamo-nos sempre que espezinhamos, pela palavra ou pelo gesto, aqueles com quem deveríamos, acima de tudo, dialogar. Desumanizamo-nos, quando preferimos ser governados por aqueles que nem sequer nos conhecem, em vez de nos transformarmos definitivamente nos legisladores e nos súbditos da nossa própria escala de valores. Desumanizamo-nos quando preferimos mentir-nos e mentir, ostentando um rosto que desfiguramos com os esgares que o tempo esculpiu em rugas de expressão que, apesar de tudo, são a verdade de nós.

7º Ao Infinito. Não, àquele infinito matemático com o qual jogamos e a que atribuímos uma notação simbólica, mas ao outro, o que representa o mistério a pairar sobre a nossa cabeça limitada, mas a constituir-se constantemente como o objetivo e a meta sonhados por todos os sábios. Sendo uma saudável contradição entre o limite e a vocação para o infindo, abandonamos a última por nos acharmos impotentes, por chacota ou por preguiça. E vamo-nos arrastando numa acomodação viciosa de pequenos gestos, de pequenas lutas, de ridículos esforços.

Bem poderia aumentar a lista e dizer que renunciamos ao sagrado e ao maravilhoso, ao obscuro e ao prodígio, à beleza e à criação…mas certamente não saberia como marcar o sinal de fim, nesta escalada para nenhures em que nos transformamos, enquanto humanidade. Porém, no âmago de tantas perplexidades, no seio de tantas ambiguidades, no contexto de tantos vilipêndios, eu vejo claramente a necessidade individual, profundamente individual, de cada um olhar, de si para si próprio, e corrigir, em si, o que perceber que deve ser corrigido. Somos antigos, enquanto humanidade, não temos desculpa! E qualquer um pode observar que quase nada fizemos, desde os primórdios, a não ser destruir os nossos bens mais preciosos: a Terra que nos abriga e alimenta, a Inteligência que nos ilumina o caminho, a Razão que nos deu a supremacia entre os seres.

Continuar à espera que os senhores do mundo, sejam eles quem forem, pensarão em nós, por nós, e construirão para nós o mundo, a que talvez ainda tenhamos direito, é um ato criminoso de lesa sobrevivência. Teremos ainda coragem de perpetuar este terrível cenário, acrescentando ao nosso mundo e à nossa responsabilidade irresponsável, os filhos que achamos ser nosso direito desejar? Acaso não percebemos à saciedade que o mundo que deixamos apodrecer não garante o equilíbrio para nenhum ser ainda não nascido?

A solução, a única que poderá salvar-nos, salvando a humanidade que trazemos pendurada em nós, como um esboço do que poderíamos ser, está na tomada urgente de consciência do que somos e do que podemos, cada um, de si para si próprio; e depois, a partida para uma ação construtiva que – eu não duvido – desde que parta da honesta descida ao fundo de nós mesmos acabará unindo todos os homens à volta de um projeto natural (mas obliterado) de uma existência finalmente humana.

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