MIGUEL GOMES |
Começo por não identificar um teor repetitivo em tudo o que me rodeia, do ar ao chão, em mim, no meu andar, na respiração.
Termina o Natal, a azáfama tolerada de um mote que se quer acelerado, quase não saboreado, de uma terminologia dedilhada em tons de manhã com neve, uma brisa, leve.
De que me querem de vida salpicado?
Já tolero as costas por onde se atropela um arado, um punho em cravos fechado. Caminho lentamente com medo que o mundo me fuja pelo andar, sem me saber que de caruma em caruma se faz o monte meu lar.
O vento encaminha as nuvens para onde quer que me volte. Traz-me novas em forma de velhas formas, um pedaço de céu sobreposto à atmosfera, o rufar lento, síncrono, de uma memória de útero, o coração de mãe que se fez habitação, o rouco boa-noitar de um marido que se saberá pai. À vida, sozinho, ainda não se vai.
Sem que me vejam permaneço pontualmente a ver o sol nascer, ainda que de tarde se tome, surge áspero por detrás de uma casca de pinheiro, encosto a face a um velho sobreiro, sob ele o latejar lento de um coração, a promessa de uma amizade que nos salta para a mão.
Não se anotam notas em verbalidades gráficas, lamento, gostava de escrever o que brota dos meus olhos sem ver o que de ti faz momento. Fecho os olhos, a memória incita velhas sinapses, tempos de outros tempos, em que nasci em berço estelar, nos destempos onde descansei antes de a ti vir dar, dou por mim em palhas deitado, como um menino jesus grande e desajeitado, a escutar cânticos de aves que desconheço.
Um cão ladra aqui, outro responde ali, espero, a caruma sobreposta e uma clareira em forma de resposta.
A terra que se fez da Terra bombeia a vida pelas suas artérias, passa-me ao lado, gostava de dormir um dia acordado, por isso deixo-me esmaecer ao encontro do mundo, fazer do meu sétimo universo o descanso da hora sobre o segundo.
Vejo a manjedoura vazia, um desalentado José coloca a mão sobre o ombro da sua Maria. Olhos de mãe choram quando não se fazem de rosa, cravo florido, mãos no regaço e um ventre dorido. O presépio aconteceu, mas por lá ninguém nasceu, os pastores trazem as mãos cheinhas de nada e o calor das vacas, das ovelhas, dos burros e do fiel cão aquecem a noite de quem não se sabe vir a madrugar, hoje as noites das trevas são.
Se chovesse teríamos um arco-íris, mas a única precipitação é das estrelas cadentes que iluminam lampejantemente uma porção de noite.
Uma estrela regressa no caminho, vai por aí, devagarinho, contando a plebes e reis, um dia há-se ser, hoje não, que retornem a cortes as realezas e distribuam a vossa riqueza noutros estábulos, em pobres mesas, por lá nascem diariamente príncipes, princesas.
Acompanhado que está o casal na sua natividade interna, resguardam-se pastores à sorte de um capote, vai noite e fria a jornada e o gado, esse, quer-se levantado de madrugada.
A manjedoura desfaz-se de berço, Maria segura desajeitadamente um terço e oscila ao levantar-se. Uma mão no joelho, a nodosidade de um soalho que reclama de velho, a força de quem se pare todos os dias encontra a calosidade de um José que soluça e encontra afagando um cão um Gabriel desacreditado. O céu, ou Deus, tem por vezes destinos díspares para iguais filhos seus.
Não cresceu a vida onde se pensa ter tido guarida o casal. Neste mundo não se fará Natal.
No entanto, porque da vida encarrega-se a vida, viram-se por terras de gente boa um casal que navegava à noite, à toa, sem cardos ou espinhos, olhando o céu estrelado onde descansam deuses meninos, talvez deitados, talvez sozinhos.
Em cada torso uma árvore, de Natal, nos olhos brilhantes de meninice a iluminação de dias que parecem noites de tão inverno se alimentarem. Navegam pelo imaginário presentes que jamais serão entregues e, desses, restará o sabor de possuir o que se é.
A vida carrega consigo ela mesma e, em cada parte dela, um pedaço de amor que espreita. Dos seus braços pendem laços, pedaços de colmo onde se deitam meninos, meninas, crianças e gentes menos pequeninas. Deuses nascidos e não criados, criados e não nascidos.
Penso nos Natais desflorestados, das vidas que nasceram para o lado de lá da existência, guardo para o momento todo o pequeno sorriso que se possa fazer simplesmente fazendo. Acredito que de todos brota amor, em fases e sintonias diferentes, todos desejam no inverno frio o forte e humano abraço que nos dá calor.
A cada olhar com gente bem lá no fundo, possamos procurar ser, dia ou noite, um pouco mais de luz, tratar cada criança, infante ou adulta, como o nosso próprio menino Jesus.
A cada medo um sorriso em forma de segredo, a cada nome a certeza de uma existência sem fome pois quem se alimenta de vida em si mesmo se sacia, como a letra que escrevo sem tinta e deixo aqui, sozinha, vazia.
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