ANABELA BORGES |
Fez o curto
percurso do local de trabalho à pastelaria.
Era próximo e
gostava de fazê-lo a pé. Apreciava a aragem, qualquer que fosse o tempo que
fizesse (que fosse talvez um pequeno luxo de quem trabalhasse em lugares
fechados – apreciar a paisagem por uns escassos quatro ou cinco minutos por dia);
deitava o olho às variações da folhagem das árvores que ladeavam o caminho;
contornava os poucos obstáculos que já conhecia de cor; trocava olhares com o
cão dócil que sempre assomava ao portão de uma das moradias. Um enlevo no rodar
das estações, e, quase a direito, lá estava, à porta da pastelaria.
Estava um dia
frio de Inverno com sol e temperaturas baixas. O abrir da porta, o entrar na
pastelaria constituía sempre um pequeno prazer, qualquer que fosse o tempo que
fizesse, que era sempre o contraste com o tempo lá fora. Naquele dia, a mulher
já sabia, mesmo antes de abrir a porta, que a esperaria um ambiente quente e
aconchegado, com o característico cheiro a pão acabado de cozer.
Antes de abrir a
porta, porém, deparou-se com um homem que a interpelou. Abordou-a com alguma
parcimónia e circunspecção, parecendo à mulher que tinha estado à sua espera,
como se a soubesse ali àquela hora. Não era um homem que intimidasse à primeira
vista, que causasse medo, que fizesse com que a mulher sentisse de imediato
alguma espécie de ameaça. O homem vestia-se de modo apresentável, parecia
educado nos modos e parecia até um pouco acanhado na abordagem que lhe fazia.
Mas havia detalhes que, observados de perto, expunham a sua frágil condição
social. Reparando-se bem, o homem denotava alguma falta de cuidados de higiene
(as mãos – sempre a mulher fora boa observadora de mãos). E, breve, outro
elemento se juntaria a este para atemorizar a mulher, assim que se introduziu a
linguagem na abordagem: o homem era estrangeiro. Imigrante, talvez; de Leste,
talvez. A língua, e ainda mais aquela língua que lhe era desconhecida, a criar uma
barreira de incertezas e preconceitos.
A mulher
mostrava-se um tanto receosa enquanto agarrava o puxador para empurrar a porta
da pastelaria, sabendo, muito embora, que não corria perigo de maior, na rua
movimentada àquela hora e com a pastelaria cheia de gente. Ainda assim,
sentindo-se intimada, receou.
O homem lá foi
arrevesando um português que soava a lamúria. Pediu-lhe dinheiro, uma esmola. A
mulher abanou a cabeça, que não. O homem fez um gesto a levar a mão em punho à
boca, o cotovelo ligeiramente apontado para cima, e pediu-lhe uma sopa. A
mulher acenou-lhe que sim. Empurrou a porta e entrou. O homem entrou atrás
dela. A mulher sentou-se a uma mesa junto da vitrina – era ali que gostava de
ficar, à claridade. O homem arrastou uma cadeira para se sentar junto dela. Rapidamente,
ela fez que não com a cabeça e apontou-lhe outra mesa. Ele foi sentar-se à
outra mesa.
Estranho momento,
esse. Ela sabia que era hábito, em vários lugares do mundo, pessoas
desconhecidas partilharem mesas em espaços públicos. Ali, nem por sombras se
punha o caso.
O dono da
pastelaria veio, ela fez o seu pedido diário, acrescentando “e uma sopa para
aquele senhor”. Para evitar algum tipo de constrangimento para qualquer das
partes, pagou logo a sopa que o homem havia de comer.
A sopa foi
servida. O homem pôs as mãos em oração e, com muitas vénias, agradeceu à
mulher. Pediu azeite e sal ao dono da pastelaria e encharcou a sopa desses
néctares de que devia sentir falta no dia-a-dia. Pediu pão. O dono da
pastelaria serviu-lhe duas fatias de pão. O homem comia tudo com a sofreguidão
da fome.
A mulher comia a
sua refeição já praticamente tranquila, já quase como se tratando de um dia
normal, quando o homem disse qualquer coisa, lamuriou, apontando para o
refrigerante que ela bebia. Atrapalhada, a mulher fez que não com a cabeça.
Logo o dono da pastelaria encheu um copo com água e deu-o ao homem. Bebeu-a de
um trago. Deviam faltar umas duas colheres de sopa para terminar, quando voltou
a falar para a mulher. Era sempre bastante assustador quando falava, pois era
desajeitado na língua e levantava a voz em lamúria e como se estivesse a
ralhar. Pediu um Euro à mulher. Ela fez que não com a cabeça. Ele insistiu, ela
fez que não. O homem rapou o resto da sopa da tigela e lambeu a colher pelos
dois lados. Antes de se levantar, voltou a agradecer à mulher com muitas
vénias.
Estranha forma
de caridade, aquela. Estranha forma de se relacionarem as pessoas, os
necessitados com os que prestam ajuda – uma forma enodada de medos e preconceitos,
de dúvidas e desconfianças. Uma forma quase ausente de comunicação.
Lembrava-se da
caridade que aprendera na casa onde nascera. Lembrava-se da partilha clara e
aberta, sua mãe dizendo “vai levar este prato de sopa àquele pobre, espera e traz
o prato, o copo e a colher de volta.
Para outra vez”. E os filhos iam, e não
sentiam nenhum tipo de medo ou anseio, os pobres abrigados da chuva ou do frio
da geada ou do calor debaixo do alçado da varanda. Eram “os pobres”, que não se
usava o termo “mendigo” ou “sem-abrigo”. E havia também os pobres que tinham
nome, que entravam e sentavam-se à mesa para comer, a casa de seus pais
pequenina, e o pai a dizer “vai chamar o Sr, Fulano, que coma a sopa connosco”,
e muitas vezes aquele rodado de pobres, a quem se dava a sopa e o pão e um copo
de vinho, encostados aos cantos da casa: um no banco da cozinha, outros dois na
beira da cama do quarto de costurar, outro na soleira da porta, dois ou três
debaixo da varanda. Agora que pensava nisso, ela não sabia como conseguia a mãe
multiplicar os comeres daquela maneira, pois que eram uma família numerosa na
casa de pequenina.
E não era vergonha ser-se pobre, nem chegar-se a um pobre, nem era assustador. Eram os que pouco tinham a dar ajuda aos que apenas tinham garantido um poiso obscuro onde se encostar para dormir. Por acaso, não se lembrava de ver os ricos a ajudarem os pobres. Episódios desses não lhe enfeitavam a memória. Lembrava-se apenas que a caridade era um pássaro amistoso ao pé da porta.
E perdida que estava
nos recessos do tempo, apercebeu-se que o homem se tinha levantado para pedir
dinheiro a todos os clientes da pastelaria, com a mão, em concha, estendida.
Todos iam acenando que não. Acenavam que não e baixavam os olhos.
Antes de sair, o
homem ainda fez mais umas vénias em agradecimento à mulher e mais outra em
agradecimento ao dono da pastelaria.
Quando deixou a
pastelaria, a mulher não pôde deixar de se sentir novamente acometida por
alguns receios. E se o homem fosse mau e a esperasse numa esquina para lhe
roubar o dinheiro, para lhe fazer mal? Se a seguisse até ao local de trabalho?
Se lhe fizesse uma espera? Se tivesse uma arma?
Com estes
pensamentos, foi andando. À sua vida.
Tempos passaram
até que se lembrou desta história. Nunca mais vira o homem.
Estranha forma
de caridade… envergonhada, silenciosa e amedrontada.
Sem comentários:
Enviar um comentário